Em pleno sudoeste do Estado de Goiás, no município de Serranópolis, existe um dos maiores patrimônios arqueológicos do Centro-Oeste, segundo os especialistas no assunto. Protegidas na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da Pousada das Araras, com 175 hectares, que fica próxima ao Parque Nacional das Emas, estão 612 pinturas rupestres. Este cenário serviu de pano de fundo para um absurdo jurídico e um escândalo de grandes proporções que ilustram bem uma das dificuldades enfrentadas por aqueles que querem fazer trabalho ambiental no Brasil.
Em 1996, uma ONG, a Funatura, foi convidada pelos donos da propriedade a visitar e avaliar a área. O que queriam, então, era transformar os 175 hectares em RPPN, com o objetivo de protegê-los e ampliar a visitação pública, o que vinha acontecendo de forma anárquica. A Funatura considerou que a área tinha muito potencial natural, inclusive porque abriga várias espécies da fauna silvestre raras ou ameaçadas de extinção, como o urubu-rei, a arara-vermelha, a arara-canindé, o tamanduá-bandeira, o puma, o lobo-guará e o tatu-canastra, entre outras, bem como magníficas paisagens e, claro, vestígios arqueológicos importantes. A situação do patrimônio, que tinha sido estudado por eminentes arqueólogos de Goiás, era particularmente lamentável, pois o público e o gado o acessavam sem restrições. Muitos setores estavam danificados pelo fogo, pela fumaça, erosão, pressão das vacas contra as paredes de pedra, pelos ninhos de insetos, pelas mensagens amorosas gravadas e pichações com carvão corriqueiras nestes locais.
Assim, um ano depois, a Funatura, dispondo de recursos de um projeto internacional para promover o estabelecimento de santuários de vida silvestre, iniciou seus trabalhos na Pousada das Araras. Nos anos subseqüentes, diversas ações e benfeitorias foram realizadas: preparou-se um plano de manejo, foi construído um centro de visitantes, implantaram-se trilhas interpretativas, foi instalada sinalização, o gado foi retirado, a área foi cercada e foram feitos aceiros para evitar incêndios, além da confecção de diversos materiais educativos. Na preparação do plano de manejo, foram consultados especialistas de todas as áreas e, também, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O projeto incluía, como era lógico, a construção de acessos e passarelas para que a observação das pinturas rupestres não as danificasse. Antes de iniciar este trabalho, mais de 60 sacos de fezes de gado foram retirados do núcleo arqueológico.
A área foi reconhecida pelo Ibama como RPPN em 1998, não somente por sua riqueza arqueológica, mas, especialmente, por sua riqueza biótica. Assim, em 1999, tudo parecia correr às mil maravilhas. Mas, quando terminaram as obras e um pouco antes de inauguradas oficialmente, foi feita uma denúncia ao Ministério Público acusando a Funatura de promover uma intervenção nas pinturas rupestres, degradando-as gravemente e prejudicando o valor arqueológico do local. A denúncia, antes sequer de ser comunicada à Funatura, já tinha sido difundida nacionalmente pelo rádio, televisão e imprensa em geral. Grande surpresa!
O que tinha acontecido, de fato, é que o trabalho do carpinteiro contratado para construir a passarela, acompanhado periodicamente pela equipe técnica e diariamente pelos proprietários da área, foi complementado por uma “obra de arte” que passou despercebida de todos. O mestre da obra, por conta própria e em horário extra, havia “restaurado” 25 das 612 pinturas rupestres, utilizando tintas naturais que ele mesmo tirou de plantas locais. A Funatura tinha contratado o carpinteiro exatamente para proteger o sítio do vandalismo, sem suspeitar que o temperamento artístico dominaria a razão do bom homem. A denúncia foi feita pelos mesmos arqueólogos locais que precisamente tinham se negado, reiteradas vezes, a dar seu apoio técnico na preparação do plano de manejo, em que pese o fato de que eram os que melhor conheciam o lugar. Também foi denunciado outro erro, menor, que dizia respeito ao fincamento de parte da passarela, curiosamente feito onde existiam placas comemorativas do “descobrimento” realizado por esses arqueólogos.
