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O Fracasso da Transposição

O projeto de transposição do São Francisco tem tudo para ser um fracasso. É improvável que dê bons resultados. É certo que terá todos os efeitos negativos.

28 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O projeto de transposição do São Francisco reúne todas as condições necessárias para ser um fracasso. É improvável que atinja os resultados a que se propõe, mas é certo que produzirá todos os efeitos colaterais negativos, previstos e imprevistos. A primeira condição de fracasso que cumpre plenamente é a de presumir que sabe o que nem a ciência garante conhecer. O centro dos mistérios não está na hidrologia primária do rio, nem no conhecimento preciso de sua bacia, ou das interdependências entre ela e todo o sistema hídrico brasileiro, de superfície e subterrâneo. Está no que é necessário para revitalizar uma bacia em elevado estágio de degradação, por múltiplas causas: poluição química e industrial; erosão; sedimentação patológica; destruição das matas ciliares e zonas de transição entre água e terra, responsáveis pela maior parte das interações ecológicas fundamentais; represamento de todo tipo; despejo de esgotos e lixo; pisoteio das margens pelo gado. Não se sabe tudo que é necessário fazer para recompor, minimamente, a saúde ecológica de uma bacia tão pesadamente deteriorada pela ação humana. Não é possível estimar o tempo necessário para obter resultados minimamente seguros 

A ignorância sobre os efeitos da transposição é, por paradoxal que possa parecer, uma vertente tributária dessa primeira. Porque quem está pondo o carro adiante dos bois é o governo. Nem se deveria cogitar de mais um mega-projeto de intervenção no curso natural de um rio moribundo. O que se deveria estar fazendo é iniciando um grande programa de recuperação mínima do rio – por si só muito caro e de longo prazo – tendo por linha mestra a recuperação das matas ciliares de suas margens e de seus afluentes, perenes e não perenes. Há evidência significativa da importância crucial da defesa de pequenos remansos, cursos sazonais e alagados, para recuperar e preservar os grandes rios. Por outro lado, por menos que se saiba, é de conhecimento geral que qualquer programa de recuperação das águas de um grande rio, deve envolver todo o sistema que participa, direta e indiretamente, de sua formação. Esse princípio elementar faz parte do discurso, mas nem de longe tem a quantidade de ações e recursos necessários para ser levado a sério. Programa de menor envergadura, como o “cultivando águas boas” de Itaipu, contempla, proporcionalmente, um volume muito maior de recursos garantidos e um plano de execução muito mais consistente. Nem de longe me pareceu à prova de erros, mas é muito mais convincente do que o do São Francisco.

 

O outro eixo determinante da recuperação do rio deveria ser a despoluição. Programa complexo e custoso. Só retirar do rio o esgoto de 270 cidades e o lixo de 150, já constitui um milionário e complexo programa de saneamento, que não cabe em um mandato presidencial. Mas não poderia ficar nisso apenas. Seria ainda preciso educar as comunidades ribeirinhas, interferir no planejamento urbano das cidades de maior porte em suas margens e de seus afluentes, para criar condições sociais e culturais, que evitem que os esgotos e o lixo retornem a suas águas. Faltariam as carvoarias, mineradoras e indústrias de todo tipo, que poluem o São Francisco e os outros rios de sua bacia. Mais recursos. Como se sabe, empresa, no Brasil, só cumpre a lei se receber incentivos adicionais. É um país onde a tolerância e a conivência com a ilegalidade, a transgressão das regras e o oportunismo fazem todo empresário, sobretudo os grandões, querer tirar renda do estado, para cumprir suas obrigações elementares. Um comportamento que já passou de todos os limites, mas continua dominando a economia política brasileira.

 

Imaginando-se que o governo consiga – coisa inédita no país – interromper toda descarga de material ofensivo, humano, animal e industrial nas águas do sistema do São Francisco, seria necessário um amplo e caríssimo programa de eliminação progressiva de poluentes, principalmente metais pesados e químicos tóxicos, para se poder começar a pensar, não em revitalização, mas em mitigação dos problemas que ameaçam a perenidade do fluxo do rio.

 

Não bastariam, porém, essas ações, digamos, retificadoras. Seria indispensável um conjunto de regras institucionalizadas, para regular o uso e proteger a qualidade das águas do São Francisco. Uma obra de engenharia política regulatória complexa, de tanta envergadura quanto a recuperação em si. E na qual não se pode apostar muito. A experiência com as agências regulatórias no Brasil é pífia: basta ver a ineficácia do CADE, as aberrantes fraudes que passam pelo nariz do Ibama, como a da barragem de Barra Grande, a incapacidade da ANP em combater a adulteração de combustível e tantos outros exemplos de falhas regulatórias. Por que acreditar que um marco regulatório para o “novo” Chico daria certo? E ele nem está em tela de juízo. Aliás, seria desnecessário, porque se as regras sobre matas ciliares, proteção de bacias e controle de poluição, já existentes, fossem cumpridas, o quadro seria totalmente diverso.

