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O aquecimento esquentou

Quem disse que aquecimento é papo de ambientalista? Sinal de que a mudança climática tem ganhado público é que, ultimamente, ela freqüenta as páginas da London Review of Books.

10 de maio de 2007 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Um sinal de que a mudança climática está melhorando de público é que, ultimamente, ela freqüenta as páginas da “London Review of Books”. Às vezes, até em dose dupla – como aconteceu numa edição recente, em que John Lanchester resenhava, ao mesmo tempo, cinco livros sobre aquecimento global e, 39 páginas adiante, Michael Byers narrava sua descoberta do Ártico a bordo do Amudsen, um quebragelo canadense convertido em navio de pesquisa.

A primavera, conta Byers, ia alta. Faltavam dois meses para o verão. E nada de gelo na proa do Amundsen. Em troca, os pesquisadores encontraram baleias Beluga contaminadas com teores de mercúrios tão exagerados que a poluição industrial do planeta, só, não bastava para justificá-los. Eles suspeitam que o mercúrio aflore naquelas latitudes dos solos que degelam.

Ursos e focas

No golfo da Rainha Maud, quinhentos e tantos quilômetros além do Círculo Polar, o primeiro contato de Byers com a fauna local foi ver um urso esquálido, caminhando sobre o gelo tão fino que afundava sob o peso de suas patas traseiras. Aquele, pelo menos, vencera o inverno e, em princípio, estava de volta à caçada de focas – logo, às calorias que podem armar seu metabolismo para a próxima hibernação. “Mais ao sul, onde agora a temporada sem enregelamento é ainda mais longa, eles têm menos sorte”, segundo Byers. O que liga os ursos às focas é o gelo. E o gelo está encolhendo, nesta década, à razão de 300 quilômetros quadrados por ano.

Byers não foi até lá para carpir ursos, mas para apurar um livro sobre os problemas estratégicos com que o futuro acena para o Canadá. Como os bichos, suas tribos Inuit sempre contaram com o frio da primavera. Solidificando as águas rasas da bacia de Foxe, eram esses meses extras de temperaturas abaixo de zero que lhes franqueavam o acesso às manadas de caribus da ilha de Baffin. Sem elas, os Inuit passaram a discutir, nas reuniões de conselho comunal, se não estaria na hora de fretar aviões para ir à caça. Os velhos costumes atualmente pedem reforços tecnológicos para sobreviver num planeta cada vez menos previsível.

Não adianta dizer que esse é um típico problema dos Inuit. A climatologia promete, para esta década, verões em que barcos sem cascos reforçados poderão costear o Ártico, do Atlântico ao Pacífico, pela rota que engolia aventureiros desde o século 16. O explorador Roald Amundsen levou três anos para completar, pela primeira vez, essa travessia, em 1906. Pagou por isso dois invernos como prisioneiro do mar congelado.

Sucatas flutuantes

Cem anos depois – no barco que, aliás, leva o nome do pioneiro Amundsen – Byers anteviu como será o mundo no dia em que “um marinheiro tarimbado puder levar um petroleiro” através daqueles estreitos. Quando isso acontecer, provavelmente até 2015, mudarão mais rotinas que as dos ursos e Inuits. Estará aberto alguns meses por ano um atalho para a Ásia, 6,5 mil quilômetros mais curto que o canal do Panamá. Ele deverá atrair, antes de mais nada, sucatas flutuantes de bandeira liberiana que topam qualquer parada no mercado internacional de fretes.

Com esse tipo de frota, é enorme o risco de que os cargueiros, ao esvaziar seus tanques de lastro, emporcalhem os golfos ainda intactos do Ártico. A passagem por essa região desguarnecida virará uma mão na roda do leme para o contrabando, o tráfico de imigrantes clandestinos, a pirataria em geral e, quem sabe, a clandestinidade específica dos terroristas. Já se discute quem controlará essas rotas inéditas. Os Estados Unidos alegam que aquilo é um “estreito internacional”. O Canadá, dono desde 1880 das ilhas que o margeiam, alega que as águas são “internas”.

No mínimo, há um mundo novo saindo do gelo, como não se via desde que acabou a era das grandes aventuras marítimas. Suas implicações políticas dão de sobra para ocupar os diplomatas pelas próximas décadas. “Mas, depois de ver o outubro sem gelo, para mim é claro que nós não temos mais tempo a perder”, concluiu Byers. Quem disse que aquecimento global é conversa de ambientalista?

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