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Estranho… muito estranho

Crimes na extração e comércio de madeira da Amazônia acontecem desde sempre, mas desarticulados. O que surpreende é a polícia ter descoberto uma “quadrilha”.

3 de junho de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Não se está falando da inusitada feliz coincidência – para o Governo Federal – do anúncio público da Operação Curupira, com a captura dos envolvidos na máfia da madeira, versus a recente notícia do desmatamento recorde da Amazônia, o que já é estranho. O que é mais estranho é a constatação da existência de uma enorme “quadrilha” de extração e comercialização ilegal da madeira na Amazônia.

A corrupção que envolve a exploração de madeira é coisa muito bem conhecida e documentada há várias décadas, tanto no Brasil como em outros países tropicais. Existem múltiplos relatórios e até livros dedicados a esse tema. O denominador comum dessa corrupção tem sido sempre a documentação oficial que autoriza o corte e o transporte da madeira. Ela é roubada por funcionários corruptos dos próprios escritórios da agência responsável ou falsificada por terceiros. Algumas propinas por aqui e por acolá, nos postos de controle, resolvem eventuais dúvidas ou compram a inação. Enfim, todo mundo na Amazônia sabe que isso acontece. Trata-se de uma corrupção geral, tolerada e aceita por todas as partes como quase inevitável, pois na verdade ela compensa as dificuldades que a legislação florestal impõe na sua estéril procura pelo manejo florestal sustentável. A dificuldade de controlar essa corrupção, que tem sido por décadas o maior pesadelo das autoridades florestais honestas, é precisamente sua dispersão e falta de organização.

Por isso, o mais estranho da revelação feita pelos ministros do Meio Ambiente e da Justiça do Brasil, em entrevista à imprensa, é a existência de uma quadrilha, ou seja, de um grupo organizado, que inclui mais de uma centena de empresários e funcionários, inclusive um secretário estadual de Meio Ambiente e até um diretor do Ibama. Nunca antes na história florestal tropical se tinha tido notícia de que centenas de corruptos pudessem se juntar e coordenar, na forma de crime organizado, para realizar delitos que são essencialmente individuais ou que vinculam no máximo poucas pessoas a cada vez. Com efeito, não se duvida que existam centenas, ou melhor, milhares de pessoas que realizam delitos e crimes relacionados com o desmatamento, a exploração florestal e o transporte e comércio de madeira. O que é estranho, muito estranho mesmo, é que exista uma “quadrilha” desse porte. Está-se, claro, à espera das evidências da existência da tal quadrilha.

Esta foi, seguramente, a operação de maior porte já realizada. Embora, tanto no Brasil como em outros países, muitas ações deste tipo tenham sido efetuadas em reiteradas situações. O pouco sucesso delas foi devido ao fato de que na verdade não existem chefes mafiosos nem estruturas de comando, e sim milhares de infratores e delinqüentes, incluindo uns poderosos, outros nem tanto e miríades de pequenos. Ou seja, não existe realmente uma “rede” de corrupção e sim simplesmente uma profunda corrupção dispersa, muito difícil de liquidar. Um verdadeiro câncer generalizado que nenhum bisturi resolve. Mas, desta vez, pelo menos nos sentimos satisfeitos de que, dentre os que se espera serão castigados, estejam figurões do governo atual do Estado de Mato Grosso, ratificando as denúncias feitas sobre a situação ambiental nesse estado.

As informações propaladas, no sentido de que a “quadrilha” desmatou ilegalmente 40 mil hectares e que com os 1,9 milhão de metros cúbicos de madeira extraída se encheriam 76 mil caminhões, são inconsistentes e só têm efeito moral. De uma parte porque foram desmatados mais de 2,6 milhões de hectares no ano anterior, metade só no Mato Grosso. De outra, a extração florestal retira apenas poucas árvores nobres de cada hectare e os mencionados 40 mil hectares não resultariam em tanta madeira. Outra coisa é que 40 mil hectares foram desmatados ilegalmente por ação de algum funcionário que entregou licenças falsas para desmatamento.

Neste ponto deve-se mencionar que toda intervenção da Polícia Federal e do Ministério Público contra a exploração ilegal de madeira é excelente, tanto pelos problemas que resolve, como pelo medo que inspira, momentaneamente, nos delinqüentes. Nada é pior que a impunidade. Assim mesmo deve ficar bem claro para todos que, contrariamente ao que o Governo deixou entrever, essas bem-vindas intervenções não vão reduzir o desmatamento que tem uma lógica diferente, ainda que também se nutra em grande medida da corrupção. Inclusive, o problema da extração ilegal de madeira não se reduz aos documentos de transporte de madeira. Muito mais prejudiciais são as licenças de desmatamento outorgadas em troca de propinas ou favores, a análise fraudulenta dos planos de manejo florestais, as avaliações de impacto ambiental mentirosas, os cartórios que amparam a grilagem de terras, as prefeituras que licenciam empresas inexistentes e o desmatamento que é feito sem autorização e que apenas algumas vezes é multado com centavos para compensar danos milionários. Em cada caso o problema repete as duas fórmulas de corrupção: a ativa, que ganha dinheiro com isso, e a passiva, que olha e que sabe, mas não faz nada.

A verdade é que, se a cada ano e em cada estado amazônico, se repetisse uma ação como a Operação Curupira, cada vez mais profunda e com melhores fundamentos técnicos, sem dúvida que terminaria fazendo uma grande diferença. Quiçá desta forma, se daria alguma oportunidade para o manejo florestal sustentável, que se não tem viabilidade econômica se deve eminentemente ao fato da competência desleal da extração florestal ilegal. Se assim for, o Brasil terá um legítimo motivo para se orgulhar do que faz na Amazônia.

O tempo e os juizes dirão quantos dos que foram presos pela ação policial são culpados e ficarão atrás das grades. Provavelmente poucos. Mas ninguém precisa esperar para saber que o desmatamento nos próximos anos não diminuirá por causa disso.

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