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Meu vizinho

Morar num centro histórico não significa estar livre de poluição sonora, esgoto e queimadas. Pior, o foco dos problemas pode ser o quintal do vizinho.

17 de junho de 2005 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Meu vizinho é uma pessoa muito espiritual. Resolveu que antes dos cinqüenta anos de idade devia descansar de todo esforço pelo resto de seus dias. E, como sabe bem que a ociosidade é mãe de muitos vícios, muitos dos quais ele já desfruta, nosso personagem dedica toda sua capacidade a pensar como pode melhor perturbar seus vizinhos, eu dentre eles.

Como sem trabalho não há dinheiro, ele não tem muito contato com o vil metal. Então, para sobreviver flutuando em cerveja, resolveu estabelecer um camping na ampla porção da terra, bem no centro do bloco urbano, que herdou de seus antepassados e que, ainda não vendeu. Assim é como, em pleno centro histórico tombado de Pirenópolis – uma importante e turística cidade colonial do Centro Oeste, rodeado de casas onde moram seres humanos mais ou menos normais, se concentram a cada fim de semana desde uns poucos até centenas de campistas, cada grupo com seu próprio barulho musical, seus gritos particulares, seus olorosos assados e, claro, suas necessidades fisiológicas variadas.

Neste ponto é preciso esclarecer que o tal camping não tem nenhuma infra-estrutura, nem banheiros, sendo utilizado o único existente na centenária casa do vizinho, cuja mínima fossa séptica limita com o meu jardim. Inútil explicar que, basta escurecer, para a nossa parede divisória se converter no mais propício mictório e vomitadouro disponível. Até que as plantas beneficiadas agradecem com um verde intenso o aporte excepcional de matéria orgânica.

Quando a vegetação da parte do quintal que meu vizinho não utiliza para camping cresce além do razoável, ele recorre a uma solução muito simples e comum no cerrado: o fogo. Assim, até duas vezes por ano, durante os geralmente mais tranqüilos dias úteis da semana, o fogo lambe nossas paredes e queima as plantas cuidadosamente lá dispostas como espinhosas cercas vivas para evitar os roubos ou, quanto muito, as miradas curiosas dos clientes do vizinho. As cinzas levantadas pelos incêndios penetram em cada rincão das casas da redondeza, provocando acessos de fúria nas donas de casa, que devem evitar que as folhas carbonizadas se convertam em manchas escuras nas paredes ou na roupa estendida no varal. As piscinas do bairro, inútil dizer, ficam pretas e é necessário dedicar muitas horas de energia elétrica para filtrar a água.

Existe algo mais fácil que criar galinhas no quintal e colher ovos e, de vez em quando, torcer o pescoço de alguma delas? Não. Claro. Por isso meu vizinho dispõe de um pequeno rebanho de galinhas com seus galos correspondentes, que desfrutam de plena liberdade. O problema é que os galos do século XXI, impactados pelas mudanças ecológicas, não têm nenhuma noção do que é um amanhecer e cantam, dia e noite, sem tom. O proprietário desses poderosos artistas não se incomoda, pois como é bem sabido, o álcool é um sonífero admirável. Mas os que pretendem dormir sem ajuda sofrem muito. Bom, poderia-se mencionar outras dezenas de problemas grandes e pequenos, embora esse não seja o motivo deste escrito.

O importante é explicar como a agilidade espirituosa de meu vizinho vê, por seu lado, este mesmo assunto. Segundo ele, os vizinhos, como os casamentos, devem ser tolerantes. Sem tolerância o mundo não funciona bem, como revelam os múltiplos conflitos internacionais ou religiosos. A juventude que ele acolhe no seu camping vem desfrutar e fazer festa e é normal que escutem música a todo volume, que se embebedem e gritem. Meu problema é ser velho demais. Os vizinhos devem ser condescendentes com a juventude e, no caso dele, com a sua necessidade vital de acolher campistas nos finais de semana. Segundo ele, se não gostamos disso, temos três alternativas: fugir para nosso sítio ou a qualquer outro canto durante os fins de semana, comprar a nossa tranqüilidade mediante o pagamento de uma mensalidade de mil reais por vizinho ou, comprar seu quintal. As duas primeiras, embora de uma lógica decantada, me pareceram levemente chantagistas e duvido muito em aceitá-las. Até que a última opção seria interessante, se tivesse o dinheiro, mas também sabemos que o proponente está impedido de vender sua propriedade por bem merecidos conflitos de herança.

Meu vizinho continuou indicando que é muito tolerante. Que ele não gosta da vegetação que existe no meu quintal, que às vezes invade o seu e que traz cobras e caramujos. Na verdade, suas inocentes plantas fazem exatamente o mesmo, só que eu gosto até delas. Que o portão da minha garagem interfere com a sua rádio nos momentos mais cruciais da sua escuta de notícias. Não me atrevi a mencionar que isso é provavelmente porque ele deve estar se abastecendo de energia mediante algum gato, quiçá na minha própria rede. Que meu cachorro late embaixo da sua janela, o que definitivamente é falso e, dentre tantas outras coisas, que o motor de meu automóvel interrompe seu sono. Mas que, como ele é muito tolerante, nunca tinha dado queixa desses problemas, que infernizam a sua difícil e solitária vida. Fiquei agradecido pela sua tolerância.

Foi além. Indicou que teve que por fogo no quintal porque outros vizinhos estavam preocupados de que o mato crescido abrigasse cobras. A meu comentário de que limpar o mato num centro urbano se faz com ferramentas, motorizadas ou não, e não com fogo incontrolado, ele respondeu que os bombeiros, alertados por alguém, não acharam nada de errado com a sua última queimada. Quando mencionei que poderia alimentar um par de cavalos ou vacas no lugar de queimar o capim, ele alegou que esses animais têm carrapatos e que ele não adotou esta solução para me proteger. Nesse ponto eu fiquei comovido. Ante o comentário de que provavelmente é proibido montar um camping sem licença nem instalações adequadas, ou coisa parecida, no meio de uma cidade histórica, ele me desafiou a demonstrar isso. Não quis desafiá-lo porque nestes lugares nunca se sabe. Quiçá os regulamentos e planos diretores da cidade, se existem, o permitam. Ademais, essas regras são aplicadas em função do cliente e, nisso, ser estrangeiro sempre é um problema. Segundo pontificou em tom de fim de conversa, o erro nosso foi vir a esta cidade que por ser turística não pode ser tranqüila e pacata, como desejam os de fora. O turismo é o motor da economia local e que nada poderá impedir que o progresso barulhento continue.

Ao final da conversação tive de admitir que eu sou mesmo um velho intolerante e que devo muito a meu vizinho pela sua paciência e por suas lições de convivência pacífica. Está chegando outro fim da semana, assim estou preparando minha ida para a chácara, que foi uma das suas recomendações. Apenas fico preocupado ao lembrar que lá, também têm vizinhos!

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