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Elementar, meu caro

Causas e soluções para muitos de nossos problemas ambientais são elementares. Mas estamos ficando feios, nosso patrimônio natural pobre e nossas matas ralas.

21 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

– É possível mudar nossa atitude ambiental?

Ouço essa pergunta de quase todos os amigos e conhecidos a quem conto que estou envolvido com O Eco. E, não raro, ela vem acompanhada de outra, mais cética ainda:

– E precisa mesmo?

São perguntas legítimas de pessoas que não estão informadas sobre meio ambiente e temerosas de que esse zelo acabe, mesmo, conspirando contra o desenvolvimento material e a diminuição da pobreza.

Sem querer fazer pouco das mentes e corações que abrigam essas dúvidas e que ainda são a maioria no Brasil – talvez no globo – as respostas para elas são elementares. E é, talvez, essa a origem principal de minha maior inquietação.

É claro que dá para mudar de atitude. Vários dos problemas de que tratamos aqui em O Eco, nesses cinco meses, têm causas e soluções elementares.

Tomemos o exemplo da matéria exemplar de Marcos Sá Corrêa sobre Barra Grande. A causa do problema é uma soma aritmética de erros elementares. A maioria dos EIA-RIMA não passaria como trabalho de curso de introdução à análise de impactos ambientais. Elementar: as agências reguladoras aceitam relatórios de quinta, para questões cujo impacto pode ser de primeira grandeza. As empresas não têm o menor prurido em assinar esses relatórios insuficientes – quando não omissos, quando não mentirosos – nem grandes empresas e grandes investidores, com reputação a zelar, em utilizá-los. Como não fariam isso em outras áreas de seus negócios, significa que, no campo ambiental, não há, na percepção deles, grandes riscos de dano à reputação, mesmo patrocinando grandes danos ambientais. Esse custo é tão baixo, por causa da omissão – quando não conivência das autoridades – e do descaso da imprensa, que torna a opinião pública insensível e desinteressada. O que a opinião pública não sabe e não vê, ela não sente e não dá importância. Quando ela vê um pássaro morrendo com as penas encharcadas de petróleo, ela sente, ela fica indignada e pede que se punam os responsáveis. É uma cena tão forte, que dá primeira página fácil. Ainda bem. Muitos dos grandes desastres, porém, são menos visíveis que uma ave encharcada de petróleo. É preciso descobrir como fazer com que a opinião pública os veja.

Mas a soma de erros não acaba aí. Licença prévia não pode autorizar construções definitivas. Elementar, não é? Mas foi o que aconteceu em Barra Grande. Logo, se algum investidor se sentiu seguro o suficiente para construir uma barragem, sem licença definitiva e, ainda, de quebra, para pedir para cortar a mata que não existia no local, segundo os dados em que se baseou a agência supostamente reguladora para emiti-la, é porque se sentia seguro de que não enfrentaria problema algum. Sentia-se livre para construir sem licença e para manter a mentira de que não havia vegetação nobre a inundar. Dizer que não criaram a mentira não vale. Querem lucrar com ela. É o que vale.

Dia desses um empresário contou para uma jornalista amiga minha que tem licença prévia para construir uma barragem, mas só iniciará as obras, quando obtiver a licença definitiva. Elementar, licença prévia é para fazer projeto, obter a promessa de financiamento de investidores, não para executar obras físicas e definitivas. Uma irregularidade dessas só comporta uma punição: perda do investimento realizado irregularmente. Multas não resolvem, entram no preço e são amortizadas até mais rapidamente que o investimento. O único desincentivo forte o suficiente para mudar atitudes empresariais é o prejuízo.

Tudo ficaria por isso mesmo, não fosse o Marcos Sá Corrêa ir bisbilhotar de helicóptero a inexistente área a ser desmatada. Fotografada e publicada, ela provocou uma ação judicial. Prova de que, pouco a pouco, as instituições se vão impondo. O juiz e o desembargador cumpriram suas obrigações de zelo pelo patrimônio coletivo e pelo império da lei. Até agora, o público está ganhando, embora tudo tenha começado contra. Atitude imprópria é a que imagina que fato consumado não tem conserto. Como disse a ministra Dilma, o mal está feito, paciência. Não, a maior parte do mal ainda não foi feita. Logo nada de paciência. Mobilização e ação, porque ainda dá para trocar o prejuízo coletivo, pelo prejuízo privado. Ainda dá para implodir a barragem ilegal, ao invés de desmatar a mata sonegada no relatório de impacto ambiental. Elementar…

