Colunas

Pesquisa certa, conclusões erradas

Cientistas gastam dinheiro e esforço em projetos de pesquisa que nem sempre serão capazes de agregar conhecimento à conservação da natureza. Muitos terão o efeito contrário.

16 de março de 2007 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

A televisão é uma fonte inesgotável de inspiração para quem escreve colunas. Assim, há alguns dias tomei nota de um cientista que propunha como parte da solução para produzir o carvão consumido pelas empresas siderúrgicas, a utilização da casca da fruta da castanheira do Pará. Segundo o despretensioso entrevistado, desta forma se contribuiria para a redução do desmatamento gerado pela procura de carvão vegetal. Os entrevistadores, admirados, mencionaram o fato como um exemplo das engenhosas soluções que ajudariam a mitigar o aquecimento global.

Sem discutir o fato, provavelmente bem demonstrado, que a casca da fruta da castanheira tem um poder calorífico elevado, subsiste a realidade de ela ser uma árvore que se desenvolve com baixa densidade na floresta e que, por isso, é explorada artesanalmente se percorrendo a pé trilhas longas e difíceis. Assim, os coletores de castanha descascam (“quebram”) as frutas caídas ao pé da árvore, a golpe de facão, e transportam unicamente as sementes, o que é bem mais fácil. É impensável supor que possam coletar e carregar nas costas as pesadas frutas inteiras para que, quiçá, seus resíduos sejam transformados em carvão em alguma cidade distante das suas posses. Tampouco existiria quantidade suficiente de casca para que uma operação desse tipo fosse economicamente viável, menos ainda considerando o enorme volume da demanda de carvão para siderurgia. Localmente, como é lógico, sobra lenha e não existe demanda por carvão. Finalmente, se a idéia é que essa operação seja montada com base nas plantações de castanheira, o que faria mais sentido, vale a pena lembrar que essas são muito raras e pequenas. Em conclusão, o único interessante da pesquisa é o que o pesquisador pesquisou, ou seja, o valor calorífico da casca da fruta da castanheira. Todo o resto é especulação. Ademais, o pesquisador parece não saber o que seus colegas já demonstraram, ou seja, que a castanheira do Pará está em franco processo de diminuição, não só por desmatamento, mas, especialmente, pelo mesmo fato da coleta das suas sementes, o que impede a sua regeneração e dispersão.

O caso anterior é um dentre muitos outros que demonstram, com freqüência, que os pesquisadores, ademais de escolher temas irrelevantes, confundem o público. Isso porque, tendo feito um avanço científico modestíssimo, extrapolam suas aplicações sem ter sequer a real dimensão da viabilidade do que propõem. Inúmeras vezes, como professor tive de criticar, por exemplo, pesquisas sobre as propriedades nutricionais da carne de animais incluídos na lista de espécies raras ou em perigo iminente de extinção, cuja caça e comercialização estavam legalmente proibidas. Propalar na imprensa que a carne das tartarugas marinhas tem propriedades nutricionais excepcionais e que é deliciosa só pode aumentar o consumo e a captura dessas espécies. Outra coisa seria se essa pesquisa estivesse acompanhada de experimentos que demonstrassem a viabilidade de seu manejo ou domesticação. Mas, os exemplos são inúmeros e variados, inclusive sem entrar nos temas das pesquisas mal feitas ou desonestas.

Uma das pesquisas amazônicas mais conhecidas foi realizada, durante cerca de duas décadas, perto de Manaus procurando determinar o tamanho mínimo de áreas de floresta necessárias para conservar a sua biodiversidade. Após alguns anos, este objetivo assim como o título da pesquisa foi mudado para outro: determinar as características do efeito de borda sobre a floresta. Pode parecer a mesma coisa, mas, na realidade, trata-se de objetivos bem diferentes. Saber qual é o tamanho mínimo para estabelecer unidades de conservação é irrelevante. Em qualquer situação a única estratégia sensata para estabelecer uma área protegida é procurar a maior área que seja tecnicamente desejável e possível respeitando direitos de terceiros, condições econômicas e outras limitações. Se a única área disponível é muito pequena para que as espécies nela contidas sobrevivam, ter uma idéia das características da erosão genética em bordas e de quanto tempo se dispõe para tomar outras medidas que garantam a sobrevivência das espécies endêmicas pode ser útil. Neste exemplo, que pela sua alta qualidade científica não é comparável aos casos anteriores, os resultados da pesquisa foram muito mais valiosos a partir do momento em que o objetivo foi devidamente enfocado, levando a conclusões realmente proveitosas.

