Visitei a África pela primeira vez em 1975 e até 1990 fiz várias viagens a esse continente, incluindo, dentre outros paises, Costa do Marfim, Camarões, Senegal, Zaire (hoje a República Democrática do Congo) e Quênia. No mês de junho voltei à África, desta vez ao Congo (mais conhecido como Congo-Brazzaville). Fiquei tristemente impressionado ao constatar, eu mesmo, o que é vox populi nas entidades dedicadas ao desenvolvimento e na imprensa. O coração da África está agora muito mais enfermo do que estava, seja qual for o parâmetro de comparação que se utilize. A África, nestes dias, atrai a atenção mundial, precisamente devido a sua pobreza e a outros males e, por isso, achei apropriado resumir minha experiência e comentar as probabilidades de que as propostas do grupo dos oito países mais industrializados do mundo, atualmente reunidos na Escócia, aportem alguma melhoria.
Brazzaville está situada na beira do Congo olhando, ao outro lado do rio, a cidade de Kinshasa que é a capital da República do Congo. Brazzaville é uma imensa favela que oscila entre poeirenta e barrenta e que é permanentemente imunda, com montanhas de lixo esquecido. Suas ruas estreitas e esburacadas são percorridas por uma infinidade de táxis e outros veículos de lotação, todos pintados de triste verde garrafa, que é a única amostra de disciplina visível. É evidente que nessa cidade nada foi construído desde a independência. O único bairro que merece tal nome é, até hoje, o mesmo que fora construído na época colonial. As exceções são alguns edifícios públicos, no mais puro estilo comunista chinês, fruto de doações interesseiras desse país durante as veleidades esquerdistas do ditador de então.
Todos esses prédios exibem, no mármore ou no concreto, os buracos da metralha generosamente dispersada durante a última guerra civil. O centro financeiro e empresarial está formado por um par de ruas curtas um pouco menos descuidadas que o resto da cidade. Os restaurantes são inexistentes ou lamentáveis. Ainda nos melhores hotéis, não é possível se comer decente ou oportunamente, pois o serviço varia de comicamente caótico a irritantemente letárgico. Os hotéis datam quase todos da época colonial e as portas de seus cômodos denunciam a impressionante quantidade de vezes que foram violentadas. O que não falta são prostitutas bonitas, isso sim, oferecidas à vontade e esmoleiros, na sua maioria meninos e meninas simpáticos e insistentes.
Entrar e sair desse país é tão difícil que faz empalidecer os mais sofisticados controles de fronteira norte-americanos. Para sair, os passageiros sofrem onze revisões de passaporte, e da passagem antes de acessar a porta do avião. As malas são reiteradamente revisadas, inclusive na partida, pois deve existir risco de se levar algum valioso patrimônio nacional, de que ninguém teve notícia. O tempo total de entrada ou de saída é de 4 a 5 horas, num aeroporto do tamanho de duas caixas de fósforo. Nem pense em entrar no país sem ter visto… não há exceções! Exceto claro, se a importância do dinheiro esquecido nas páginas do passaporte for suficiente. A primeira classe do avião que nos devolveu à Paris ficou exclusivamente reservada para um monte de dignitários, que cobriam suas frondosas carnes com ternos comprados por milhares de euros nas butiques do bulevar Saint Honoré, que é uma necessidade para mendigar dignamente mais recursos para desenvolver o país.
A África é famosa pela sua natureza. Perto de Brazzaville, localizada numa savana que, segundo os especialistas, era até pouco fortemente arborizada, existe uma reserva de fauna que fomos convidados a visitar. Foram quatro horas de viagem acidentada, nos esquivando de pessoas e veículos descontrolados, tanto ou mais que o nosso, e sendo detidos inúmeras vezes para cumprir o ritual de exibir nossos documentos em controles exercidos por ameaçadores policiais ou militares de uniformes e armamento variados, mas sempre chamativos. Na África é muito arriscado tirar fotografias. Nunca se sabe o que é permitido ou proibido e, claro, o maior risco é tirar fotografias onde se inclui um soldado.
Finalmente, chegamos ao lugar. Mas, nele não vimos absolutamente nada. Onde existiam há poucas décadas elefantes, búfalos, rinocerontes, gazelas, leões e panteras, hoje apenas subsistem ratos cuja caçada é feita usando a técnica de queimar a savana. O rio, no centro da reserva, está igualmente esterilizado. Nada de agressivos hipopótamos ou crocodilos, aliás, nada de nada. Apenas vegetação secundária na beira do rio. Os guardas e os biólogos estrangeiros que cuidam da área, onde gorilas confiscados nas cidades são reintroduzidos, não dão conta da caça furtiva, nem da extração ilegal de produtos da floresta, nem sequer da segurança de seus gorilas de estimação.