Marc Dourojeanni fala da degradação de Itacaré. Essa, como ele lembra, é uma história que não começou na Bahia. Lá ela apenas se repetiu como tragédia em escala maior. Começou no litoral de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, as primeiras praias a terem a maior parte de seu potencial turístico destruído por causa da superlotação, da superurbanização e do enfeamento absurdo. As encostas, onde nasce e se põe o sol, muitas vezes, ficam cobertas de construções horrorosas. A vegetação – e as matas, quando existem – são destruídas. A qualidade da vida nas cidades assim formadas se perde definitivamente, com problemas de água, esgoto, luz, trânsito, marginalização. Até entendo a urbanização e o loteamento. Não entendo é a aceitação da feiúra, que destrói aquilo mesmo que se buscava. Culpa dos prefeitos e das populações. Um bom código de zoneamento urbano e regras urbanísticas e estilísticas para as construções, em cada tipo de zona de ocupação, combinadas à definição de zonas de não edificação, permitiriam que as pessoas desfrutassem – e até se apropriassem de uma cota parte – da região, sem destruir sua beleza. Nesses casos, se justificaria, claramente, a cobrança de taxas municipais, para financiar as obras de infra-estrutura necessárias e a manutenção de um serviço de garantia de qualidade do ambiente natural e turístico da região. Seria uma fração do que é gasto nas medonhas construções e na facilitação do processo de apropriação das terras.

Freqüentei Guarapari e as praias vizinhas, nos anos 50 e 60, acompanhando meus pais, em férias. Como bons mineiros, anexavam à sua rotina anual a ida às praias do Espírito Santo. Algumas eram desertas, como desertas foram Porto Seguro e Itacaré. Hoje são aglomerados urbanos feios e fisicamente estratificados: os ricos na orla, os pobres nos fundos e nas encostas. As avenidas costeiras das cidades maiores, como Guarapari (mas, também, Fortaleza, Salvador, Recife) são, todas, arremedos da avenida Vieira Souto, a qual é um arremedo mais feio da avenida Atlântica, que não chega aos pés da elegância e estilo dos prédios da praia do Flamengo. Tudo construído sobre coisas muito mais belas. O Rio de Janeiro ainda extasia, depois que ficou feio. Imaginem o potencial de atração que teria, se tivesse permanecido bonito. As pessoas ainda aplaudem o pôr do sol visto do Arpoador. O sol continua belo, talvez mais belo, porque a poluição incrementa os tons de vermelho. Mas o Rio de Janeiro, infelizmente não continua lindo, nem Gilberto Gil é mais o mesmo, diga-se de passagem. O ministro sufocou o poeta e o fez desprezar a liberdade. Virou um velho burocrata. Sem abraço. Elementar, precisa correndo reler seu conterrâneo, Castro Alves, para reaprender sobre o valor absoluto da liberdade.

Freqüentei Arraial do Cabo, nos anos 70, quando ainda não era mais que um arraial de pescadores, um pouco depois de Cabo Frio. Era uma gracinha. Tinha uma enorme praia de águas geladas quase todo o ano, completamente desabitada. Não tinha condomínios. Vi o primeiro carnaval em que acabou a água e os carros não cabiam na cidade, andavam quase com os pára-choques encostados uns nos outros. Hoje, a cidade está cheia de pardais (dos eletrônicos, óbvio), desfigurada, nem lembra aquele arraial de outros tempos. Depois, houve um reveillon em que Porto Seguro ficou intransitável, inundada em lixo e nunca mais foi a mesma. Depois veio o reveillon de Itacaré e, ao invés de esperanças de anos melhores pela frente, ele a marcou para decair. Porto Seguro ainda tem o centro histórico e algumas partes preservadas de sua arquitetura colonial. Itacaré, nem isso.

Estive em Itacaré duas vezes, visitando as duas pousadas mais famosas – e caras de lá – o Itacaré Ecoresort, que não merece ser considerado parte dos Roteiros de Charme e o Txai, que tem charme e simpatia, é muito caro e adota uma orientação ambientalmente amigável. Este hotel fica na praia de Itacarézinho. É vazia – estava vazia, pelo menos até o verão passado – mas se via quantidade desproporcional de lixo na areia e as construções dos ricos já começavam a surgir. A praia é maravilhosa. A maioria dos hóspedes, quase só paulistas abonados, preferia a piscina. Ficava-se com a praia para uns gatos pingados que gostam de água salgada, sol e areia e não precisam estar com o copo de caipirinha à mão o tempo todo. Não me enquadro no perfil, mas aproveitei muito a praia deserta. O resort ainda é um dos melhores do Brasil, mas a cidade é um lixo, feia como todas as outras.

Já houve o reveillon da praia da Pipa, no Rio Grande do Norte e de tantas outras, Nordeste afora. Marc tem razão, quando diz que Itacaré ainda é um paraíso, embora por pouco tempo. O que resta de paraíso, porém, já é tão inacessível e improvável, quanto o céu para católico pecador. A região já está marcada para virar um inferno.

