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Seguro para o Velho Chico

Não é hora, agora, de tocar as obras de transposição do São Francisco. A justificativa do adiamento é mais razoável e sensata do que a defesa de sua execução.

22 de julho de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Quando ouviu os protestos e questionamentos da platéia reunida no Auditório Central da Universidade Estadual do Ceará, sua terra, o ministro Ciro Gomes perdeu a oportunidade de sopesar o grande volume de objeções ao projeto de transposição das águas do São Francisco. Tratava-se de uma reunião da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. As reuniões da SBPC nunca são estritamente científicas. São politizadas, desde quando eram um dos únicos locais em que se podia falar contra a ditadura militar. Mas são também um fórum científico de alto nível. Lá, o ministro teve acesso aos argumentos dos que se opõem politicamente ao projeto e às ponderações daqueles que oferecem razões científicas e técnicas para que se tenha o máximo de cautela com ele e pedem uma avaliação mais aprofundada dos possíveis danos irreversíveis que pode causar ao São Francisco e seu entorno. Já ouvi cientistas respeitáveis dizendo que não há, ainda, elementos técnicos que sustentem a hipótese de que não haverá danos.

Certamente, não existem elementos suficientes para apoiar a afirmação feita pelo ministro Ciro Gomes, àquela platéia inconformada, de que “o projeto chegou num ponto em que é possível dizer que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas no Nordeste, sem que um brasileiro sequer seja prejudicado”. Tenho lido opiniões técnicas, científicas e políticas abalizadas, que me convenceram de que o estado atual de conhecimento sobre os impactos prováveis do projeto sugerem o oposto: neste momento é impossível garantir que não haverá prejuízos significativos, ambientais e sociais, se a transposição for executada da forma como está prevista.

Escrevi aqui, na coluna anterior, a respeito da política de manejo florestal defendida pela ministra Marina Silva. Disse que embora seu plano fosse controverso e rejeitado por ambientalistas respeitáveis, ela tinha o direito de buscar sua aprovação no Congresso Nacional e reunir os meios necessários à sua implementação. Marcos Sá Correa, na mesma edição de O Eco, mostrou os riscos implícitos a esta política de manejo, apoiando-se na análise de John Terborgh, da Universidade Duke, uma autoridade de primeira linha no assunto. No governo Fernando Henrique Cardoso, figuras respeitáveis como José Lutzenberger, José Goldenberg, Paulo Nogueira Neto, Enéas Salati, Warwick Kerr, Israel Klabin e Eliezer Batista, expressaram em carta ao presidente, objeções ponderáveis a uma política de manejo florestal para a Amazônia.

Por que, então, defender o recuo de Ciro Gomes? A diferença fundamental é que Marina Silva está buscando aprovar o marco regulatório de uma política. Os projetos específicos, estes sim, terão que ser avaliados da mesma forma que as obras da transposição. Nenhum projeto de longo prazo, que envolva interesses em conflito tem condições de ser implementado no olho desse furacão político que ameaça o governo Lula e põe em dúvida decisões administrativas de várias de suas unidades. Não seria sensato. Poria em risco a reputação dos envolvidos, mesmo que sejam da mais absoluta correção. Não é por outra razão que o ministro Ciro Gomes irritou-se quando questionado sobre possíveis desvios no processo de licitação da obra, já em andamento. “Sou funcionário público, e estou aqui porque acho que tenho de prestar contas”, respondeu exaltado, segundo o relato da imprensa. “Se houver problemas, mande por carta, porque senão gente séria não vai mais governar o Brasil, quem tem pudor não vai mais querer fazer isso, não”, continuou.

