Era para ser uma boa notícia: o governo finalmente reuniu o Conselho sobre Mudança Climática, que será coordenado pelo físico José Pinguelli Rosa. Foi na undécima hora. A COP 10 começa em Buenos Aires daqui a cinco dias. O Brasil tem muito a fazer nela. É o começo da discussão sobre a Fase 2 de Quioto que certamente representará um desafio para o país. Mas começou mal. O discurso do presidente Luiz Inácio é de um vazio inquietante. Mostra que não tem a mais leve noção da importância do processo de mudança climática, nem do papel do Brasil nele. Preferiu tratar só de temas acessórios e superficiais. Mais que os lugares comuns, incomodam os lugares incomuns do discurso presidencial.
O presidente perdeu uma ótima oportunidade para fixar as diretrizes e estratégias de seu governo no tema e orientar o novo Secretário Executivo do Fórum sobre Mudanças Climáticas. Pinguelli Rosa começa com poderes de representação da autoridade presidencial, o que é bom. Mas sem missão clara, o que não é bom: “embora o Presidente da República seja o presidente do Fórum, na maioria das vezes quem vai participar é o Pinguelli, falando em meu nome, porque nem sempre eu vou poder participar”, disse Lula. Mas que missão exercerá Pinguelli Rosa, em nome do presidente? Se depender de Lula, ninguém saberá. Dirigindo-se a Pinguelli Rosa, o presidente disparou: “essa tarefa que você assume agora é, possivelmente, mais nobre do que aquela que você assumiu na Eletrobrás. E por que mais nobre? Porque essa é trabalho gratuito. E porque nessa você não tem um chefe ou vários chefes diretos. Nessa, você tem um conjunto de pessoas representativas da sociedade, onde vocês vão discutir e aprofundar as divergências, porque num Fórum como esse não pode ter temas proibidos”.
É um discurso sem tessitura, que elide todas as dimensões do tema e mostra que o presidente não tem noção de nossa co-responsabilidade na mudança climática. O melhor que o presidente tinha a dizer é que “nós estamos de olho no Protocolo de Quioto, nós estamos de olho nessa coisa bonita chamada crédito de carbono”. Saiu para uma reunião que pode vir a ser muito importante, sem ter o que dizer. Não demonstrou ter consciência do que se espera do presidente da República e do Fórum, em um momento como o que vivemos. Ou desprezou o briefing e resolveu improvisar. Seu papel deveria ser o de dar a visão estratégica, informar ao Fórum sobre as diretrizes do governo na COP 10 e nas negociações em torno do Protocolo de Quioto. Que prioridade dá seu governo à questão climática e ao enfrentamento da ameaça que ronda a Amazônia? Após ler, atentamente, o seu discurso e o de sua ministra do Meio Ambiente, não sei responder.
O presidente insistiu muito no papel das divergências, defendendo a crítica e o pluralismo: “quando vocês estiverem discutindo aqui, vocês não têm que ter veto às coisas que vocês têm que propor. Que vai ter divergência, vai”. Ou “As divergências, se forem discutidas de forma civilizada e democrática, obviamente terão resultados positivos. Se forem discutidas de forma desastrada, não trarão nenhum resultado”. Ele nunca esclarece o teor das divergências de que está tratando. Elas aparecem sempre no vazio, sem objeto definido, sem pauta. “Nós não podemos achar que já temos inimigos antes de conversarmos com as pessoas. Eu acho que se vocês conseguirem estabelecer um novo padrão, não apenas de produção das propostas, mas de encaminhamento das soluções, eu penso que a gente pode avançar muito”. Sem uma visão plural e uma atitude pluralista, corremos o risco de ver a posição brasileira contaminada pela ideologia. A ideologia nos exime de responsabilidades maiores, porque atribui aos desenvolvidos a culpa histórica. Nossa visão está marcada pela ambivalência, que se expressa na idéia, falsa, de que somos subdesenvolvidos e merecemos leniência.
Governo Partido
Talvez, ao teorizar sobre o conflito, Lula estivesse pensando nas contradições e paralisias de seu governo. Ele sabe que seu governo está imobilizado por suas próprias contradições, por falta de comando estratégico e excesso de centralização: “se nós conseguirmos fazer com que o governo não continue sendo um governo que, de um lado, dá com uma mão, e, de outro lado, tira com a outra mão; o mesmo governo que autoriza é o mesmo governo que proíbe; o mesmo governo que pede para alguém dar licença prévia, mas faz uma lei tão rígida que condena, se o cidadão der a licença prévia e cometer algum equívoco… então, ele não dá a licença prévia”. Por isso anda menos triunfalista: “eu vejo essa reunião como um recomeçar, como diz a música do Ivan Lins: “começar de novo”… Ou seja, não adianta ficar chorando o tempo que a gente ficou parado ou o tempo que funcionou antes da gente. Nós temos que fazer o seguinte: o que vamos fazer daqui para a frente? O que nós já temos de acúmulo e o que é preciso fazer? Sabendo que tem momentos de muita discussão, que tem momentos em que a gente tem que negociar, que as coisas não acontecem do jeito que a gente quer”.
