Colunas

Pantanal sem peixe?

Em 30 anos, o principal recurso pantaneiro passou da exuberância à exaustão. O governo de Mato Grosso do Sul propõe 4 anos de moratória à pesca profissional.

20 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Parecia impossível, mas aconteceu! O Pantanal, seus rios, suas lagoas e baías, seus corixos, estão quase estéreis, pelo menos no que diz respeito aos peixes comerciais. O problema é tão grave que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Mato Grosso do Sul está propondo uma moratória de quatro anos à pesca profissional. Este é o triste episódio, possivelmente o final, de uma lamentável história de abuso e descaso que, na verdade, se desenvolveu vertiginosamente. Em apenas aproximadamente 30 anos, o principal recurso natural do Pantanal passou da exuberância à exaustão.

Os peixes mais visados pela pesca no Pantanal, quer seja profissional ou amadorista, eram em 1995 o pintado (25% da extração) e o pacu (24%), seguidos de outras oito espécies das 260 ou mais que existem na região. A extração comercial total, no período 1980-1989, alcançava, nos dois estados, uma média de 7.032 toneladas/ano, mas, em 1995, foi apenas de 1.330 toneladas. A situação pior foi registrada em Mato Grosso do Sul, onde, por exemplo, a extração do pintado passou de 730 toneladas em 1985 a apenas 144 em 1991 e, claro, a muito menos agora. As estatísticas para o pacu revelam a mesma tendência. O preço, obviamente, teve a tendência inversa e, na atualidade, em Cuiabá (MT) se paga R$18,00 por quilograma de pintado, se encontrado.

Na verdade, as estatísticas de pesca profissional ou amadorista estão completamente furadas. São preparadas com base em informações indiretas pouco confiáveis e, de fato, nem se sabe realmente quantos pescadores de cada categoria existem. Foi estimado, em 1998, que nos dois estados ocorriam 8 mil pescadores profissionais, incluídos os chamados artesanais, e ao redor de 125 mil amadoristas. A diferença entre ambos é que os primeiros exercem sua atividade diariamente. Entretanto, os segundos são visitantes eventuais. Mas, apesar de que o número de pescadores de ambas as categorias tem aumentado muito, ano após ano, o volume total extraído tem diminuído dramaticamente. De qualquer forma, do que existe de certeza absoluta é que a população das principais espécies comerciais e esportivas colapsou.

Mato Grosso e Mato Grosso do Sul têm tomado, nas últimas duas décadas, muitas medidas para evitar o anunciado colapso: campanhas educativas, intensificação da fiscalização, períodos de veda mais extensos, redução do número e peso total dos peixes capturados por amadoristas, promoção da técnica do “pesque e solte”, limitação do uso de certos implementos de pesca e, obviamente, legislação cada vez mais severa e restritiva. É provável que muitas das medidas funcionassem adequadamente, em especial com relação à pesca amadorista, embora fossem, no seu conjunto, claramente insuficientes. Por exemplo, a prática do “pesca e solte” não evita uma significativa mortalidade. De outra parte, o preço “a peso de ouro” do pescado pantaneiro tem criado uma nova leva de pescadores “profissionais” e “artesanais” que atuam na mais absoluta ilegalidade. Prova disso é ver, por exemplo, no rio Cuiabá, redes que atravessam o rio de lado a lado, protegidas por sujeitos belicosos munidos de meios de comunicação para alertar sobre a chegada da autoridade. Isso não é realmente novo. Por exemplo, desde mais de uma década se sabe de embarcações de pesca comercial que contornam a legislação e a fiscalização aproveitando-se da vizinhança com Paraguai e Bolívia. Do mesmo modo, a diferença entre pescador “artesanal” e “profissional” é indefinível, sendo fonte de abusos de todo tipo.

E assim, após a sugestão de muitos, o próprio governo de Mato Grosso do Sul propõe uma moratória para a pesca profissional que, no entender dos proponentes, atenderia a reposição das espécies: pintado, pacu, cachara, jaú e dourado, as mais visadas pela pesca. Para compensar os verdadeiros pescadores profissionais e artesanais, a medida propõe outorgar a 1.284 deles, devidamente registrados, um seguro pela moratória consistente de um salário mínimo mensal durante oito meses de cada ano. Não é o propósito discutir os fundamentos técnicos, sociais ou econômicos desta medida que, em termos gerais e considerando a gravidade extrema da situação, deve ser aplaudida, inclusive por ser corajosa pela sua provável impopularidade. Deseja-se, sem chamar a atenção sobre outras medidas igualmente urgentes, obter finalmente um equilíbrio entre a pressão de pesca e o estoque natural de esses peixes.

Primeiramente, deve-se lembrar que a situação crítica da pesca no Pantanal não é unicamente produto da atividade pesqueira profissional ou amadorista. Os impactos negativos do desmatamento, da contaminação por agrotóxicos e por exploração mineral, a construção de barragens que alteram o ciclo hidrológico, a contaminação de origem urbana e a destruição das matas ciliares, todas elas acontecendo na bacia do Alto Paraguai, fora do Pantanal, têm uma grande parte da responsabilidade. A isso se devem somar as atividades no próprio Pantanal como o desmatamento, a introdução de pastagens exóticas, o mau manejo do gado, o uso abusivo do fogo, a navegação de lanchas rápidas, a introdução indiscriminada de búfalos e os aterros e estradas, que também impactam no estoque natural. Ou seja, na verdade, para restaurar a pesca deve-se manejar a bacia do Alto Paraguai.

Tem mais. É indispensável, para manejar o recurso pesqueiro pantaneiro, dispor de verdadeiras estatísticas de pesca, baseadas em fatos e, assim mesmo, precisa-se saber mais, muito a mais, sobre os peixes, sua biologia e, em especial, sua dinâmica populacional. Só assim poderia se afirmar que uma moratória de “n” anos resolverá alguma coisa. De outra parte, uma das técnicas conhecidas, baratas e efetivas de manejo pesqueiro extensivo é a criação de reservas de pesca. Estas são áreas onde se conhece que os peixes se reproduzem e onde não se pesca, sendo aproveitados apenas os excedentes populacionais que a cada ano produzem. Em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, essas reservas são protegidas com participação dos próprios pescadores. Obviamente, levando-se em conta as migrações reprodutivas, essas reservas devem ser associadas a outras medidas.

O mencionado nos dois parágrafos anteriores e muito mais, estava incluído e orçado com muitos milhões de dólares disponíveis no Programa Pantanal, que os dois estados pantaneiros desenvolveram, com grande esforço, junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Como se sabe, o programa foi aprovado no ano 2000 e o Brasil teve, à sua disposição, um empréstimo de US$165 milhões de um total de US$400 milhões para suas duas fases. Mas, o governo federal atual considerou que esse dinheiro, para salvar o Pantanal, era uma “herança maldita” do governo anterior. Mas essa é outra história!

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.