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A CESP foi um exemplo

A construção de hidrelétricas atropela todo e qualquer cuidado ambiental. Nos anos 70 e 80, uma empresa provou que é possível fazer diferente: a CESP.

7 de dezembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

O que se debate muito nos nossos dias é o impacto ambiental e conseqüentemente social das empresas energéticas, principalmente das usinas hidroelétricas, que, em geral, inundam enormes áreas. Os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA) primam por seu volume em peso, como se o peso de documentos fosse importante. Embora muitas vezes cumpram as exigências legais, na prática existe muito pouco de positivo. Quase tudo é uma maquiagem bem feita, por certo, por profissionais que cobram muito caro, mas que na verdade pouco se lixam com o que vai acontecer em relação ao barramento do rio e à própria operação da usina.

Primeiramente, há que se dizer que ninguém pode negar a importância da energia elétrica para o desenvolvimento social e econômico de nossas sociedades, nem o fato de que a geração hidroelétrica é relativamente limpa. Isso de “relativamente” é porque, na verdade, a hidroenergia não contamina apenas o ar, pois a água que sai das barragens não é, realmente, limpa. Mas, como bem se sabe, há um alto preço ambiental e social a se pagar, ainda mais quando os cuidados com as minimizações dos impactos previstos não são tomados no campo.

Muito pior é quando as hidroelétricas são construídas em ecossistemas ainda pouco alterados, mudando todos os cursos de água com potencial energético, com um barramento atrás do outro. Vai se destruindo a vegetação, os peixes, a vida aquática e os demais animais, inundando milhares de hectares e muitas vezes engolindo florestas, “salvando” apenas alguns indivíduos de algumas espécies para shows televisivos. As equipes jornalísticas evidentemente não esperam para ver como a maior parte desses bichos, heroicamente salvos por cientistas, bombeiros e policiais, agoniza após sua liberação.

Deixar sem hidroelétricas apenas os afluentes de uma das margens dos maiores rios, já poderia resolver pelo menos a reprodução dos peixes que fazem piracema, como propôs Michael Goulding, um dos maiores especialistas mundiais em peixes amazônicos, há muitos anos. Mas não adianta. O setor energético, tanto público como privado, não quer ouvir nada e muito menos pagar as conseqüências de matar rios, com todas as seqüelas que tal ato acarreta.

Práticas exemplares

Para provar que algo sério pode ser feito em matéria de geração hidroelétrica, quero recordar os trabalhos da Companhia Energética de São Paulo (CESP), desde fins da década de 1970 até meados da década de 1980. A CESP, na ocasião, dirigida pelo conhecido cientista brasileiro José Goldemberg, mereceu elogios internacionais pelo seu esforço para limitar, compensar, amenizar e restaurar os impactos ambientais das suas infra-estruturas. A CESP tornou-se até membro da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), maior entidade ambientalista do mundo.

A partir de uma gerência ambiental, com poder de decisão, a CESP conseguiu reflorestar e “naturalizar” mais de 10.000 hectares das ilhas formadas pelos seus reservatórios, bem como as suas margens, com essências nativas da Mata Atlântica, com mudas produzidas em seus enormes viveiros. As áreas reflorestadas, apenas restaurada a disponibilidade de alimentos, foram repovoadas com aves, pequenos mamíferos e outros animais provenientes de criadouros da empresa, num esforço para reconstituir o ecossistema original. Talvez a hidroelétrica de Rosana tenha sido a primeira na América do Sul onde se retirou as árvores e a vegetação antes da inundação, para evitar contaminação posterior.

Além do mais, a CESP ajudou o manejo e implementação de muitos Parques Estaduais, entre eles o do Morro do Diabo, habitat do mico-leão preto, espécie endêmica do Estado de São Paulo e ameaçadíssima de extinção.

No que concerne aos peixes, antes dessa época, a CESP, a exemplo de muitas outras empresas energéticas, semeava espécies principalmente exóticas produzidas em suas estações de aqüicultura, sem preocupação com o impacto dessas introduções no ecossistema. Foi nesse período que se começou a realizar estudos de biologia pesqueira e, graças a seus resultados, se protegeram, por exemplo, alguns afluentes do Tietê. Colocou-se um ponto final na introdução de espécies exóticas e se conseguiu até trabalhar com espécies tão nobres como a piracanjuba, do mesmo gênero da truta, ou da piraputanga do Pantanal, peixes de manejo complexo que a CESP foi primeira em dominar. Conseguiu-se até mesmo a reprodução de espécies de piracema em alguns afluentes dos tão maltratados rios paulistas.

No que concerne a aves, a CESP começou a participar do anilhamento de aves aquáticas migratórias, que praticamente não existia no Estado de São Paulo até então, embora existisse até em estados mais pobres como Sergipe. A CESP chegou a ser campeã brasileira de anilhamento. Era até divertido ver os orgulhosos peões das obras gigantescas manusearem e anilharem passarinhos. Começou-se a criar jacu, mutum, jacutinga, entre outras espécies, visando, como dito, o repovoamento em áreas reflorestadas pela empresa, bem como a criação de mamíferos como paca, caititu e cutia. Se tudo isso parece pouco, basta lembrar que o zoológico da CESP, em Ilha Solteira, era um dos melhores do país. Os planos diretores das áreas naturais preservadas ou restauradas dos reservatórios ganharam em sofisticação e assim muitas delas foram abertas à visitação pública para fins de educação e recreação.

O cuidado ambiental da CESP era tão central na filosofia da empresa que até a abertura ou não das comportas das barragens era decidida unicamente com a aprovação prévia do Departamento de Meio Ambiente da empresa, decisão historicamente exclusiva dos engenheiros barragistas. Ainda mais naqueles tempos, a relação dos ambientalistas e dos barragistas na empresa era equilibrada e ótima, como ficou demonstrado pela eficiência e qualidade do trabalho da CESP naquele período.

O final de trabalhos tão relevantes é triste. Quase tudo o que a CESP fazia, com exceção da produção e venda de energia, terminou. Os técnicos que tinham experiência e conhecimento foram saindo da empresa, desgostosos com os novos rumos, e assim se perdeu uma excelente oportunidade de demonstrar a quem quisesse ver que muito pode ser feito pelo setor energético, se há um mínimo de responsabilidade social e ambiental.

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