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Legislar não é brincadeira

Legislar é importante demais para que deputados e senadores resolvam sozinhos questões técnicas e complexas. O resultado são leis que beiram o ridículo.

14 de julho de 2006 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Com grande freqüência se toma conhecimento de novas ou antigas leis que, pretendendo proteger o meio ambiente, têm por resultado exatamente o contrário do que se procurava. Ou, quanto muito, são leis absolutamente inócuas. Duas pérolas legislativas explicam a situação: a lei federal que exige o registro no Ibama de todas as motosserras, com o pretexto de se evitar desmatamento ilegal e a lei estadual (Distrito Federal) que exige o registro dos compradores de tinta spray, para evitar as pichações. Mas, na realidade, existem muitas outras leis, bem mais importantes, que sempre com a intenção declarada de proteger o entorno natural e seus recursos, provocam prejuízos e problemas ainda maiores ou que, simplesmente, só servem para estorvar.

Quando em qualquer lugar do Brasil se compra uma motosserra, de qualquer tamanho, deve-se registrar o equipamento no Ibama, que ademais, cobra por isso. Pior ainda, essa licença deve ser renovada a cada ano. De nada serve alertar que a motosserra é a menor existente no mercado, que é obviamente inapta para cortar as árvores da floresta e que só pode ser usada para podar árvores frutíferas ou ornamentais. Claro que os próprios vendedores, após cumprir o ato de informar sobre essa obrigação, são os primeiros em comunicar que se não se cumpre essa lei “não passa nada”.

De fato, é impossível acreditar que o Ibama, já abrumado de obrigações burocráticas de todo tipo, possa distrair seu escasso e atribulado pessoal para registrar as ditas cujas. Quanto mais ir pelo Brasil todo verificar as licenças dos milhares de motosserras que se usam no dia-a-dia em locais os mais longínquos imagináveis e, muitas vezes, no interior de propriedades privadas. De outra parte, os legisladores esqueceram que a motosserra é apenas uma ferramenta e não é essa máquina decisiva para se desmatar a Mata Atlântica, nem a Amazônia. Para evitar isso, se realmente se deseja, existem outras alternativas bem mais lógicas e eficazes.

Diga-se de passagem, países como Bolívia e Peru também condenaram a motosserra, embora unicamente para seu uso de serrar madeira. Com efeito, nesses países, como também em alguns lugares no Brasil, a motosserra substitui as serrarias fixas ou portáteis, produzindo, em pleno mato, peças curtas de madeiras finas, em especial mogno e cedro, facilitando a sua exploração ilegal e, o que é pior, provocando o desperdício de enormes volumes de madeira. Embora nesses países a proibição do uso de motosserras para serrar madeira não tenha implicado em proibir a sua venda nem exigir seu registro, a medida tampouco funcionou pela mesma razão. Ou seja, o fato de ser incontrolável. Como no caso do Brasil, essa legislação não encarou o verdadeiro problema.

Inviável

Ao comprar tinta spray em lojas sérias de Brasília, o cliente topa com perguntas surpreendentes e irritantes que incluem: nome e sobrenome, nome e sobrenome do pai e da mãe, números dos documentos de identidade, idade, domicílio, profissão, razão social do emprego, uso a ser dado à tinta, etc., etc. Só após demonstrações veementes de cólera, o gerente, às vezes, consegue informar que existe uma lei estabelecendo que a venda desses produtos é controlada e que cada comprador deve ser registrado.

Claro que o cliente, que detesta esse constrangimento, só precisa caminhar alguns metros para comprar o mesmo produto em outra loja, sem impedimento nenhum. E se não encontrá-lo por lá, sempre pode ir à “Feira dos Importados” ou, simplesmente, ir até a cidade mais próxima do vizinho estado de Goiás, onde ainda nenhum legislador copiou a brilhante idéia. Mais ainda, quem vai evitar que os filhos do honesto comprador da tinta spray, sem seu conhecimento, usem essa tinta para desenvolver seus instintos artísticos, seu amor juvenil ou seus protestos políticos nas paredes da cidade? Trata-se, pois, de outra lei pretensamente boa que, na pratica, é somente um estorvo ridículo.

Lamentavelmente, qualquer exame de leis bem mais importantes, como as que regulam o uso ou determinam a conservação dos recursos naturais renováveis, demonstra a existência de inúmeros artigos tão absurdos, por contraproducentes, inúteis ou inaplicáveis, como os dispositivos mencionados. Grande parte dos artigos escritos em O Eco a cada ano tem sido dedicada precisamente a demonstrar os erros e inconsistências da legislação ambiental e de recursos naturais do país. Seus defeitos mais freqüentes são: em primeiro lugar a pretensão de ser “as melhores e mais avançadas do mundo”, esquecendo que a realidade nacional não corresponde a isso, o que redunda na sua inaplicabilidade. Em segundo lugar: o esquecimento sistemático de cobrir os custos da aplicação das leis onde em nenhum de seus, às vezes centenas de artigos, se dedicam a indicar os recursos que os organismos responsáveis disporão para sua aplicação. Essa simples ausência determina, na prática, o caráter inviável da nova lei, mesmo que até possa conter muitas medidas acertadas.

