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Crise de Governança e Crise Ambiental

O Brasil não vive várias crises, uma política, outra social, outra ambiental. É a mesma crise, que vai afetando a todos. A ecologia, sem apoios, sofre mais.

11 de julho de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A crise que mergulha Brasília nas trevas e atola as instituições num lamaçal de grandes proporções vem de longe. Não é de hoje, nem se resume aos escândalos que se sucedem. Ao contrário, os escândalos é que são filhotes, bastardos talvez, da crise de governança que começou no final de 2003. Mas a própria crise de governança é filha de outra maior, a crise do estado e da sociedade, que tenho comentado aqui. A tragédia ambiental é parte dessa linhagem de crises que se desdobra a partir da crise-mãe.

O coração da crise que vivemos hoje está na anulação da autoridade pública, em várias dimensões. Três delas são muito importantes para entendermos o que se passa no país, em geral, e na área ambiental, em particular. A primeira dimensão é a do relaxamento, para muito além do tolerável, da aplicação das leis e regulamentos, com a conseqüente desobediência tanto por parte de setores do estado, quanto de setores da sociedade. Esse relaxamento tem um lado moral, ou comportamental, associado à perda de valores por parte da sociedade e tem um lado material, que tem a ver com a dimensão fiscal. Esse relaxamento da aplicação e obediência às leis, levou à ampliação das cadeias de atividades informais – portanto fora do marco legal – e ilegais – estas propriamente criminosas – em todo tipo de atividade econômica e social e, em particular, em áreas com impacto direto no meio ambiente, como a florestal e a agropecuária.

A uma crise fiscal estrutural do estado, que torna insuficientes os meios para atender às necessidades essenciais de operação do serviço público e de atendimento das necessidades da população, é, então, a segunda dimensão, que tem sérios e danosos desdobramentos políticos. O Brasil vive um desequilíbrio fiscal de longo prazo, que tem raízes estruturais na conformação histórica do estado brasileiro, a qual nunca chegou a ser totalmente atualizada, em nenhuma das reformas administrativas e do estado, desde os anos 60. A política de coalizões no Brasil, que é necessária e caracteriza o presidencialismo de coalizão, tem um componente estrutural, também não resolvido, que induz ao clientelismo e à patronagem. A coalizão é uma necessidade intrínseca de nosso sistema sócio-político, caracterizado por um grau de fragmentação partidária que tem se mostrado irredutível por regras eleitorais ou legislação repressiva para criação de partidos ou formação de alianças eleitorais. É pouco provável, sob qualquer regime, que nosso sistema partidário tenha menos do que quatro ou cinco grandes partidos, certamente internamente divididos em várias facções, como acontece com todos os grandes partidos brasileiros. É improvável que o presidente se eleja com maioria de seu partido na Câmara e no Senado.O presidencialismo de coalizão se caracteriza pela necessidade de uma coalizão multipartidária como requisito para a governança minimamente estável e como condição necessária, embora não suficiente, de desempenho governamental.

Os desequilíbrios sociais e regionais que ainda temos no Brasil, associados às restrições fiscais de natureza estrutural, insuperáveis sem uma grande reforma do estado, determinam um desequilíbrio insanável no curto prazo entre as demandas e necessidades da população e a capacidade de provisão do setor público. A junção entre a crise fiscal, esses desequilíbrios e a política de coalizões tem como efeito colateral uma estrutura de incentivos que induz à dominância do clientelismo e da patronagem no processo de formulação de políticas públicas no Brasil. Só quando se blinda um determinado setor, como se fez com a política macroeconômica, é possível escapar ao sistema de pressões que termina por tornar as políticas cativas de determinados interesse, nem sempre legítimos.

O formato das políticas públicas, quase sempre envolvendo a intermediação da burocracia governamental, somada às deficiências gerenciais do setor público, agrava esse quadro, porque reduz drasticamente a produtividade e a eficácia delas. Tudo isso gera um enorme volume de pressões sobre o sistema político-eleitoral que, na ausência de respostas mais estruturais, incentiva o clientelismo, a patronagem, a troca de serviços públicos, apresentados como favores pessoais do político ou de sua máquina partidária, por voto, criando um sistema de dependência.

A economia privada não consegue atender de forma suficiente a essas demandas, por três razões principais. Primeira: temos um viés institucional em nossa estrutura federativa que incentiva a concentração regional dos investimentos. Há uma clara pressão pela descentralização da própria economia, sobretudo após a sua abertura ao exterior, mas a estrutura institucional de incentivos permanece favorecendo a concentração. A descentralização acaba por se fazer de forma desordenada e muitos agentes econômicos que se dirigem para fora do centro tendem a compensar a estrutura negativa de incentivos recorrendo à informalidade e à transgressão de regras, quando não da legalidade.