O presidente tem toda razão em dizer que esta reflexão vale para toda a sua administração. E, ao final, pelo menos, determinou que os oito ministros que fazem parte do Fórum compareçam às reuniões: “todos os ministros, todos, sem distinção – o Presidente pode até, em algum momento, não comparecer, será compreensível – mas todos os ministros que fazem parte do fórum têm obrigação de comparecer”.
O mais grave, porém, é que na questão do clima e, em particular, da Amazônia, o governo não dá sinais de que vê o que se passa no mundo real. Não demonstra ter consciência dos graves erros que cometeu na área ambiental, no seu primeiro biênio. Tem prioridades declaratórias. Suas ações são perfunctórias. Em resumo, não tem política, não tem noção de relevância e confunde, sistematicamente, falação com ação.
Amazônia e mudança climática são temas indissociáveis. Somos um grande emissor de carbono não por causa de nossas chaminés, mas por causa das queimadas. Estamos do lado errado da equação do carbono, por causa do desmatamento vertiginoso, que a ministra Marina Silva não parece ver. O presidente, pelo menos, reconhece o fracasso de seu governo na Amazônia: “tudo isso é muito difícil mas, também, tem que ser entendido como um exercício de conscientização, um exercício de convencimento. Quando nós fomos à Amazônia inaugurar uma estrutura do Ministério do Meio Ambiente para termos, em tempo quase real, o controle das queimadas, na teoria parece que tudo funciona bem, mas na prática as coisas demoram mais, a gente não consegue fazer”.
Onde a Vista não Alcança
A ministra Marina Silva, que deveria estar debruçada sobre as fotos de satélite, traçando um plano de guerra para estancar a destruição recorde de sua mata, parece nem se dar conta da tragédia que está dirigindo. Embora trabalhando com dados defasados, em relação ao que já se sabe extra-oficialmente, o ministério de Marina Silva divulgou seu balanço do desmatamento de agosto do ano passado a agosto deste ano: entre 23.100 e 24.400 km2. No ano passado, o desmatamento de 23.750 km2 já foi o segundo maior da história, no mesmo período. Logo, se der a banda superior do intervalo, Marina Silva que já é medalha de prata, ganhará uma de ouro, como campeã mundial de desmatamento, em 2004. Este ano só um milagre ou um colapso nos satélites, lhe tirará o ouro.
Mas a ministra não parece ter olhos de ver a sua Amazônia arder. Na reunião do Fórum sobre mudança climática, ela já antecipou qual será a atitude brasileira: o “Brasil tem, historicamente, defendido o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, que norteia a Conferência sobre Mudança do Clima e o Protocolo de Quioto. A aplicação desse princípio é fundamental para imputar as responsabilidades históricas aos países que mais contribuíram para o agravamento do efeito estufa”. Pelo menos a ministra reconhece que andamos contribuindo como gente crescida para as emissões globais de gases de efeito estufa. Ela esclarece que o “arranjo internacional baseado no princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, não estabelece, para o Brasil, metas de redução de emissões. Não temos metas, nossas responsabilidades são diferenciadas, mas temos responsabilidades. O Ministério do Meio Ambiente tem estado atento ao tema e às suas competências no contexto governamental. Particularmente, temos a consciência da incômoda posição brasileira de grande emissor de gases de efeito estufa, resultantes, principalmente, das históricas taxas de desmatamento na Amazônia brasileira”.
Por isso, diz ela, ainda, “é fundamental que se reconheçam as medidas que estamos adotando para combater esse problema. Desde que assumi o Ministério, e em consonância com as orientações do Presidente Lula, tenho defendido que, na área internacional, o Brasil deve adotar uma política de liderar por exemplos. Por isso, estamos adotando todas as medidas que se fazem necessárias para promover políticas de desenvolvimento sustentável na Amazônia e reduzir os índices de desmatamento na região”.