Legisladores ignorantes

Uma explicação para a geração de tantos dispositivos legais absurdos ou exagerados e, por isso, inaplicáveis é a ignorância dos legisladores sobre os temas e sobre a realidade que rodeia o objeto sobre o qual legislam alegremente. Outra: nos casos mais graves, sua intervenção é apenas para cumprir suas quotas anuais de projetos de lei aprovados, necessários para justificar sua reeleição. A simples revisão de leis recentes sobre unidades de conservação, recursos florestais e biodiversidade demonstram a pouca compreensão predominante sobre o problema abordado. Na lei vigente de unidades de conservação existem várias categorias não necessárias e duplicadas entre elas mesmas. Na última lei sobre concessão florestal, por exemplo, fica explícita a incompreensão do aspecto mais importante da mesma, que é a obrigação de se fazer manejo sustentável do recurso madeireiro, que no texto se limita a uma frase retórica e oca.

Por isso, dentre muitos outros problemas, no país as rotações florestais são agora de apenas vinte anos, quando está demonstrado que nos trópicos úmidos se requer rotações de duas a três vezes mais longas. A legislação sobre biodiversidade, por exemplo, redundou no atraso crescente do Brasil em indispensável pesquisa biológica pela instauração de medidas draconianas ou risíveis contra a “biopirataria”. Estas, de uma parte, não evitam o verdadeiro problema e, de outra, tampouco contemplam o desperdiço que são as espécies extintas a cada ano por desmatamento e queimadas, problema que a lei não combate eficazmente e que, pelas medidas legais existentes, nunca serão conhecidas pela ciência.

Outra característica de muitas das leis sobre recursos naturais é que elas simplesmente repetem a anterior, inclusive os erros, limitando-se a mudar os nomes das instituições ou a estabelecer novas. Isso também aconteceu com a última lei florestal onde se cria um serviço florestal, para fazer o que o Ibama poderia ter feito sem necessitar de uma nova lei. É como quem adquire um carro novo e não o usa por anos porque não tem combustível nem motorista e, então, compra um carro novo de outra marca que, outra vez, fica esperando na garagem para ser usado. Vários estudos sobre a aplicação de leis em meio ambiente e recursos naturais na América Latina demonstraram que, até o momento de se fazer uma nova lei, até 70% dos artigos mais transcendentes da lei que se muda nunca foram aplicados. Isso, em geral, porque as leis não previram os recursos para sua aplicação.

Nenhuma das situações descritas deveria se dar. Em geral, as instituições que fazem as propostas de dispositivos legais proporcionam projetos bem feitos e não esquecem que toda lei nova, que demanda esforços novos ou adicionais para as instituições públicas, devem “nascer com seu pão debaixo do braço”, ou seja, com indicação clara de como serão cobertos seus custos. Se os legisladores querem introduzir mudanças, têm todo o direito do mundo, mas devem fazê-lo de modo responsável, consultando especialistas em quem confiam, caso não confiem nos proponentes originais. Obviamente, aqui se fala de especialistas de fato. De outra parte, é absolutamente irresponsável aprovar leis de custosa aplicação sem indicar nenhuma fonte ou alternativa para custeá-la. No caso de projetos de lei ridículos como o acima mencionado, a título de exemplo, cabe à maioria dos legisladores votarem contra e não demonstrar condescendência com os proponentes.

Do mesmo modo como se diz que a guerra é um assunto importante demais para deixar sua condução nas mãos dos militares, cabe dizer: legislar é demasiado importante para deixar que deputados e senadores resolvam sozinhos, questões técnicas de grande complexidade para as quais não têm nenhuma capacitação, embora muitos deles não acreditem nessa verdade. Tristemente, a vaidade gerada pelo poder faz que muitos desses personagens se sintam mais próximos dos deuses que de seus eleitores e, em todo caso, muito longe das intimidades e relatividades dos temas técnicos que frequentemente devem tratar.

Um pouco de humildade por parte dos legisladores faria muito bem para o futuro da legislação ambiental e para o meio ambiente. Assessores ou consultores a tempo parcial e reconhecidamente competentes para problemas específicos poderiam resolver essas deficiências, sem que as decisões legais derivadas de suas recomendações interfiram com os objetivos políticos de cada grupo. Considerando os enormes recursos postos à disposição de cada deputado e senador e de cada comissão do Congresso ou das assembléias estaduais, isso não é muito pedir. Legislar é coisa muito séria. As conseqüências dos erros são perduráveis e a história não perdoará aos que leviana ou maldosamente cometeram erros.

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