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Fogo sagrado, até quando?

Pôr fogo no mato é um hábito tão generalizado e tão pouco punido no Brasil que sua única função talvez seja manter viva uma tradição do tempo das cavernas.

2 de outubro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

A visão noturna é esplêndida: enormes frentes de fogo avançam como gigantescas cobras sobre as ladeiras das montanhas que nos rodeiam. Escuta-se o crepitar da madeira submetida a centenas de graus centígrados, nossas narinas captam um apetitoso perfume de presunto cru defumado e a enorme nuvem de fumaça que se eleva, iluminada pelo fogo, é merecedora de servir de modelo a uma obra de arte.

A prática previamente limitada a fenômenos naturais e a de populações pequenas se transformou em algo tão comum, que hoje não existe brasileiro que não tenha presenciado o espetáculo antes descrito.

Este espetáculo, digno de ser visto pelo menos uma vez na vida, é coisa comum no Cerrado e, agora, também na Amazônia. Antigamente estava restrito às savanas e pradarias do mundo e excepcionalmente acontecia nas florestas das regiões temperadas ou frias. Naqueles tempos, eram fenômenos naturais provocados pelos raios ou também pelos nativos, que sempre usaram o fogo como arma de caça. No Chaco do Paraguai, até agora pode se rastrear do ar ou de satélites a passagem dos índios nômades pelo rastro de fogo que deixam, para capturar uns poucos tatus e outros bichos. Muitos acreditam que o Cerrado, localizado entre as selvas Amazônica e Atlântica, se formou em grande medida por essa prática, combinada com mudanças climáticas e qualidade dos solos.

Mas, após a conquista do Brasil (nunca ficou esclarecido porque alguns chamam esta saga de “descobrimento”) a prática previamente limitada a fenômenos naturais e a de populações pequenas se transformou em algo tão comum, que hoje não existe brasileiro que não tenha presenciado o espetáculo antes descrito.

Quando, quase dois séculos atrás, a pecuária se instalou no Cerrado e no Pantanal, em propriedades imensas e com muito pouco pessoal para manejar as pastagens e o gado, o uso do fogo tinha certa lógica. Permitia abrir a mata para dispor de mais gramíneas, renovar as pastagens que endurecem com a idade e, possivelmente, reduzir a população de carrapatos, tudo na base de muito pouco esforço. Naqueles dias, tinha ainda muita terra selvagem, existiam muitas onças e suçuaranas, e nem se falava de aquecimento global.

Na atualidade, o uso do fogo na agricultura ou na pecuária é simplesmente expressão de imbecilidade. Não existe, em quase nenhuma circunstância, uma vantagem ou um beneficio derivado do fogo. Com efeito, o fogo calcina e compacta a capa superficial do solo, que é a mais fértil e a mais importante para a produção agrícola ou de pastagens; a cinza da vegetação queimada é arrastada pelo vento ou pelas águas, não fertiliza a terra. Pelo contrário, contamina as águas e expõe o solo à erosão hídrica e eólica. A fumaça produzida no Brasil durante a estação das queimadas é um dos grandes vilões do aquecimento global; essa mesma fumaça provoca enfermidades respiratórias, acidentes aéreos e em estradas e afeta todas as comunicações aéreas. O fogo sem controle destrói as matas ciliares e outras matas que devem ser protegidas. Como é utilizado em pleno período reprodutivo de espécies da fauna – por exemplo, a ema, cuja postura de ovos é a rés do chão – muitos animais não conseguem se reproduzir. Além do mais, o fogo é colocado quando as árvores do Cerrado começam a frutificar, impossibilitando o uso das frutas como alimento para a fauna. Para poupar o leitor não vou me estender mais, mas a lista de prejuízos é muito maior.

Por que, então, essa prática é tão comum? É difícil de explicar, especialmente no Cerrado, pois qualquer análise revela que os fogos nem sequer respondem à lógica de renovação de pastagens ou de eliminação de carrapatos. Uma grande porcentagem deles é provocada onde não tem gado. Parece, simplesmente, conseqüência da ação de piromaníacos. Claro que o fogo de uns foge do controle e invade a terra de outros. Porém, muitos fogos são ateados gratuitamente, inclusive em terras alheias, aparentemente por puro prazer. E, diga-se de passagem, sem dizer que não exista, isso dos fogos provocados involuntariamente é uma fábula.

Um professor da Universidade de Brasília levou uma turma de estudantes para jogar profusamente cigarros acesos na mata ressecada do Cerrado do Planalto Central, ficando demonstrado que é mínima a probabilidade de que cigarros acesos provoquem tantos incêndios como existem. Qualquer observador atento de um incêndio já sabe que os fogos começam em linhas, iniciados por indivíduos a cavalo ou a pé, carregando combustível apropriado e prestando atenção a que o vento seja favorável para a das chamas. O que não se sabe é o que motiva essa gente, além do costume ancestral, a botar fogo em propriedades próprias e alheias.

Alguns cientistas clamam que o fogo é tão natural como a água no Cerrado. Isso é, em parte, verdade. Muitas das plantas do Cerrado resistem o fogo, mas esses mesmos cientistas não podem negar que são muito raras as que necessitam do fogo. A transformação da mata Amazônica ou Atlântica em Cerrado é, precisamente, seleção pelo fogo. O que não é natural e a repetição anual do fogo no mesmo lugar e, pior, até duas vezes por ano. Isso nunca aconteceria naturalmente.

Na Amazônia o uso do fogo tem inicialmente uma função diferente. É para queimar a vegetação derrubada para expandir a agricultura ou a pecuária. Ou seja, que o que se queima lá é uma floresta já massacrada. A prática é igualmente absurda, pois se destrói madeira valiosa e se prejudica o solo. Justifica-se apenas pelo custo que implicariam outras formas de limpar o campo. O problema lá é que esses incêndios se expandem, por falta de controle, aos bosques circundantes e às matas ciliares. Nunca esquecerei uma viagem recente, entre Alta Floresta e Cuiabá. Na primeira cidade o aeroporto estava fechado pela fumaça, assim que alugamos um carro para ir até Cuiabá. Não teve, no transcurso de mais de 800 quilômetros, um minuto só em que não se observasse um fogo. Parecia um cenário de ciência ficção, o fim do mundo após uma hecatombe nuclear. Mas, era real, tão real que o vôo que iríamos tomar em Cuiabá tampouco chegou. O aeroporto também estava fechado pela fumaça.

As notícias sobre o fogo podem ser até engraçadas. Hoje, 25 de setembro, aparece nos jornais de Cuiabá que a partir de agora é lícito usar o fogo. Os mesmos diários passaram vários meses denunciando incêndios de proporções dantescas no Pantanal, no Cerrado e no Norte do Estado. Mas, a partir de hoje, a grande notícia é que a época de restrição terminou! Viva o fogo!

É verdade que aplicar as severas sanções que indica a Lei de Crimes Ambientais é difícil. Capturar em flagrante um individuo botando fogo é quase impossível. Mas a legislação prevê sanções para os proprietários das terras incendiadas, e isso não é tão difícil assim. Na realidade, nada é feito. O fogo é tão sagrado hoje como foi na época das cavernas.

*Esse texto foi editado em 01/06/2024 para repaginação

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