Exemplo ao Avesso
O exemplo está dando errado e a ministra ainda não se deu conta. Se estamos liderando pelo exemplo, estamos à frente do exército inimigo, da destruição ambiental. Em cerimônia de assinatura do termo de doação de recursos do Banco Alemão de Crédito para Reconstrução, que beneficiaria o programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), a ministra afirmou que é prioridade do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva controlar e prevenir o desmatamento na Amazônia. “As unidades de conservação ocupam papel importante no combate ao desmatamento, elas direcionam a ocupação e evitam o desmatamento”, disse a ministra. Para ela, o “ritmo do programa está cada vez maior. Estamos consolidando uma ferramenta importante para que o plano de combate ao desmatamento seja um sucesso”. Como entender, então dois anos de recorde de desmatamento?
Ao criar a Câmara Técnica Permanente sobre Espécies Ameaçadas, a ministra afirmou que o Brasil, assumiu o compromisso, no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica, de reduzir significativamente, até 2010, a taxa atual de perda de biodiversidade. “É uma meta ambiciosa que somente será alcançada se países megadiversos, como o Brasil, conseguirem mobilizar os esforços necessários para conter a acelerada taxa de perda da biodiversidade que se observa particularmente nos ecossistemas tropicais”, reconheceu. Logo era, mesmo para ser prioridade, reduzir drasticamente o ritmo de desmatamento e buscar soluções funcionais e viáveis do ponto de vista fiscal, para reverter o quadro de destruição das unidades de conservação do país. Mas nada disso aconteceu e temo que pouco mais que isto acontecerá nos próximos dois anos.
No discurso que fez para o Fórum, Marina Silva também perdeu a oportunidade de definir uma estratégia, que a orientasse a ação da delegação brasileira nas novas discussões sobre clima. Ela disse que o governo está “adotando todas as medidas que se fazem necessárias para promover políticas de desenvolvimento sustentável na Amazônia e reduzir os índices de desmatamento na região. Foram tomadas medidas importantes, como o estabelecimento de um novo modelo de assentamento rural, os Assentamentos Florestais, e o plano de combate ao desmatamento na Amazônia, resultado de um inédito trabalho de parceria, realizado por 11 ministérios. Isso se faz não porque o Brasil tenha metas internacionais a cumprir, mas por entender que a redução do desmatamento é uma obrigação que temos com a nossa própria sociedade”.
Para quem sabe o que se passa no Brasil real, a falação da ministra deve ter soado como dissonante e alienada. Preferiu desconhecer que este ano retrocedemos na luta contra o desmatamento, na tentativa de reduzir a perda de biodiversidade, na construção de um padrão de comportamento exemplar, para um país do anexo 2 do Protocolo de Quito, portanto desobrigado de cumprir metas. A desobrigação, para nós, se transformou em autorização para destruir matas.
Hora da Verdade
O problema é que o governo fala demais, cria comissões, conselhos, câmaras e fóruns, demais, todo dia lança um plano ou programa novo, está poluindo com mais siglas o já rarefeito ambiente burocrático de Brasília. Por tudo isto, consome mais papel, gasta mais horas de reuniões estéreis e discursos vazios e age de menos. Continua com discurso de oposição, sem reconhecer a inoperância governamental e culpando o passado pelas omissões do presente. Nossa atitude nas negociações internacionais sobre o clima será definida ad hoc, muito provavelmente longe do Fórum sobre Mudança Climática e do Ministério do Meio Ambiente. E a política ambiental doméstica será determinada pelo jogo bruto de interesses. Dá para saber quem vai ganhar.
Acho que vale mesmo, é a percepção aguda do presidente, de que seu governo faz com uma mão e desfaz com a outra. Está paralisado pelo efeito de duas forças endógenas contrárias. Mas nem sempre de igual potência, daí os retrocessos. A ministra está sempre do lado perdedor: no escândalo de Barra Grande e na queda de braço com os ruralistas da direita e os desenvolvimentistas da esquerda do governo, no projeto de lei de biossegurança. Na questão da “revitalização do São Francisco”, ela já capitulou, disse que é “uma unanimidade para o Governo Federal”. Não é para o Brasil. Incapaz de assegurar a integridade das unidades nacionais de conservação, defendeu o seu xodó, as reservas extrativistas, dizendo que o governo vai “garantir a preservação das áreas e o fim das ocupações irregulares”. Parece não ter ouvido as partes de seu discurso em que reconhece as complexidades e dificuldades que enfrenta, nem o cândido reconhecimento do presidente de que toca um governo dividido e descoordenado.
Em um breve momento, no discurso para o Fórum sobre Mudança Climática, a ministra se aproximou da incômoda realidade, para reconhecer que os passos dados por seu governo “são esforços ainda tímidos diante da complexidade do tema e do volume de incertezas que ainda nos cercam”. Entre a timidez e a inação, periga inflacionar sua conta ambiental de perdas e danos.
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