No Brasil novo, para o governo já não tão novo, não existem problemas ambientais. O governo novo do Brasil consegue resolver todos os problemas ambientais apenas pensando intensamente neles ou, claro, discutindo sobre os mesmos. O uso dos transgênicos, a transposição do rio São Francisco, as queimadas, o saneamento urbano…. tudo, tudo está sob o eficiente e inteligente controle popular e participativo do governo. O último episódio desta extraordinária capacidade, quase telepática, de resolver os problemas, é que a pavimentação da BR-163, que vai cortar em duas partes o sul da Amazônia, ligando Cuiabá a Santarém, não é apenas uma obra indispensável para o desenvolvimento nacional, mas também será um grande beneficio ambiental e social para a região.
O anúncio foi feito por quem, no governo federal, deveria estar preocupado com os impactos ambientais e sociais negativos desta obra: o Secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente. Segundo ele, tudo está “equacionado” nesta obra magna. O povo, todo o povo da região, concordou com a necessidade inadiável da estrada e sua pavimentação; os eventuais conflitos com os indígenas e com as populações tradicionais foram todos resolvidos para satisfação geral, os impactos ambientais foram adequadamente previstos e serão mínimos e devidamente compensados e, no final, todo mundo ganhará com essa obra que será econômica, social e ambientalmente a melhor já feita na Amazônia… Isso é um recorde impressionante, levando em conta que jamais na história dessa região uma estrada foi construída com resultados tão positivos. Nem se permitiu tanto otimismo no passado, no momento de empreender uma obra dessas. Essa é uma capacidade única do governo atual: acreditar firmemente que seus desejos se transformam em realidade… inclusive com seu IBAMA em interminável greve e com o orçamento mais baixo da história ambiental do país.
Na verdade, é penoso comparar aquelas ilusões ou sonhos governamentais com a realidade, tão diferente, que se conhece na mesma região onde a obra será construída. Primeiramente, basta ver o desastre ambiental e social que foi a construção do primeiro trecho dessa estrada, entre Cuiabá e Guarantã do Norte, onde foram destruídos milhares ou quiçá milhões de hectares de florestas, sem se deixar nem as matas ciliares, que protegem as águas, e sem nenhum respeito à legislação ambiental e contra até o senso-comum. Populações tradicionais tiveram que abandonar suas terras ante o avanço da soja e dos comerciantes de terras. Nem os índios lograram resistir aos madereiros e garimpeiros. Pior, agora até os índios “querem” cultivar soja transgênica. A floresta mais rica do mundo foi transformada num deserto biológico, dominado pela soja, que cresce sob a fumaça das queimadas. O extraordinariamente tecnificado cultivo da soja dá emprego, mas nem tanto assim, e o emprego que gera não é para os pobres locais, que devem ir embora de suas terras. Quando a madeira e as florestas acabam, pouca coisa resta para a sobrevivência daqueles que não estão capacitados para trabalhar na agricultura intensiva.
Claro que a soja e a madeira enriquecem muita gente, esses mesmos que agora querem que a estrada BR-163 continue entre Guarantã do Norte e Santarém, asfaltada. São os donos do pedaço e, aparentemente, também são donos de uma parcela do poder constituído. Não é difícil para esses poderosos senhores da terra organizar consultas públicas que apoiem, unanimemente, a proposta de fazer mais 953 km de estrada asfaltada. Transporte gratuito, merenda, gorjetas e, depois da bem sucedida reunião pública, uma generosa ração de cachaça ou cerveja, fazem aprovar qualquer coisa, em especial quando o patrão ou os prefeitos são os promotores da estrada e os facilitadores da audiência.
Não se está contra o desenvolvimento. Nem sequer se está contra a estrada BR-163, que vai requerer uma inversão de quase um bilhão de reais – pouca coisa, se fosse o preço verdadeiro. O que se está é contra a política de avestruz, de não querer ver e assumir o que realmente vai acontecer nessa região antes, durante e após a construção. Neste momento, toda a terra disponível ao longo dessa estrada está sendo negociada, ou já está ocupada pelos mesmos ricos que promovem sua construção. O IBAMA e a FUNAI, quando pretenderem criar ou ampliar unidades de conservação e territórios indígenas, não vão encontrar nada que não esteja já ocupado, com “benfeitorias” que deverão pagar a preço de ouro ou “deixar para lá”. Não existe nenhuma razão que permita acreditar que o desenvolvimento selvagem, que já aconteceu na mesma estrada, não continue até Santarém, especialmente na situação de calamidade em que se encontra atualmente o setor ambiental. Isso significa desmatamento sem respeito à lei, destruição de matas ciliares, roubo de madeira nas áreas indígenas e unidades de conservação, caça sem controle, garimpagem e contaminação de rios e mais grilagem de terras.
Um representante do Ministério da Agricultura disse que essa estrada e esse uso da terra são indispensáveis “para dar de comer à população carente, em especial do Norte”. Seria para rir, se não fosse para chorar. Qualquer um sabe que o Brasil produz mais de três vezes sua demanda interna de grãos. Seria mais inteligente ter assumido que toda esta produção é destinada para a campanha da Fome Zero Mundial, promovida pelo governo, ou pelo menos reconhecer que ela serve para acabar com a fome do gado da Europa e da China. O problema da soja e de outros produtos de exportação massiva é que, junto com ela, se exporta nossa água, os nutrientes de nosso solo e quiçá o potencial agropecuário futuro do país. A agricultura intensiva acaba com os recursos hidrológicos, perde e contamina os solos e, claro, elimina a biodiversidade de que o governo atual tanto fala. O governo nem consegue perceber o absurdo de tolerar ou fomentar a destruição de todas as espécies animais e vegetais de milhões de hectares cada ano, ao mesmo tempo que, em nome da biodiversidade, praticamente paralisa a pesquisa científica nacional e realiza perseguições ridículas aos pesquisadores estrangeiros, acusados de “biopiratas”.
E o mais triste disto tudo talvez seja que, depois de inverter milhões nessa estrada e de destruir outra enorme porção de nosso verde, a soja caia de preço, devido ao aumento de produção previsto nos EUA, e/ou que apareçam doenças como a ferrugem, que elevem o custo de produção, fazendo não competitivo seu cultivo.
Até quando o novo governo vai se comportar como vendedor de ilusões? Quando vai amadurecer e entender, por exemplo, que os resultados macroeconômicos positivos das exportações de commodities como a soja não se transformam necessariamente em benefícios sociais ou macroeconômicos? De outra parte, quantos novos automóveis Ferrari e quantos novos jatinhos e helicópteros importados vão poluir as ruas e o ar de São Paulo? Quantos bancos internacionais vão dispor de novas contas de brasileiros? Com esse estilo de desenvolvimento, apressado demais e sem medir as conseqüências, populações pobres do interior da Amazônia vão ficar em pior situação do que antes. Sempre acreditei que essas populações eram o objetivo do partido no poder. Hoje… não sei. Quem sabe seja realmente possível que a força do pensamento levemente fanático do governo faça, como pretende, uma obra admirável. Ontem li que os macacos podem mover objetos com a força do pensamento!
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