Com tanto bicentenário pipocando na agenda oficial, é quase um milagre alguém se lembrar, neste ano carregado de efemérides redondas, dos pioneiros que – muito antes da chegada de d. João ou da abertura dos portos, mas sem uma data fixa para a posteridade comemorar – tentaram chamar a atenção de Portugal para a natureza do Brasil.
Gente como o capitão Domingos Alves Branco Muniz Barreto que, no sertão baiano do século 18, se embrenhou entre “índios e sublevados” para catalogar ervas medicinais, tinturas e fibras da flora nativa. E o botânico Manuel Arruda da Câmara, que, por volta de 1794, andou fichando no Nordeste plantas que podiam dar tecidos, estopas e papel. Ou o português Francisco Antonio de Sampaio, médico autodidata multado por charlatanice em uma visitação da metrópole na Vila de Cachoeira, em meados do século 18, que ensaiou o primeiro catálogo sistemático da fauna brasileira, à luz do método de Lineu (criador do sistema de nomenclatura das espécies).
Todos eles gravitaram, de longe, na órbita ultramarina da Academia Real das Ciências de Lisboa, em torno da reforma que o naturalista italiano Domenico Vandelli implantou na Universidade de Coimbra, matriz acadêmica da renovação do Estado português pelo Marquês de Pombal. Foi com Vandelli que Coimbra espanou seu currículo medieval, empoeirado pela escolástica e pela oratória, botando jardins botânicos, laboratórios e expedições científicas a serviço da exploração eficaz de recursos naturais.
Ocupação predatória
No Brasil, a mudança chegou com três séculos de atraso, tarde demais para desentortar o modelo de ocupação que se baseara, segundo o historiador americano Warren Dean, em muita gula pelo pau-brasil, pelo ouro ou pelos diamantes, e na total inapetência pelos produtos naturais que não tivessem lugar marcado nas rotas da economia mercantil.
Mas Vandelli, mesmo sem botar os pés deste lado do Atlântico, teve voz ativa na política brasileira, principalmente por meio de seu discípulo e devoto José Bonifácio de Andrada.
Foi ele, também, que inspirou a primeira exploração sistemática da Amazônia, pelo baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, numa “viagem filosófica” que durou dez anos, percorreu quase 40 mil quilômetros e viu coisas que até hoje os governos relutam em enxergar na região. Por exemplo, o uso predatório e suicida de pratos fortes do extrativismo caboclo, como o peixe-boi e a tartaruga. Seu diário inventariou a produção de dois currais em Barcelos que, em cinco anos, aprisionaram 53 mil tartarugas, aproveitaram 36 mil e desperdiçaram 17 mil por uma “cega avareza” que mal aproveitava “a fartura das manteigas das banhas”.
E a descrição da caça do peixe-boi por Ferreira lembra a que José Bonifácio fez da pesca das baleias nas armações da costa. Tratava-se também de um animal que, “para chegar a seu devido crescimento, deve gastar anos”. Mas “todos os que aparecem são arpoados, mesmo as fêmeas prenhes”. E o “arpoador fica feliz quando encontra um filhote, para mais fácil arpoar a mãe”.
Foram brilhantes carreiras que terminaram mal. Sampaio nem conseguiu editar sua obra. José Bonifácio morreu isolado na Ilha de Paquetá. Ferreira terminou os dias como burocrata deprimido. E as coleções de História Natural de Vandelli fugiram de Lisboa para Paris, durante a invasão napoleônica. De um modo ou de outro, sua obra sumiu de vista. Mas, graças ao esquecimento, ressurgem agora novas em folha, relançadas na série O Gabinete de Curiosidades, da editora Dantes. É o melhor programa da safra do bicentenário.
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