Daí para frente, o assunto virou um circo nacional. Ninguém mais se importou com o fato de que toda a área estava abandonada e sendo degradada e que os denunciantes, arqueólogos locais, nada fizeram para mudar este quadro antes da entrada da Funatura. Ninguém mais reconheceu o trabalho pioneiro e indispensável da Funatura com relação ao patrimônio natural e cultural da região. Foram só ataques sobre ataques, como os de uma horda de cachorros famintos. Os arqueólogos tiveram seus 15 minutos de fama falando mal da Funatura nas televisões; o delegado da polícia se transformou num Indiana Jones caipira e fez uma cuidadosamente-divulgada investigação criminal-arqueológica estapafúrdia; o Ministério Público insistiu dramaticamente na gravidade do assunto em inúmeras entrevistas; o Procurador de Justiça fez uma lacrimosa defesa do patrimônio da Nação, reclamando o mais severo dos castigos para a vilã. Esta, a Funatura, arrastada pelo furacão de críticas, sem capacidade de defesa, transformada do dia para a noite num leproso sem teto, ante a iminência de uma sentença desastrosa para a instituição, abdicou de seguir tentando se defender e aceitou um acordo. Finalmente, o juiz foi o mais sensato de todos, condenando a Funatura a pagar uma alta soma em dinheiro, porém não exorbitante. Esquisito, na sanção, foi ordenar à Funatura que doasse esse dinheiro a entidades de beneficência, em vez de dedicá-lo a preservar o patrimônio arqueológico.
Este escândalo merece análise, pois não é um caso isolado na vida de organizações como a Funatura. É comum se denegrir publicamente essas instituições, sem permitir direito de defesa, ante qualquer suspeita ou apenas como conseqüência de vinganças pessoais e outras mesquinharias. De seu lado, a Funatura reconheceu que o episódio relatado não deveria ter acontecido, sem tentar se esconder atrás do trabalhador, um excelente carpinteiro, mas semi-analfabeto, que falava a verdade a quem quisesse lhe escutar: que fora advertido para não tocar em nada e que sabia bem que seu trabalho de construção da passarela era exatamente para preservar as pinturas rupestres de atos como o que ele cometeu. De outro lado, a denúncia foi feita com assombrosa má-fé. Os denunciantes tinham sido reiteradamente convidados a participar do plano de manejo e a colaborar com o projeto. Não aceitaram porque a remuneração disponível não era suficiente, levando a Funatura a se basear na autorização do IPHAN, legalmente suficiente. Por isso, ao invés de alertar a Funatura, preferiram a denúncia pública. Tampouco levaram em conta que o dano era mais aparente que real. A Funatura contratou uma das mais famosas arqueólogas do Brasil, com décadas de experiência na Serra da Capivara (PI), onde está o maior patrimônio de pinturas rupestres do país. Seu laudo técnico, descartado pelas autoridades participantes, esclarecia que a tinta vegetal utilizada pelo carpinteiro desapareceria sozinha em pouco tempo, lavada pelas águas. Sendo assim, todo o episódio ocorrido, desencadeado pela denúncia cuja intenção era somente favorecer a promoção pessoal de funcionários públicos medíocres, não passou de uma tormenta num copo d’água, que terminou prejudicando moral e economicamente uma instituição séria.
A experiência deixou marcas, ficou um sabor muito amargo nas vítimas, os diretores e funcionários da Funatura e os proprietários da Reserva. Espanta saber que a imprensa, como foi o caso, quase sempre se inclina para o lado dos denunciantes e que, sem se propor a fazê-lo, vai criando as condições para que outros atores intervenham no mesmo sentido, formando uma avalanche onde a vítima não tem escapatória. O pior é que esta história não tem conclusão nem recomendação. Erros ou problemas quase fortuitos como o que foi descrito podem acontecer a qualquer momento e a qualquer instituição. O que se espera é que o problema seja tratado com mais equanimidade.
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