A lição elementar dessa história é que a repetição do erro não produz nada de melhor, só de pior que os erros anteriores. Junto com a feiúra e o lixo, chegam a depreciação e a degradação do turismo. O que era região de primeira se torna destino de quinta classe, para os que não podem pagar para ir aos paraísos que ainda existem, cada vez mais raros e, portanto, muito caros. Mas o futuro é igual, perda de patrimônio, depreciação imobiliária, decadência de empreendimentos, renda em declínio. Basta lembrar que o Rio de Janeiro, hoje, é pólo turístico mundial de baixa renda.

É o mesmo erro retratado nas matérias de Manoel Francisco Brito sobre a Amazônia. A lição está na boca do secretário de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Pará, Gabriel Guerreiro, quando diz que atrás do desmatamento futuro não se encontra Éden algum, só capoeira, deserto e pobreza, como nos desmatamentos anteriores. Ou quando Manoel Francisco mostra o ciclo curto das madeireiras predatórias. O modelo repetido só produz resultados piores.

Comentei aqui, vários estudos mostrando a situação precária das unidades de conservação brasileiras. Maria Tereza Pádua, tratou de vários fatores que ameaçam nossos parques, principalmente a moda da desafetação, isto é, a reapropriação para uso comercial de terras destinadas à conservação ambiental. Blairo Maggi é o campeão da desafetação. Pedro da Cunha e Menezes tem mostrado aqui, não só as ameaças, mas as soluções para as unidades de conservação. Eduardo Pegurier comentou a penúria dos parques e a necessidade de terem planos de manejo e autonomia financeira.

De novo, causas elementares, soluções não menos. As unidades padecem de maus conhecidos e primários: indefinição fundiária, fronteiras desprotegidas, ausência de planos e práticas de manejo, falta de pessoal e recursos, agressão das populações do entorno, invasões de caçadores, colhedores e de espécies exóticas. Tudo se resume a descumprimento da lei e falta de recursos. Descumprimento da lei tem dois lados, nossa absurda cultura de transgressão, informalidade e jeitinho e falta de recursos. Falta de recursos tem uma origem só e conhecida: o colapso fiscal do estado. A situação de restrição fiscal é, no horizonte previsível de tempo, irreversível. Logo, depender do setor público para salvar nossos parques é condená-los irremediavelmente. Solução elementar, uma combinação de parcerias público-privadas, com trabalho voluntário, como mostrou Pedro da Cunha e Menezes. As parcerias público-privadas somadas aos esforços de voluntários poderiam dar origem à gestão pública, mas não estatal das unidades de conservação, a cargo de ONG`s, promovendo a regularização fundiária, treinando e formando grupos de guarda-parques, com salários compatíveis com suas responsabilidades, formulando e implementando os planos de manejo. O objetivo seria criar unidades auto-sustentáveis, se não por rentabilidade própria, por meio de esquemas financeiros público-privados, e que tenham autonomia para gerir os recursos levantados para os objetivos de cada uma, sem que se percam no buraco negro do caixa único do estado falido.

“É possível mudar nossa atitude ambiental?” Claro que é. Elementar, meu caro cético. Ela é uma atitude primária. Mas mudar o primário é, às vezes, mais difícil que alterar o que é complexo. Depende de educação informação, persuasão. Em parte, por acreditarmos nisso é que criamos O Eco.

“E precisa mesmo?” Precisa sim. É elementar: a destruição, que começou local e necessitou de expansão continuada das fronteiras, para permitir o avanço material, já se tornou global. As fronteiras estão diminuindo. Os ciclos estão encurtando. Quando os pobres do Congo comem os gorilas para matar a fome e os caçadores os matam, sem piedade, para vendê-los aos pedaços, estão liquidando mais que espécies relevantes. Estão empobrecendo o futuro, depreciando o patrimônio turístico e científico do país. Estão ficando mais pobres, não mais ricos.

“Mas os ricos ficaram mais ricos”, dirão os céticos. É fato, mas não dá para todos fazerem o mesmo. Elementar. A maior parte dos recursos destruídos não é renovável. As agressões cumulativas continuam aumentando em escala e produzindo, hoje, mais desastre e limitações, que no passado. Daí a preocupação crescente com a mudança climática. Há indícios de que estamos assistindo a um salto na quantidade e intensidade dos fenômenos determinados pela mudança do clima. Repetir os erros não produzirá resultados melhores. A natureza parece mágica, mas não é. Os mesmos erros produzirão efeitos negativos em escala cada vez maior. O passado que condena os ricos, não nos exime de responsabilidades.

A natureza é poética, sem dúvida, mas com um lado trágico. Sua fúria pode ser terrível, tão terrível quanto sua fragilidade. Por isso resolvemos fazer eco às vozes que já se haviam levantado para dizer, que ainda há tempo, mas cada vez menos tempo. Repetir que o Brasil também é responsável, cada vez mais responsável. Melhor pregar agora, quando ainda há floresta, pantanal e praias paradisíacas, que pregar no deserto.

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