Outro tipo de situação ficou ilustrado pela revisão recente de pesquisas desenvolvidas no Pantanal, entre as quais se detectou o caso de um estudo sobre o potencial antiviral de plantas componentes da dieta de cervídeos. Não se teve explicação de porque foi necessário, para determinar a capacidade das plantas para inibir a propagação de vírus de importância para humanos e animais domesticados, se referir a “dieta dos cervídeos”, menos ainda aos do Pantanal. Mas, é evidente que a tal pesquisa poderia ter sido realizada a baixo custo a partir de plantas coletadas em qualquer lugar do país, inclusive nas portas do laboratório do pesquisador, a dois mil quilômetros de distância. Diga-se de passagem, a planta mais promissora detectada foi a exótica braquiária que existe, como pastagem ou como praga, em todo o território nacional. O mais curioso, neste caso, é que a justificação da pesquisa foi “contribuir ao desenvolvimento sustentável do Pantanal”.

Também, lamentavelmente, existem pesquisas que não servem para nada. Dentre elas destacam os pretensos inventários da fauna de invertebrados, especialmente insetos, que sempre começam com enormes coletas. O problema é que muitas vezes os cientistas que dirigem a operação, em geral de universidades locais, não têm capacidade para identificar o material, nem sequer ao nível de família. Consequentemente, isso vira apenas em desperdício de dinheiro e de espécimes coletadas, deteriorando em coleções que ninguém aproveita, pois não se sabe o que têm, nem o que se vê. Nenhuma pesquisa taxonômica deveria ser autorizada para instituições que não têm a capacidade, pelo menos, de identificar o gênero das espécies tiradas da natureza. Sem esse requisito não é possível remeter os exemplares aos taxonomistas especializados em outras instituições nacionais ou do exterior. O objetivo dessas coletas é, na teoria, “contribuir ao conhecimento da fauna” e, assim, “assegurar sua conservação”. Na verdade, pesquisas feitas como se indica são apenas um passo a mais para a destruição da diversidade biológica.

Examinando mais a fundo os primeiros exemplos se constata que o problema não se refere aos resultados das pesquisas que brindam uma informação nova que, eventualmente, pode ser útil. Conhecer as propriedades caloríficas da casca da castanha do Pará, ou o valor nutritivo da carne de animais em extinção não é intrinsecamente errado, pois essa informação pode ser útil no dia em que essas espécies serão economicamente aproveitáveis de forma sustentável. O erro, nesses casos é a extrapolação de conclusões ou a sua mera invenção. Não é possível inferir que a casca de castanha pode alimentar a indústria siderúrgica e reduzir o desmatamento apenas a partir do seu poder calorífico. Para isso, dever-se-ia incluir na análise os estoques (inventário) da espécie e a sua produção anual, sua biologia (estacionalidade da produção); os custos de produção, transporte e processamento; as realidades da demanda, os riscos ambientais da proposta e, finalmente, submeter o projeto a uma análise econômica complexa. A idéia de que, no caso de que o anterior revele sua viabilidade econômica e social, se reduziria o desmatamento deve, assim mesmo, ser demonstrada, pois pelo que se sabe, em geral acontece exatamente o contrário. O reflorestamento (imaginemos que com castanheira) só produziria mais desmatamento de florestas naturais, como no caso do eucalipto ou do dendê. Do mesmo modo, saber que a carne de tartaruga marinha é altamente nutritiva e muito melhor que a dos peixes não implica concluir que ela deve estar nas dietas de todos os cidadãos e sugerir que deve haver um aumento da captura desses animais já quase extinguidos.

A tendência dos pesquisadores a atribuir usos ou benefícios dos resultados das suas pesquisas, que não estão comprovados é muito comum. Até daria uma excelente pesquisa analisar a porcentagem de conclusões das pesquisas apresentadas em congressos e outros eventos (e também em teses universitárias) que não guardam correlação alguma com os resultados da pesquisa. Para isso bastaria comparar, numa tabela, a coluna com os resultados (estritamente obtidos pelo método científico) com as que incluam o que os autores consignam como “conclusões” e, especialmente, como “recomendações”. A magnitude do divórcio entre essas colunas pode alcançar proporções surpreendentes.

A pesquisa, como mencionado em artigo anterior do autor, tem uma áurea de santidade e a sua mera invocação impõe o respeito dos leigos. A melhor recomendação para quem não é especialista, mas, que deseja saber se uma pesquisa é aplicável ou não no que seus realizadores proclamam, é usar o bom senso. Esse, embora não seja tão comum como deveria, é o melhor e mais seguro mecanismo de avaliação disponível.

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