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Decreto maldoso

Graças a uma canetada do presidente Lula e a criação do termo “dupla afetação”, o Parque Nacional do Araguaia, na Ilha do Bananal, foi entregue aos índios.

25 de abril de 2006 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Pelo decreto federal de 18 de abril de 2006 o Presidente Lula conseguiu a façanha de acabar com um Parque Nacional, sem precisar de lei específica como reza a Constituição e sem ouvir sequer o Congresso Nacional. Trata-se do já combalido Parque Nacional do Araguaia na ilha do Bananal, proposto em 1876 pelo abolicionista André Rebouças e estabelecido 83 anos depois, em 1959. Esse Parque foi, juntamente com o de Sete Quedas, o primeiro proposto no Brasil e como Sete Quedas está desaparecendo graças eminentemente à falta de prioridade e coragem de nossos governantes para se resolver problemas de implementação de nossos Parques Nacionais e outras áreas protegidas, como seria necessário.

O tal decreto arrebenta com o Parque Nacional do Araguaia com uma figura bem nova no nosso sistema nacional de áreas protegidas: a “dupla afetação”. Figura inventada por este governo para solucionar com uma canetada um problema que se arrasta há anos, tanto no Araguaia como em outros parques do Brasil. Trocando em miúdos, a dupla afetação significa uma dupla ou tripla ou até quádrupla administração da área de um parque nacional criado como manda a Lei. A figura da dupla afetação não é prevista na Lei que institui o Sistema Brasileiro de Unidades de Conservação. Ao contrário, a lei diz claramente que o uso direto dos recursos naturais é proibido em Parques Nacionais, os quais são estabelecidos para se conservar amostras da biodiversidade do país para fins científicos, educativos e turísticos.

Mas, é mais fácil tirar-se as áreas de parques nacionais para índios, quilombolas, populações tradicionais que resolver a situação dessas comunidades em áreas de fazendeiros ou de outras atividades humanas. Vai-se dando pedaços e até parques inteiros para os mesmos, sem pensar nos outros 170 milhões de brasileiros que vivem no mesmo país. O princípio destas autoridades parece ser que os índios ou seus remanescentes são pobres coitados, sempre uns anjinhos, deficientes mentais que precisam de esmolas e não de políticas sérias e oportunidades reais de tratá-los humanamente e com equanimidade.

São tratados como bichos de estimação, que por não raciocinarem, precisam de nossos restos de comida. Por outro lado, porque só dar esmolas a índios ou a remanescentes, ou a quem se declara índio, com os recursos do restante da população do Brasil se os deveres dos mesmos infelizmente ainda não estão bem especificados e não são os da nossa sociedade? É evidente que os 800 mil índios auto declarados como tal, com 12,4% da nossa extensão territorial, ou 105 milhões de hectares são os maiores latifundiários do país. Por que então dar-lhes mais terras justamente de parques nacionais? A resposta é simples: porque é mais fácil e mais barato. Porque também os índios ou seus remanescentes foram sendo empurrados para estas áreas governamentais pelos fazendeiros, grileiros, madeireiros, mineradores ante a inércia do poder público. Afinal, os índios estão na sua grande maioria abandonados pelo governo que só faz decretar áreas protegidas e não dá dinheiro para seu manejo e implementação. São terras de ninguém e claramente desprezadas, em especial por esse governo que lhes outorgou o pior orçamento das últimas décadas e que só parece se preocupar com aquelas áreas protegidas de uso direto dos recursos naturais que de pouco servem para preservar a natureza.

O Presidente Lula poderia, num ato de coragem, propor ao Congresso Nacional a extinção do Parque Nacional do Araguaia, via projeto de Lei, como exige a Constituição, ao invés de decretar, ilegalmente a meu ver, a tal da dupla afetação. O pretexto constitucional alegado pelos juristas governamentais para dar prioridade absoluta aos índios, neste caso altamente discutível, seguramente será rebatido pelos especialistas.

Os índios e quem os explora na ilha do Bananal, onde está o Parque Nacional do Araguaia e uma reserva indígena contígua, já foram e são usados em manobras de corrupção, jogo de interesses, alcoolismo, caça e pesca predatória. Já detonaram com o Parque Nacional que fora estabelecido primeiramente (em 1959) em toda a ilha com 2 milhões de hectares. Na ilha, mas eminentemente fora dela, habitavam os grupos indígenas Karajá, Javaé e Avá Canoeiro. Assim, em 1971 o governo brasileiro, com a anuência das partes envolvidas, redelimitou o Parque Nacional, deixando para os índios 1,4 milhão de hectares. Ou seja, 466 hectares por índio. Sobraram oficialmente quase 500 mil hectares como Parque Nacional e, na prática, apenas um quinto disso, agora perdidos pelo último decreto do presidente Lula. É mentira ou desconhecimento alegar-se que os índios protegem a área e os recursos naturais na ilha. Os 3 mil índios que lá vivem já tinham muita terra para explorar. Muita fauna e flora. Acabaram com o pirarucu, com as tartarugas, com os jacarés, com as matas.

Qualquer brasileiro que queira constatar a verdade é só ir lá à ilha do Bananal para ver. A situação é assustadora e o decreto da dupla afetação não vai melhorá-la, além de determinar o fim do Parque e abrir um precedente muito perigoso. Afinal, alguns parques estaduais também abrigam algumas populações de índios ou seus remanescentes e em muitos estados os governantes também não têm a coragem de enfrentar o problema de regularização fundiária de frente. Preferem poupar recursos para a regularização das terras e dar as terras de áreas protegidas para índios, populações tradicionais e quilombolas. É mais fácil e eles passam como bonzinhos perante a opinião pública.

A opinião pública, é verdade, está confundida pela propaganda maciça e enganosa do Governo Federal sobre a proteção da natureza. Os recordes de desmatamento, queimadas, contaminação e outros igualmente tristes são dissimulados com operações policiais aparatosas que, na verdade, não resolvem nada e, em especial anunciando a criação de milhões e milhões de hectares de “unidades de conservação” novas. O pequeno detalhe, cuidadosamente escondido, é que essas unidades de conservação novas são quase todas de uso direto, ou seja, que são estabelecidas para serem exploradas para os mais diversos usos, inclusive desmatamento parcial para fins agropecuários. Preservar amostras da natureza é na realidade de muito baixa prioridade. Também esquece o Governo de mencionar que, depois de criadas, essas áreas são abandonadas e que nenhum dinheiro em geral é destinado a racionalizar sua exploração pelos usuários. As unidades de conservação de uso sustentável ou direto são, na realidade, uma ação de reforma agrária. Não são feitas para conservar a natureza.

A engenhosa e maldosa artimanha da dupla afetação já foi utilizada neste governo no Parque Nacional de Monte Roraima. Este e outros governos deixaram que se acabasse com o Parque Nacional de Monte Pascoal por causa dos Pataxós. Também entregaram grande parte da Reserva Biológica do Guaporé aos quilombolas. Qual será o próximo?

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