Todo mundo sabe que os produtos da indústria farmacêutica, assim como os da beleza, saem eminentemente do mato. São as plantas exóticas, suas flores e frutos ou suas resinas, leites e folhas que por milênios alimentaram as curas e os procedimentos para manter a beleza dos humanos. Grandes fortunas foram armazenadas explorando a natureza e o saber das populações tradicionais de todo o planeta e, em particular da Amazônia, da Mata Atlântica e do Cerrado. Embora se faça muita propaganda, a verdade é que pouco dessas fortunas, especialmente em tempos recentes, voltou para o mato. Algumas empresas falaram disso, mas ficou demonstrado que era apenas para vender mais. Por isso, dedico-me a falar de uma das poucas empresas desse ramo que tanto tira como põe dinheiro no mato… e tudo com muita discrição.
Criada há 14 anos, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza é ímpar no Brasil em vários aspectos. Primeiro, é verdadeiramente uma fundação. Melhor dizendo, utiliza seus fundos para apoiar iniciativas de outros. Executa diretamente apenas uma parcela de seus recursos. Segundo, usa doações absolutamente voluntárias da empresa que a patrocina. Não é dessas fundações que apesar de seu título vivem de pedir dinheiro a terceiros e executam todos os seus projetos. Terceiro, O Boticário não caiu na fácil tentação de fazer somente obras sociais. A empresa faz muito trabalho social, mas a Fundação, ainda que a empresa produza cosméticos, preferiu apoiar o desenvolvimento social e econômico do país com obras que nada têm de cosmético. Menos populares, mas infinitamente mais transcendentes. A Fundação prefere ensinar os pobres rurais a fazer dinheiro aproveitando sabiamente os recursos naturais do que dar esmolas bem publicitadas.
Os recursos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza são basicamente 1% do faturamento líquido da empresa O Boticário (que foi de R$ 352,3 milhões em 2001). Para aplicar esses recursos em conservação, a Fundação desenvolveu o Programa de Incentivo à Conservação da Natureza, que seleciona projetos com os seguintes objetivos: conservação e manejo de espécies ameaçadas; controle de plantas exóticas invasoras; desenvolvimento e implementação de políticas públicas; fiscalização e proteção ambiental; manejo de unidades de conservação; pesquisa aplicada em ecologia e conservação da natureza; restauração de ecossistemas e valorização de áreas verdes urbanas. Já foram mais de 900 os projetos aprovados e financiados pela Fundação.
Não é qualquer projeto que aprova, pois a demanda é grande e a seleção rigorosa. Mais de 8 mil projetos já foram analisados. Tem formulário próprio, minucioso, e cada projeto recebido é enviado a um consultor ad hoc especialista no assunto para o parecer. São mais de 100 consultores, que trabalham gratuitamente. Nesta primeira etapa o consultor pode aprovar integral ou parcialmente o projeto, ou não recomendá-lo. Aqueles aprovados total ou parcialmente passam por um comitê de especialistas seniores, que escolhem os mais apropriados e prioritários, em consonância com os objetivos da fundação, para a análise e aprovação final do Conselho. O Conselho é constituído por reconhecidos especialistas, em sua maioria pessoas externas à empresa, que também trabalham gratuitamente. Desta forma se consegue a imparcialidade e a lisura suficientes para evitar qualquer nesga de suspeita de favorecimento.
O total de recursos para os projetos aprovados de 1991 até hoje aproxima-se a 5 milhões de dólares, embora a fundação tenha aplicado cerca de 9 milhões até o exercício de 2002, porque tem outros programas e projetos. O mais conhecido deles é sua Reserva do Salto Morato, de 2.300 hectares em plena Mata Atlântica, uma área protegida com excelente manejo no campo e aberta à visitação. Graças ao sucesso da Reserva de Salto Morato, foi aprovada pelo Conselho da Fundação a implantação de outras três reservas naturais até 2007, em outros biomas brasileiros. Na Reserva, parte da educação ambiental é dedicada ao treinamento de funcionários federais, estaduais, municipais e de organizações da sociedade civil para o manejo de recursos naturais, especialmente em unidades de conservação. A capacitação de pessoas para a conservação na Reserva Salto Morato já se tornou uma tradição no país, bem como outros cursos que ela oferece e que já treinaram centenas de profissionais e jovens. Seu trabalho no campo técnico e científico é complementado pela publicação, junto com a Universidade Federal do Paraná, de vários livros sobre conservação da biodiversidade, além de séries técnicas e de uma revista especializada.
A Fundação O Boticário também dedica recursos importantes para a educação ambiental no meio urbano, como forma de forjar conhecimento e apoio para a natureza. A Estação Natureza em Curitiba é um dos sucessos da instituição. Em conseqüência, mais três Estações estão em processo de implementação: uma no Pantanal, em Corumbá, outra no nordeste em Fortaleza e a última na região sudeste, possivelmente em São Paulo. Outro programa estratégico é o apoio a projetos de eco-desenvolvimento, priorizando a conservação de terras privadas.
Das suas grandes realizações destacam-se os quatro Congressos Brasileiros de Unidades de Conservação, desenvolvidos em parceria com outras instituições, em especial com a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação. Estes Congressos, aos quais assistem mais de mil pessoas (este ano, em Curitiba, foram mais de 1.500), além de sua rica programação, com conferências e seminários com presença das maiores autoridades brasileiras e mundiais no tema, publicam anais que se transformaram na maior e melhor referência disponível em português sobre as unidades de conservação.
Como dito, em geral as fundações vinculadas a empresas optam por aplicar recursos na área social ou esportiva e raras vezes em algo da área ambiental. Por seu lado, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza tem seu foco na conservação da natureza desde que foi criada e não mudou de orientação conforme o vento. É evidente que a empresa aplica no social, mas no longo prazo, como conseqüência lógica da conservação de nossas matas, bichos e águas.
O comportamento do presidente e do vice-presidente da empresa e da Fundação é exemplar. Participam como todos, visitam os projetos juntamente com os membros do Conselho, se interessam genuinamente pelos temas. E, o mais importante, jamais impõem sua vontade ou constrangem os conselheiros. Este comportamento baseia-se na premissa de que o Conselho existe para decidir os rumos e a aplicação dos recursos disponíveis, e não para agradar a empresa ou seus franqueados, que também aportam recursos e são mais de 2 mil no Brasil.
É uma pena que a iniciativa de Miguel Krigsner, presidente da Fundação O Boticário e principal dono da empresa, não seja seguida por outros empresários e empresas no Brasil. Os ideais forjados por Stephan Schmideiny, o famoso empresário suíço que tem dedicado grande parte da sua vida a fomentar a participação da empresa privada na conservação do meio ambiente, como dever iniludível para com o futuro da sociedade, têm em Kriesgner seu melhor êmulo na América do Sul. Krigsner é, realmente, o único boticário que cuida do nosso mato.
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