Segunda: o setor público, historicamente, absorve uma parcela considerável da poupança privada e individual, pela via dos impostos e da dívida pública, reduzindo a capacidade de crescimento da economia privada. A crise fiscal aumenta essa absorção de poupança privada e, ainda pior, esteriliza uma parcela considerável dela. Parte se perde no gasto ineficiente e parte é esterilizada, caindo a qualidade e a amplitude do atendimento às necessidades da população.

Terceira: a estrutura regulatória tem um viés anti-mercado. O elevado custo de oportunidade, o risco político e o risco regulatório são inibidores do investimento. A burocracia, a regulação e o descrédito da via privada embutido nas instituições reduzem o escopo e a propensão à oferta de soluções não estatais. Mais ainda, como se cria uma rede de impedimentos burocráticos, as soluções privadas, para se viabilizarem, acabam encontrando incentivos para entrar também na rede de patronagem. A oferta político-burocrática de desimpedimentos termina por criar um incentivo ao baixo desempenho, à burla e à criação de “caça-níqueis”. Daí a proliferação de agências privadas de baixa qualidade, que reforçam o “descrédito institucional” pelas soluções privadas. É o que explica as unidades econômicas privadas de baixíssima qualidade, que convivem com outras, de qualidade. Faculdades, hospitais, seguro saúde, de quinta categoria, empresas informais ou ilegais. Os que se recusam a entrar no sistema clientelista, pagam um preço elevado e consomem uma parte grande de seu tempo e recursos atendendo a crescentes exigências regulatórias. Ao optarem pela qualidade e pela legalidade são tratados “pelo regulamento” (by the book), via cara e penosa. Essas características da economia política brasileira têm muito mais poder de determinação da corrupção que as regras do sistema eleitoral. Uma reforma política, sem prévia reforma do estado, pouco alteraria esse quadro.

Resultado geral: perda de desempenho. No Brasil, essa queda de desempenho se traduz, imediatamente, em frustração com o governo e perda de popularidade e apoio do presidente. À medida que se enfraquece a popularidade do presidente, a luta política se torna mais acirrada. A pressão clientelista aumenta, tanto pelo lado da demanda – por parte da população desassistida – quanto pelo lado da oferta – por parte dos políticos, requisitando verbas e acesso aos instrumentos públicos de provisão para atender a seu eleitorado cativo. Não é só o governo que perde. Essa falência de desempenho leva, necessariamente, ao colapso, como se vê na infra-estrutura de transportes do país e na área ambiental.

A terceira e última dimensão é gerencial. Os processos envolvidos nas duas dimensões anteriores, de relaxamente legal e moral e de crise fiscal estrutural, incentivando o clientelismo, a patronagem e a corrupção, tornam impossível se ter quadros públicos de qualidade, na quantidade necessária e com o espírito de missão que se requer do funcionário público, principalmente daquele que exerce funções de estado. A função pública é aviltada de todos os lados: pelo crescimento da informalidade e do “jeitinho”, que pune o funcionário correto e fortalece o venal. Pela falta de recursos, que deprime os salários, dilapida o patrimônio, impede a manutenção e a própria execução dos serviços: não há viaturas, quando as há, além de estarem em péssimo estado, não há combustível, sobretudo para as atividades de campo. Pelo apadrinhamento e pela politicagem que impedem a ascensão por mérito, o reconhecimento do bom desempenho, a superioridade dos mais qualificados e sérios.

O serviço deixa de ser uma missão e se transforma em um sacrifício. A crise gerencial do estado é gravíssima, atinge sua capacidade operacional e a moral do funcionalismo. Só assim é possível entender que a superintendência do IBAMA no Pará entre em greve exatamente em uma das áreas mais críticas do país, no momento em que se lá se dá o mais vertiginoso desmatamento dos últimos anos. Não há mais senso de responsabilidade. Também pudera, não há mais respeito pelo trabalho, nem reconhecimento do mérito no serviço público. Não falo do bom chefe, que faz isso. Existem alguns. Falo de um sistema de desvalorização, desprestígio e degeneração do serviço público.

