Enquanto os brasileiros olham o céu, procurando sinais de bom tempo na aviação, aqui no chão 60 pessoas ocuparam esta semana, no Espírito Santo, um lugar chamado Linharinho, em Conceição da Barra. Elas representam o quilombo Sapê do Alto, um dos 25 que pedem a titulação de suas terras no estado.
Três quilombos capixabas já estão, a esta altura, mais ou menos oficializados pelo Incra. Com eles, 156 famílias ganharam da autarquia 25.857 hectares. São 165,75 hectares por família. O dobro da média nacional para quilombos. E quase o quíntuplo dos módulos rurais que o próprio Incra acha suficientes para assentados da reforma agrária. Nesse passo, cerca de 215 mil hectares do Espírito Santo podem estar na fila da promoção a quilombo.
E pau no eucalipto
No Linharinho, uma portaria assinada em maio pelo presidente do Incra, Rolf Hackbart, deu 9.542,57 hectares a 48 famílias. Isso feito, seus funcionários entraram em greve, que ninguém é de ferro. Com o processo encruado, os quilombolas resolveram implementar a medida com os recursos que tinham à mão. Tomaram o que o Incra disse que é seu.
Reina uma certa informalidade na frente étnica da reforma agrária, desde que o governo Lula regulamentou, em 2003, o artigo 68 da Constituição por decreto. Sendo a-primeira-vez-na-história-desse-país que uma caneta presidencial tomava esse atalho legislativo, nem o Supremo Tribunal Federal se animou a dizer até agora se o decreto 4.887 é constitucional ou não. E, enquanto o STF pensa, o governo o aplica.
Não é só no ar que as coisas andam confusas. Só que, em terra, ao contrário do que acontece com os passageiros nos aeroportos, a impaciência não tem que esperar sentada. Parte logo para os finalmentes, como fez em Conceição da Barra. A área invadida esta semana pertence, na maior parte, à Aracruz Celulose, que tem 26 mil hectares plantados com eucalipto no município, além de nove mil hectares de mata nativa.
Reservas particulares
Uma vez lá dentro, uma das primeiras providências dos quilombolas foi passar a motosserra em eucaliptos. Derrubá-los é um gesto ritual da luta no campo, consagrado no Dia Internacional da Mulher do ano passado, quando as militantes da Via Campesina atacaram mudas da árvore num laboratório da Aracruz em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul.
Exótico como a manga, a jaca e a banana, o eucalipto não tem a popularidade desses outros imigrantes vegetais, talvez por já ter chegado aqui com gana de latifundiário. O agrônomo Edmundo Navarro de Andrade elegeu-o, no começo do século 20, como madeira ideal para arder nas marias-fumaças da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, numa época em que o PIB brasileiro viajava de trem. Deu tão certo que, até a década de 1980, ainda se davam incentivos fiscais no país a quem derrubasse floresta para plantá-lo.
Ele leva a fama de muita besteira feita em seu nome. O Brasil tem hoje o maior eucaliptal do mundo. Mas não gosta de eucalipto. Como disse o sociólogo Gilberto Freyre, a história do pai sempre foi uma “guerra contra a árvore”. E essa é agora a árvore que mais temos. Virou bola da vez. Muito do que se alega contra ele é infâmia. Ele não acaba com a água, esgota a terra ou forma bosques estéreis. Dá a impressão de ser assim, por vingar em áreas previamente degradas pela agricultura predatória.
Num livro escrito recentemente para desagravá-lo, o jornalista Geraldo Hasse conta que, em Alegrete, o eucalipto está servindo para deter a desertificação das pastagens gaúchas, que o vento ia soterrando na areia. No noroeste do Rio de Janeiro, há planos oficiais de plantá-lo em pastos onde não cresce mais nem campim. E, no Espírito Santo, apesar dos pesares, ele gerou, pelo cultivo intensivo como fonte de lenha e celulose, reservas legais bem mais generosas do que as nesgas de florestas deixadas por todos os ciclos econômicos que passaram antes por ali.
No rastro dessa espécie importada, a bagunça genuinamente nacional chegou ao estado na semana em que a Aracruz registrava 2.877 hectares de suas terra como Reservas Particulares do Patrimônio Natural. São as primeiras peças de um quebra-cabeça, ligando os restos de mata atlântica do estado às florestas nativas que sobraram no sul da Bahia. Isso, claro, se o Incra permitir.
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