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Do Vagafogo ao SESC Pantanal

Com as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), o setor privado ensina aos órgãos governamentais como fazer e manter uma unidade de conservação.

13 de setembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Se existe uma iniciativa para a conservação da biodiversidade que vem dando certo no Brasil é a do estabelecimento de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). Para início de conversa sua criação, implantação e manejo não dependem de utópicas, “consultas públicas” nem das complexidades e inconsistências da administração pública. As RPPNs refletem um desejo de um proprietário, de uma organização da sociedade civil ou de empresas ou instituições de direito privado, de moto próprio, de preservar algo para sempre. São reconhecidas pelo governo e estão previstas na Lei 9.985 de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

A primeira RPPN implantada no Brasil data de 1990, tem apenas 17 hectares, se chama Vagafogo e é um exemplo de como a conservação pode ser um ótimo negócio. Vagafogo, localizada em Pirenópolis, recebe a visita anual de mais de 10.000 pessoas e garante uma vida interessante e confortável para seus proprietários Evandro e Catarina Engel Ayer, com base em encantar os visitantes, quer seja por suas trilhas na mata ciliar, seu rio e cachoeiras, ou pelo orquidário, ou pelo centro de visitantes, ou, quanto mais não seja, pelo excelente brunch que lá é oferecido e, também, pela venda de geléias e outros acepipes caseiros.

Muitas pessoas e instituições, ao longo destes treze anos, seguindo o rastro luminoso do Vagafogo, criaram RPPNs. São, segundo o Ibama, 403 no nível federal, somando 435.700 hectares. Muitos estados já vêm estabelecendo, também, RPPNs no nível estadual.

Grandes personalidades, em especial, mas não exclusivamente do meio artístico, são proprietárias de RPPNs, como a nossa imortal Rachel de Queiroz, que estabeleceu uma, em Quixadá, com 300 hectares. Rachel se foi, mas a RPPN não, pois ela é gravada, com caráter de perpetuidade, à margem da escritura da propriedade. Assim, herdeiros ou eventuais compradores, no caso de venda, têm de manter a área conservada.

Sebastião Salgado, Ney Matogrosso, Almir Satter, Miriam Leitão, Sérgio Abranches, José Roberto Marinho, que possui duas na Bahia que somam 1.700 hectares, Russell W. Cofin com três em Santa Catarina que atingem 2.300 hectares, aderiram ao grupo daqueles que querem preservar suas matas, rios e ecossistemas. Lamento não poder mencionar os mais de 400 nomes de proprietários de RPPNs neste artigo, mas quem quiser saber mais é só acessar a lista do Ibama.

O município que tem o maior número de RPPNs (10) é o de Presidente Figueiredo, no estado do Amazonas, todas somando 490 hectares. O estado que tem a maior extensão de RPPNs é o de Mato Grosso com 172.960 hectares. Mas, algumas foram reconhecidas com 1, 2 ou 3 hectares no Distrito Federal e em Minas Gerais. Claro está que áreas tão pequenas não podem garantir nada ou quase nada em termos de conservação da biodiversidade. No Acre a figura não pegou: existe somente uma RPPN, no nível federal, assim como em Sergipe.

As maiores RPPNs e as melhores, em termos de manejo, pertencem a organizações não-governamentais, como a da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza no Paraná, a famosa Salto Morato, com 810 hectares em plena Mata Atlântica, os 52.800 hectares da Ecotrópica no Pantanal, a da Associação Caatinga no Ceará, com mais de 5.300 hectares, as da Funatura, no Cerrado, a da Biodiversitas em Minas Gerais, as manejadas pelo IESB na Bahia, a da Conservation International no Pantanal de Mato Grosso do Sul, a do Seringal Triunfo no Amapá, com 10.000 hectares, e assim vai.

Muitas são mantidas por empresas privadas, como os mais de 6.000 hectares da Veracruz Florestal na Bahia, a da Empresa Florestal Garcia em Santa Catarina, com mais de 5.000 hectares, as da Companhia Vale do Rio Doce, da CEMIG, etc., etc.

Mas me desculpem a verdade, pois todas ou quase todas merecem efusivos aplausos, a maior e melhor manejada é a do SESC, com seus 88.000 hectares (já reconhecidos, embora a Reserva do SESC seja de 106.000 hectares) no Pantanal do estado de Mato Grosso. Sua infra-estrutura é completa, com alojamentos para pesquisadores, postos de guardas com pista de pouso, torres de controle de incêndios, um moderno centro de interpretação ambiental, borboletário, formigueiro, trilhas interpretativas e um hotel “padrão SESC” na outra margem do rio Cuiabá, fora dos limites da RPPN. Tem toda classe de equipamentos como barcos, avião, carros, caminhões. Há uma série de vídeos e publicações sobre a área. São 45 funcionários treinados e bem remunerados para o bom manejo da reserva. E lá se faz, também, algo muito raro no Brasil: desenvolveram-se ou estão sendo desenvolvidas 44 pesquisas científicas para sustentar a qualidade do manejo da área e aprimorar a educação ambiental.

A RPPN do SESC Pantanal serve de modelo de como gerir bem uma unidade de conservação. É a única área privada no Brasil reconhecida como Sítio de Ramsar.

Da pequena mas eficaz Vagafogo à exuberante SESC Pantanal, muita coisa aconteceu de bom e alguns pequenos tropeços, também. Mas a lição aí está: em geral o setor privado tem conseguido manejar e manter em melhores condições suas reservas particulares que o governo tem conseguido manter as unidades de conservação estabelecidas pelo Poder Público. Evidentemente o ideal seria que todas fossem bem manejadas e implementadas no campo e que as particulares ajudassem a somar com o Sistema Nacional, mas talvez os órgãos governamentais possam aprender como é e como se implementa uma unidade de conservação no campo, com as RPPNs.

Se o setor privado pode fazê-lo, o setor público deveria poder fazer muito mais, pois é sua a responsabilidade maior de conservar a rica biodiversidade do Brasil.

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