É exatamente esse risco que correm as pessoas sérias, no miolo de crises provocadas por escândalos de corrupção no governo, lidando com licitações nas quais participam empreiteiras das quais grande parte do público suspeita. Enquanto não se elucidam as dúvidas, muito razoáveis, sobre a correção das práticas administrativas do governo, suscitadas pelos indícios de utilização de recursos de programas públicos para irrigar esquemas de financiamento de campanha e compensações financeiras a aliados, até por precaução todos os procedimentos licitatórios, sobretudo os de grande envergadura, deveriam ser voluntariamente suspensos. O ministro tem toda razão de ficar indignado por se sentir sob suspeita. Mas há de reconhecer que o governo a que pertence não tem sabido administrar essa crise e não tem dado respostas convincentes à população. Essa atitude termina por colocar sob suspeita todas as obras e programas do governo.

O direito, portanto, de implantar políticas que defendeu em campanha, é um princípio democrático que deve ser respeitado. Mas, seu correlato, é a obrigação de considerar democraticamente os limites desse direito, no que diz respeito a obras de grande envergadura, longo prazo, alto custo ou com conseqüências que amadurecem após o mandato. A obrigação correlata é de avaliar com muito mais cuidado e isenção a oportunidade e a propriedade dessas obras. Vale para a outorga de florestas para manejo e para as obras de transposição.

Qualquer governo, na segunda metade de seu mandato, deve avaliar de forma muito criteriosa, projetos que tenham efeito de longa duração e, portanto, transcendem esse mandato. Os critérios fundamentais recomendados nesses casos são quatro. Primeiro, o princípio cautelar: se não há consenso técnico sobre o balanço de custos/benefícios do projeto e se há dúvida razoável sobre seus riscos, manda o espírito público que o governo, convencido das virtudes de seu projeto, consuma o restante do seu mandato recolhendo evidências técnicas e científicas que possam formar esse consenso.

Todas as evidências indicam que não há consenso técnico, nem político, em relação à transposição. O dissenso político ficou claro na Carta Aberta de Belo Horizonte ao Presidente Lula, assinada pelos governadores de Minas Gerais, Bahia e Sergipe e pelo Comitê da Bacia. Nela pedem ao presidente da República que não leve adiante as obras do projeto, enquanto não forem apuradas as denúncias existentes e amplamente negociado um pacto com os estados da bacia doadora. A contrariedade técnico-científica está registrada em inúmeras publicações da comunidade científica e tecnológica. Existem fundamentos para dúvida até mesmo em documentos como o “Diagnóstico Analítico da Bacia do São Francisco e sua Zona Costeira”, do Comitê da Bacia, que se pode encontrar no site da ANA – Agência Nacional de Águas, que alerta para o estado de degradação do rio e seu entorno.

Segundo, o princípio democrático: se há oposição qualificada, tanto política, quanto técnico-científica, o projeto deveria ser submetido ao teste da maioria, em fórum apropriado. Preferencialmente, deveria ser submetido à avaliação do Congresso Nacional, mediante sua transformação em programa específico, com ações e cronograma fixados em projeto de lei. O ministro Ciro Gomes defendeu, na reunião da SBPC, a tese de que o projeto foi suficientemente debatido e incorporou críticas oriundas de audiências públicas. “Um governo de quatro anos ficou dois anos e meio comprometido com o diálogo”, disse ele. Mas está subentendido na frase um julgamento que não procede: o de que seria perder tempo debater mais. Não é. Os projetos têm tanto mais êxito quanto menos dúvidas suscitam sobre seus méritos e seus riscos. Há opinião qualificada de que as audiências públicas não foram suficientes e sinais muito evidentes de que o projeto não tem considerado objeções sérias de setores políticos e científicos relevantes da sociedade.

Há uma vasta literatura técnica, nos Estados Unidos, onde as audiências públicas têm regras bem mais exigentes que aqui, mostrando significativa proporção delas que não atinge os requisitos mínimos de escopo, exaustividade, representatividade e pluralismo necessários para qualificá-las como instrumento democrático de consulta. E não basta que as discussões tenham escopo abrangente, esgotem todas as dúvidas, tenham participação de todo os interesses envolvidos e sejam política e tecnicamente pluralistas. É preciso que seus resultados sejam efetivamente incorporados ao desenho dos projetos que discutiram. Pela quantidade de manifestações registradas na imprensa criticando as audiências, acho justo dizer que há, no mínimo, uma dúvida razoável sobre a qualidade democrática dessas consultas. No debate em Fortaleza, o ministro Ciro Gomes atribuiu as criticas ao projeto parcialmente a um problema de desinformação, segundo a revista Ciência Hoje, da SBPC, um indicador de que a discussão do projeto ainda não foi suficiente para esclarecer todas as dúvidas.

