As áreas de proteção na Amazônia abrangem grande parte da floresta. Isso significa que a região está fora de perigo?
Não. O simples estabelecimento de unidades de conservação de uso sustentável ou de proteção integral não garante que os recursos naturais em geral, nem a biodiversidade em particular, estejam fora de risco. É apenas o primeiro passo de uma das linhas de ação. As unidades de conservação são só uma das formas de garantir o uso sustentável dos recursos naturais da Amazônia. Elas são o alicerce da conservação da biodiversidade, mas não são suficientes.
O segundo passo, verdadeiramente importante, é que as unidades de conservação cumpram suas funções, o que se obtém através de seu manejo efetivo. No caso das unidades de uso sustentável, como as reservas extrativistas, é preciso que rendam benefícios diretos, em dinheiro, na forma de bens e serviços, primeiramente a seus ocupantes ou a seus usuários. As unidades de proteção integral, como os parques, devem prover benefícios indiretos à população local e a sociedade nacional, através do turismo e de seus negócios associados, da recreação e da educação, embora a principal razão de ser destas unidades seja conservar amostras representativas do patrimônio natural da nação. Isso, em termos simples, significa manter abertas as opções futuras de aproveitar os recursos da biodiversidade, os serviços ambientais e a possibilidade de novas descobertas científicas transcendentes para a humanidade.
A realidade é que, quase sem exceção, as unidades de conservação da Amazônia estão apenas no primeiro estágio, o da sua criação. Por isso, elas não cumprem suas funções e não prestam ainda todos os benefícios que a sociedade espera delas. Essa é a razão principal pela qual, muitas vezes, a sociedade local não gosta das unidades de conservação, que considera “terra desperdiçada”. Quando as unidades de conservação começam a gerar benefícios para a população, elas são vistas como necessárias, são respeitadas e até defendidas pela sociedade.
Como deveria ser uma unidade de conservação?
Tratando-se de unidades de proteção integral, é desejável que nelas não exista ocupação nem interferência humana alem do mínimo indispensável. Em algumas categorias brasileiras (reservas biológicas, por exemplo) nem a visitação é permitida, para evitar interferências nos processos evolutivos naturais. Isso é necessário se o objetivo da categoria é a conservação do patrimônio natural. Os cientistas demonstraram, fartamente, que as atividades humanas têm impactos negativos enormes na natureza, ainda que sejam feitas respeitando as normas da sustentabilidade. A simples coleta de castanha do Pará ou o sangrado de árvores de seringa geram reações em cadeia em todos os nexos tróficos do ecossistema. A extração de madeira, mesmo a mais prudente, tem impactos drásticos no ecossistema.
É preciso levar em consideração que a maior parte das unidades de conservação na Amazônia não é de preservação permanente, mas de uso sustentável, como são as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), reservas extrativistas, florestas nacionais, reservas de desenvolvimento sustentável, etc., onde existem habitantes que exploram ou podem explorar os recursos sob condições de sustentabilidade. As APAs, por exemplo, não diferem realmente de outras áreas da Amazônia. Apenas, nelas deve-se acatar a legislação que é obrigatória em qualquer parte do Brasil. Por isso, em outros países esta categoria de manejo nem é considerada como unidade de conservação, já que sua função primeira é produzir bens e não conservar a natureza.
O que fazer com as comunidades que sempre viveram nessas áreas?
A conservação do patrimônio natural é uma questão de interesse nacional. Está acima dos interesses de grupo, sem prejudicar os direitos que a Constituição e as leis outorgam a cada cidadão. Se existe algum conflito entre um grupo humano e a necessidade de criar uma unidade de conservação onde não podem permanecer habitantes, deve prevalecer o interesse comum. Isto posto, deve-se lembrar que a escolha das unidades de conservação de proteção integral, ainda que baseada em critérios científicos, sempre procura as áreas menos povoadas, para evitar criar problemas sociais.
Quando não há alternativa, ou seja, quando as necessidades científicas de preservação estão superpostas à presença humana, a opção é criar unidades de conservação de uso sustentável, onde a população local tem direito a permanecer e explorar os recursos, com apoio do governo. Esse é o caso, por exemplo, das reservas de desenvolvimento sustentável como Mamirauá.
E qual é a situação dos índios nesse processo?
No Brasil não pode se criar uma unidade de conservação em terras indígenas. Isso é proibido pela Constituição. Os conflitos entre o Ibama e a Funai surgem na interpretação dos limites do “território tradicional” dos povos indígenas. Com freqüência, no Brasil como em outros paises amazônicos, as unidades de conservação são invadidas por índios empurrados a elas pela pressão de madeireiros, agricultores e garimpeiros que invadem seus territórios. Essa situação gera muitos dos conflitos que são registrados nos jornais. Vários parques já perderam boa parte de sua área ao serem invadidos por indígenas provenientes de terras muito distantes. Esse problema é comum no Sul do Brasil, onde indígenas migram até da Argentina e do Paraguai para se instalar nos parques, destruindo os recursos para subsistir. Se esse processo não for detido, o país pode perder muitas jóias de seu patrimônio natural.
Os problemas indígenas, como os das populações tradicionais, não podem ser resolvidos nas unidades de conservação. Trata-se de graves problemas nacionais que são irresponsavelmente “empurrados” para as unidades de conservação. No final, a questão a ser resolvida é: deseja-se ou não conservar amostras do patrimônio natural? Se a resposta é positiva, os indígenas devem ter seus justos direitos atendidos em outro lugar. Numa fazenda improdutiva desapropriada, por exemplo.
Já aconteceu de a criação de uma reserva extrativista servir de atrativo para o aumento da população em uma área antes desabitada?
Não conheço nenhum caso em que isso tenha acontecido. Em especial porque todas as reservas extrativistas foram estabelecidas onde já existiam populações tradicionais. Mas é possível que elas sejam foco de atração se o governo desenvolver uma boa administração que renda benefícios evidentes à população. A população será atraída à procura de melhores condições de vida e de oportunidades. Até certo ponto, isso seria um grande êxito. Para evitar a degradação da área, seria suficiente calcular sua capacidade de carga e, se necessário, aumentar a área da reserva extrativista ou criar outra.
O que se observa é que, por falta de manejo, algumas reservas e assentamentos extrativistas estão sendo descaracterizados à medida que as áreas de uso agropecuário crescem além do que a lei e as necessidades de conservação permitem.
*Esse texto foi editado em 01/06/2024 para repaginação
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
Leia também
O Grande Encontro
Está para começar o IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, nosso maior e mais animado encontro de especialistas e gestores de áreas protegidas. →
Fogo sagrado, até quando?
Pôr fogo no mato é um hábito tão generalizado e tão pouco punido no Brasil que sua única função talvez seja manter viva uma tradição do tempo das cavernas. →
Não mata, mas deixa encalhar
Ainda há quem pense que salvar baleias não é ético, enquanto há seres humanos pobres e famintos. Será difícil entender que dependemos dos recursos naturais? →