A experiência acima brevemente mencionada é apenas um pálido reflexo do que se experimenta, com poucas variantes, em quase todos os países africanos ao sul do Saara. É especialmente representativa das ex-colônias francesas e belgas, mas também se aplica em grande medida em outros países que foram colônias inglesas ou portuguesas. Os níveis de desgoverno, corrupção, pobreza, desemprego, destruição e mal gasto de recursos não têm equivalentes em nenhuma outra região do planeta. Mas, são proporcionais aos níveis inacreditavelmente cruéis de violação dos direitos humanos, especial, embora não exclusivamente, em tempos de guerra civil ou tribal e ao progresso apavorante de enfermidades letais como a AIDS, entre outras.
Para falar de África deve-se, em primeiro lugar, reconhecer que é muito pouco o que de comum tem o norte desse continente, com o que existe no centro do mesmo. O norte da África, ocupado pelos mouros ao oeste e pelos egípcios e outros povos ao leste, albergou civilizações que deixaram rastros indeléveis na humanidade em termos de cultura, conhecimentos científicos e de plantas e animais domesticados. No entanto, ao sul do Saara, a população estava organizada numa miríade de agrupamentos tribais, alguns maiores e mais poderosos que outros, mais ou menos da mesma forma em que se agrupam até hoje os indígenas da Amazônia. Esses povos estavam dedicados essencialmente à caça e à pesca e, de modo complementar, a uma agricultura incipiente. Sua organização social era limitada e seu nível cultural expresso principalmente através de arte em madeira ou barro e de alguns objetos de metal que aprenderam a fazer com as incursões árabes, armas brancas diversas, tecidos rústicos, música e dança. Viviam em harmonia com a natureza, essencialmente em função do nível de mortalidade, que era muito elevada, devido às enfermidades e às guerras entre eles.
Quando as potências européias começaram a disputar e ocupar efetivamente o território africano, especialmente no início do século XIX, encontraram essa mesma situação. Contrariamente ao que se pretende acreditar hoje, a escravidão é um antigo mal africano, incentivado pelos povos do deserto e outros grupos, em especial quando convertidos ao islamismo, para atender mercados do norte de África e do meio oriente. Os caçadores de escravos eram membros de tribos inimigas e de traficantes, na sua maioria muçulmana. Os europeus tinham se aproveitado dessa circunstância desde o século XVI para desenvolver suas colônias americanas e, claro, são culpáveis de criar um imenso mercado para um produto de demanda previamente restringida. Mas, no momento em que as colônias americanas ganharam sua independência, os europeus iniciaram o combate ao tráfico de escravos, muito mais como fruto de seus novos interesses financeiros, do que de uma nova consciência. Com efeito, quando os europeus estabeleceram suas colônias na África, necessitaram de mão de obra rural barata para trabalhar suas enormes plantações.
A presença colonial européia na África teve poucas virtudes. Explorou sem piedade os recursos e o trabalho da gente. Mas evitou as guerras tribais, terminou com a escravidão tradicional e iniciou o controle das enfermidades e a educação da população. Também, possivelmente para aprofundar a exploração dos recursos, aumentou muito o conhecimento científico sobre a África. Já no século XX, os países coloniais iniciaram com maior seriedade, pressionados pelos novos ideais democráticos nas metrópoles, a construção de sociedades nacionais africanas, incluindo maior ênfase em educação e saúde. No âmbito da conservação dos recursos naturais, com maior sucesso nas colônias inglesas, foram estabelecidos os grandes parques nacionais e outras reservas que, até agora, são fonte principal de desenvolvimento econômico desses países, como no Quênia, Tanzânia e Zimbábue.
Depois da Segunda Guerra Mundial, essas medidas se incrementaram muito e, ainda que os países europeus continuassem explorando impiedosamente os recursos naturais africanos, apareceram investimentos consideráveis nas sedes coloniais e embriões administrativos locais foram criados, inclusive polícia e exército. Já existiam, também, algumas gerações de europeus nascidos nos territórios, que sentiam a África como a sua terra, forçando as metrópoles a ceder autoridade e a investir mais. Muitas colônias possuíam legislações próprias, adequadas a suas realidades econômicas e sociais, como no caso do Congo Belga. Mas, como bem se sabe, a política mundial obrigou a interromper abruptamente esse processo, de qualquer modo exageradamente lento, e nos anos 1960, os países africanos se liberaram do jugo europeu sem grande dificuldade.