Terceiro, o princípio da viabilidade: o projeto só deveria ser implementado se tivesse assegurado seu financiamento integral, de modo a evitar os riscos associados ao seu emperramento futuro, sobretudo em se tratando de ação que, se não for integralmente realizada, pode causar danos irreparáveis. Não creio que esse projeto atenda minimamente a esse requisito. Em primeiro lugar, por causa da crise fiscal estrutural do estado, que torna duvidosa a implementação integral e no prazo adequado de obras dessa envergadura, com recursos públicos: orçamentários e de endividamento. Em segundo lugar, porque o projeto tem um orçamento de R$ 4,5 bilhões, dos quais menos de 14%, em torno de R$ 620 milhões, estão sendo contratados ou em execução. Em terceiro lugar, é pouco provável que o cronograma das obras seja cumprido e o orçamento não tenha que ser aditado. A parte prejudicada seria, precisamente a de saneamento e revitalização do rio. Nem o governo, nem o ministro Ciro Gomes, podem garantir que seja integralmente realizado. Até porque, parte importante do projeto ficaria para depois de 2006 e, ainda mais agora, eles sequer têm a garantia de que serão reconduzidos em 2006.

Quarto, o princípio da segurança: o projeto só poderia ser posto em execução se as medidas de segurança contra os danos prováveis já identificados fossem executadas com precedência. Portanto, no caso da transposição, pelo princípio da segurança, o projeto principal, a transposição propriamente dita, só deveria ser executado, após a implementação das principais medidas de recuperação da saúde do São Francisco. O ministro Ciro Gomes têm insistido, em todos os debates públicos, que o projeto de transposição é, na verdade, na sua concepção atual, um projeto de revitalização. Mas o próprio cronograma das obras indica que não é. O volume de recursos, a prioridade se dirigem à transposição. Os programas de saneamento e tratamento de lixo e, principalmente, de formação de matas ciliares, que deveriam, de fato, preceder a transposição, são insuficientes.

O próprio ministro, no debate no Ceará, deu os argumentos todos, que recomendam cautela na execução (o terceiro princípio) e máxima segurança (este quarto princípio). A Folha de São Paulo registrou dessa forma o que ele falou sobre as condições críticas do São Francisco: “o São Francisco está “ferrado”, repetiu várias vezes. Foram destruídas 95% das suas matas ciliares, ele está em boa parte assoreado, recebe esgoto de 250 cidades e lixo de outras 170 e possui um trecho onde ocorre transmissão de esquistossomose”. A revista Ciência Hoje, da SBPC, atribui ao ministro a seguinte afirmação: “o São Francisco está ‘ferrado’ não por causa do projeto, que ainda nem está pronto, mas sim por um modelo de insustentabilidade adotado pelos governos anteriores. E a chance que o rio tem de revitalização depende da centralidade da discussão”. Eu diria que mais do que a centralidade da discussão, as chances do Velho Chico dependem da centralidade da revitalização, em relação à transposição.

Ao tratar das críticas ao projeto, o ministro as atribuiu não só à desinformação, como mencionei, mas também aos “problemas graves que o rio experimenta, em função de um passado de descuido. Temos que ter clareza de que o rio está machucado e que precisa de um programa consistente de revitalização”, no relato da revista Ciência Hoje. Concordo inteiramente e, por concordar, só vejo uma maneira de concretizar essa tese: condicionando a transposição à plena execução das obras de revitalização. O que significaria inverter o cronograma do governo. Procede-se à revitalização, que é necessária e traz ganhos a todos, independentemente do que se faça depois, enquanto se analisa, em maior profundidade o tema da transposição.

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