Aí, dá para entender que o governo autorize a inundação de Barra Grande, que oficializa uma operação que nasceu de uma fraude, pela qual não houve um responsável sequer punido. Sinal para todos: dá para fazer grandes investimentos no Brasil, a partir de ações irregulares. O truque é regularizar, nas etapas posteriores, com a ajuda dos órgãos públicos.

Aí dá para entender o absurdo que Manoel Francisco Brito vem narrando em O Eco, lá mesmo, no Pará: as madeireiras certificadas e em processo de certificação, invadidas pelos irregulares, enquanto o Ibama está em greve, o governo atolado numa crise da qual não sabe como sair e os interesses mais permanentes do país sendo sacrificados na desordem geral.

Aí dá para entender que o INCRA, mais uma vez, opere na ilegalidade, sob o álibi de que seus propósitos são os mais legítimos e, portanto, prevalentes, comprando uma RPPN para entregar aos seus clientes, os sem-terra. O Eco registrou. Foi em Acari, no Rio Grande do Norte. A fazenda “Ser Nativo”, uma RPPN, foi vendida ao INCRA para servir à reforma agrária. A proprietária, dona Cecília Gonçalves, já recebeu o pagamento do INCRA via Banco do Nordeste e liberou o assentamento, onde dez famílias começaram a construir suas casas.

Esse último caso é exemplar. Um órgão do Governo Federal, detentor de autoridade pública e poder – pois é agente de registro e desapropriações de propriedade – fere a lei, para realizar os seus objetivos, tal como os encarregados de sua gestão os entendem e definem. O que a lei diz? O artigo 21 da lei 9985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, diz que a Reserva Particular do Patrimônio Natural “é uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica”. O seu parágrafo 1º diz que esse “gravame constará de termo de compromisso assinado perante o órgão ambiental, que verificará a existência de interesse público, e será averbado à margem da inscrição no Registro de Imóveis”.

O decreto 1922/96, que regulamenta as RPPN’s, diz o seguinte, no seu artigo 3º: as “RPPNs poderão ser utilizadas para o desenvolvimento de atividades de cunho científico, cultural, educacional, recreativo e de lazer” e que essas atividades “deverão ser autorizadas ou licenciadas pelo órgão responsável pelo reconhecimento da RPPN e executadas de modo a não comprometer o equilíbrio ecológico ou colocar em perigo a sobrevivência das populações das espécies ali existentes, observada a capacidade de suporte da área”. No seu parágrafo 2º diz que “somente será permitido no interior das RPPN’s a realização de obras e infra-estrutura que sejam compatíveis e necessárias às atividades previstas no “caput” deste artigo”. Quer dizer o INCRA desobedeceu à lei e ao decreto. A agência responsável, o IBAMA se a RPPN for federal, a agência ambiental estadual, se for estadual, também. Virou fato consumado.

Dá para entender, mas não significa que seja justificável ou tolerável. Tenho escrito aqui, com certa freqüência, que o que aflige o meio ambiente é parte da mesma crise que atinge o estado brasileiro e suas relações com a economia e a sociedade. No meio ambiente é mais grave porque há um componente político adicional: não só não é uma prioridade do governo – nunca tivemos um governo para o qual a preservação ambiental fosse prioridade – mas a correlação de forças políticas lhe é adversa. Forma-se uma coalizão majoritária de interesses muito concretos contra as iniciativas ambientais, enquanto os defensores do meio ambiente têm que se valer de apoios mais difusos. Mas nem tudo é tragédia. Da mesma forma que andamos avançando, no meio de muitos escombros, em várias áreas, com pressão da opinião pública, apoio da mídia e competente negociação, é possível ter progresso também no campo ambiental.

Aconteceu com o PL das Florestas na Câmara. Passou, no meio do atoleiro, por causa da obstinação da equipe da ministra Marina Silva, que negociou competentemente, e da pressão na mídia. Agora, será preciso repetir a dose no Senado. Creio que mesmo os críticos do PL concordam que ficaria pior ainda sem ele. É o instrumento que as autoridades ambientais julgam necessário para combater o desmatamento. Sem ele, não teriam como agir. Agora têm. Creio, também, que a equipe do ministério concordará que não dá para esperar muito, diante da crise fiscal e gerencia do setor público.

Talvez dê para evitar que a destruição avance de forma ainda mais acelerada, mas se não atacarmos os problemas de raiz que hoje anulam o poder do estado brasileiro e, por vezes, o tornam instrumento do mal, o país vai desandar na área ambiental e em muitas mais. Não estou vaticinando o colapso societário, mas seguramente veremos vários colapsos setoriais e um deles será ambiental.

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