A presença européia na África, com pouco mais de um século, não deixou marcas tão profundas como as que antes tinha deixado na América. Além do menor tempo de ocupação, as circunstâncias foram muito diferentes, devido à realidade cultural e social local e à época em que os fatos aconteceram. Na África, os europeus não desmantelaram a rotina tribal. Preferiram explorar a mão-de-obra através da organização existente, mantendo e manipulando as lideranças tradicionais. Por isso, no momento da independência, os grupos tribais eram tão presentes como séculos atrás e, claro, isso não facilitou a transformação dos territórios coloniais em países. Muito se diz que os problemas da África de hoje se devem à divisão artificial do território, feita pelos colonialistas europeus. Mas, na verdade, qualquer organização territorial, incluída a tribal tradicional, teria dado exatamente o mesmo resultado expressado em guerras, cada grupo procurando dominar os outros, tal como foi ao longo de toda a história desse continente (e, aliás, de qualquer outro). O estágio de se criar uma identidade nacional, através de milênios de história atormentada e de acúmulo de bagagem cultural, como se deu na Europa, Meio Oriente, Ásia, Norte de África e em parte da América, ou por transposição, em países como EUA, Canadá, Austrália ou Nova Zelândia, não aconteceu na África ao sul do Saara. Nessa parte do planeta, com a exceção relativa da África do Sul, em apenas umas poucas gerações se pulou da vida tribal elementar, praticamente a mesma que existia há mais de 10.000 anos, para a vida cidadã do século XX e XXI, com todas as suas complexidades. Absorver essa brecha milenar em tão curto tempo foi, como os fatos demonstram, simplesmente impossível.
No final dos anos 1960 eu fazia meu doutorado numa universidade européia que, como outras, recebiam massivamente estudantes dos novos países africanos. Eram jovens alegres, simpáticos e cheios de ilusões, na sua maioria filhos de caciques ou outros chefes, exibindo na cara e no corpo as tatuagens de sua classe. Eles tinham sido educados em escolas coloniais, mesmo vivendo no seio da tribo. Para surpresa nossa e para pavor dos proprietários dos alojamentos, o maior e mais urgente problema com esses jovens era explicar que para se esquentar no inverno não era preciso fazer uma fogueira no piso do cômodo onde moravam. Igualmente, era imprescindível explicar que existiam fogões para fazer a comida e que o sabonete perfumado não é um doce. Em 1975, em visita ao Zaire, foi-me oferecido, com toda seriedade, um teste de carne humana, que era vendida sem mistério no mercado de Kinshasa. Em 1983, no norte do Camarões, quando fui visitar uma reserva de fauna, onde para variar já não existiam animais, a outra metade da turma foi a uma espécie de castelo feudal onde, com espanto, presenciaram sem procurá-lo, um leilão de escravos. Esses fatos apenas buscam ilustrar a improbabilidade de uma mudança rápida. Hoje, ainda que a lenha siga sendo o combustível principal, a maior parte dos habitantes sabe o que é um fogão, possivelmente desprezem comer ou vender seus congêneres e, em troca, conhecem bem os telefones celulares, os rifles de precisão, as metralhadoras, os lançadores portáteis de mísseis e os helicópteros. Mas, no fundo, pouco tem mudado, como fica evidente nos massacres que não cessam desde a independência, às vezes com pretextos políticos e muitas vezes com motivações econômicas. As ilusões são efêmeras, como no caso da Costa do Marfim, que se acreditou ser uma Suíça africana e que hoje, como qualquer outro país, está submerso na guerra civil e no caos.
Mas, o comportamento tribal tem sua máxima expressão na corrupção, da qual não escapam nem os mais respeitados dirigentes africanos. Acontece que para ser chefe, deve-se ser poderoso e, claro, respeitado, ou seja, deve-se ser tão temido quanto amado. Tudo isso implica em dispor de muito dinheiro e o dinheiro, em um lugar onde a democracia não passa de um conselho de anciãos ou de um parlamento dominado pela própria tribo e aliados, é o orçamento nacional ou os aportes externos, sejam eles legais ou não. O cofre público é o cofre do governante. Sem o cofre a inteira e livre disposição do líder, não é possível governar. É simples. Toda a parafernália burocrática que inventam os doadores externos, inclusive o Banco Mundial e o Banco Africano, não passam de um pequeno complicador, facilmente contornável, para os membros da tribo e seus aliados que são, ao mesmo tempo, o miolo da força armada. Na África, ao sul do Saara, a corrupção não é mal vista. É normal e é necessária no status quo atual. Sem ela, não há governo.
Muitos europeus e não poucos americanos e asiáticos, em especial chineses, acham muito bom tudo o que aconteceu na África depois da independência. Durante a época colonial, eles deviam respeitar complexas legislações econômicas e laborais para explorar os recursos naturais e deviam, assim mesmo, pagar muitos impostos. Na atualidade, devem respeitar regras ambientais que limitariam as suas utilidades. Mas hoje, quem quiser explorar diamantes, ouro, petróleo, madeira, urânio ou qualquer outro recurso, apenas necessita comprar o governante nacional ou local e assegurar a tranqüilidade de suas operações com um pequeno exército privado. E se enfrenta algum problema mais sério, para resolvê-lo basta financiar uma guerra, que sempre termina sendo um bom negócio. Na atualidade, na África ao sul do Saara, praticamente todas as empresas estrangeiras atuam fora da lei e usam táticas abertamente bandidas. Como se escuta nas ruas e se diz na televisão local, nenhum investidor decente pode se aventurar num país onde a lei é feita a pedido do cliente e dura tanto quanto este deseja. Por isso, os investimentos sérios não existem e a miséria é a única coisa que cresce na África.
A independência da África, à parte do romantismo envolvido nas ações dos Mau-Mau e de outros grupos guerrilheiros de finais da época colonial, foi um bom negócio para os colonizadores e uma opção de beneficio duvidoso para os africanos. Sem nenhum controle, sem o estorvo de responsabilidades morais, sem o custo de pagar pelo desenvolvimento, sem cargas tributárias nem problemas maiores além dos logísticos, os estrangeiros agora exploram a África a seu livre arbítrio. Nada, senão terra deserta, vai ficando para a África do futuro.
Que pode significar, nesse contexto, o perdão da dívida externa e a injeção de novos recursos? Na minha muito modesta opinião, isso não significará absolutamente nada para África. Em primeiro lugar, perdoar uma dívida que de qualquer modo ninguém iria pagar não faz diferença alguma, exceto que abre as portas para novos financiamentos. Novos financiamentos e doações vão confrontar a mesma realidade que se conhece desde a independência, ou seja, que o essencial desse dinheiro vai alimentar alguns dos mesmos gordos de sempre. O povo seguirá esperando em vão. Num mundo ideal, o que deveria ser feito é uma intervenção tutelar que durante um lapso suficiente impusesse um verdadeiro governo, muito severo, nos países da região. Um governo que ponha toda a ênfase na educação, no treinamento do exercício democrático e na construção social. Um governo que defenda e restaure a base de recursos naturais, que gere riqueza e emprego e que transfira gradual e cuidadosamente o poder à população local, já transformada em uma cidadania. Mas, isso é apenas um sonho. Os povos africanos odeiam, com razão, os europeus e desconfiam de todos os outros povos, como se constata nas inscrições nas ruas e nas letras desafiantes das novas músicas africanas. Jamais aceitariam uma solução deste tipo e, de outra parte, os países que financiam as Nações Unidas não têm interesse em fazê-lo. Outra opção poderia se basear no controle estrito, por parte dos governos dos países desenvolvidos, das empresas, inclusive das transnacionais atuantes nos países africanos, de modo a exigir um comportamento correto. Simultaneamente, deveriam usar seus recursos e influência para direcionar abertamente a aplicação adequada de seus aportes, condicionados a mudanças efetivas. A educação, nesta alternativa, é tão importante como na anterior. Mas, isso também é um sonho. De uma parte a cobiça, de outra a hipocrisia de uns e o falso patriotismo de outros não viabilizam essas alternativas.
Então, que se pode esperar? Quase nada. África, ao sul do Saara, continuará percorrendo sua via crucis, de guerra em guerra, de praga em praga, de peste em peste, de seca em seca e de fome em fome. Os que sobreviverem ao inferno terão aprendido, dolorosamente, que conviver em sociedade nacional implica muita disciplina e tolerância. Tomara que o aprendizado só consuma algumas décadas a mais. De qualquer modo, a evolução social da África será forçadamente mais rápida que os milênios que foram necessários aos outros povos para chegar aos modestos resultados da atualidade.
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