 

Quem conhece os problemas dos rios brasileiros em geral, e do São Francisco, em particular, sabe que não estou falando novidade. Mas, no Brasil, é o óbvio mesmo que não se faz e não se sabe ou finge não se saber. A ignorância técnica e científica não é só nossa, embora se deva considerar que as somas investidas em pesquisa independente sobre o estado de nossos rios e as formas de saneá-los sejam irrisórias, diante dos estragos e do que se gastou para destruí-los. Se, para cada barragem construída no São Francisco, tivesse sido aplicado 1% do valor final da obra em pesquisa científica sobre o efeito físico e social das barragens, saberíamos muito mais. Mas a comunidade científica nos Estados Unidos, onde não tem faltado dinheiro para esse tipo de pesquisa, reconhece que a ciência não tem todas as respostas para os problemas mais evidentes de seus rios. Muitos deles, como o Colorado e o Missouri, tão ameaçados, quanto o nosso Velho Chico. A Academia Nacional de Ciências dos EUA tem reconhecido essa falta de conhecimento em seus relatórios oficiais sobre as principais bacias do país. Só mesmo a megalomania típica dos governos brasileiros, para chamar de revitalização um programa que, se fosse implementado de fato e desse bons resultados, não passaria de um modesto plano de mitigação de danos ao rio.

 

O politólogo William Lowry, da Washington University, em Saint Louis, mostra persuasivamente, em seu interessante livro Dam Politics, que nenhum programa de recuperação de grandes rios e suas bacias, deu certo ou tem grandes chances de dar certo, no médio para longo prazo. Isto em um país que tem investido bilhões de dólares para salvar seus rios e, em muitos lugares, tem chegado ao ponto de desmontar barragens, para repô-los em seu curso natural. Ora, quem pode acreditar em um programa como o que o governo brasileiro quer implantar, que se mostra insuficiente já na leitura das ações propostas e cuja credibilidade se dissipa nos valores prometidos – obviamente não assegurados – insuficientes sobre todos os pontos de vista? Metas imprecisas ou irrisórias. Recursos insuficientes. Abrangência limitadíssima. Não está em vista revitalização alguma. Duvido, mesmo, que ocorra alguma melhora mensurável na qualidade das águas do São Francisco.

 

Procedimento cautelar mínimo, dadas as conhecidas condições críticas em que o rio se encontra – reconhecidas pelo próprio Ministro da Integração Nacional – seria impedir qualquer nova interferência no fluxo e no estado atual da bacia, antes que se obtivessem provas medidas de sua recuperação, em decorrência desse plano chamado de revitalização. Ao contrário, o governo quer tocar a transposição, a pleno vapor, sustentado no discurso vazio e na promessa vã de que a prioridade é a revitalização.

 

O pecado capital do projeto de transposição é querer fazer nova e grandiosa intervenção no curso de um rio que está reconhecidamente ameaçado não mais na sua integridade, mas na continuidade e na perenidade de seu curso original. Além disso, o plano oficial de revitalização é insuficiente. Ainda que tivesse toda a complexidade, a qualidade e os recursos necessários, não haveria garantia de que seria bem sucedido.

 

Há grande quantidade de evidências, sobretudo nos Estados Unidos, de que projetos como esse enfrentam enormes dificuldades de implementação e terminam, muito provavelmente, em um conjunto descontínuo e ineficaz de ações, que não consegue alterar o status quo. Nesse caso, não alterar o status quo significaria não conseguir evitar o pior desfecho: a degradação continuada do rio, até que ele deixe de correr continuamente, de sua fonte, na Serra da Canastra, nas Gerais, até o mar, nas Alagoas. Uma leitura das matérias de O Eco sobre o assunto, permite verificar que todas as condições de fracasso, listadas na literatura técnica sobre implementação de políticas públicas, estão presentes nos dois projetos: o de transposição e o de revitalização.

 

William Lowry mostra que projetos que envolvem disputas interfederativas e alta complexidade técnica, tendem a ser descontínuos. Na sua análise detalhada do projeto para o rio Missouri, ele mostra como a falta de consenso, recursos e meios técnicos para atender a todas as necessidades físicas, sociais e políticas do projeto, o torna inexeqüível. Ele considera muito mais apropriado abandonar grandes idéias no curto e médio prazo e adotar uma política realista e pragmática de mitigação de danos. Esse tipo de política pode ser focalizado, reduzindo os conflitos, custa menos e é tecnicamente menos complexo e, portanto, mais factível.

 

Os dois projetos, de transposição e de revitalização, são de alta complexidade técnica e envolvem muito conflito de jurisdições e interesses. São técnica e politicamente controvertidos. Têm tudo para começar e não terminar. Ou acabar mal.

 

Vamos fazer um pequeno balanço das características dos dois projetos:

Elevada complexidade técnica, muita dúvida técnica e científica.

Conflito de interesses entre estados da federação, com proprietários de terras, que devastaram as matas ciliares e podem resistir a refazê-las, com cidades ribeirinhas, com indústrias, madeireiras e carvoarias.

Elevado custo financeiro, incompatível com a crise fiscal do estado.

Longo prazo de execução de obras e implementação de ações.

 

Todas essas características apontam para o fracasso. Soluções controvertidas jamais formarão consenso e terão o apoio político e social necessário. Como exigem longo prazo para execução efetiva e continuado monitoramento, com avaliação sistemática de resultados, requerem uma estabilidade político-administrativa que esse grau de dissenso não garante. Isso, se o quadro institucional brasileiro comportasse tal exigência de estabilidade de regras e compromissos.  Os custos são incompatíveis com a debilidade estrutural das finanças do estado. Trata-se de uma crise fiscal estrutural, que vem de longe e vai longe. Ela garante que nenhum projeto será adequadamente financiado ou dará resultados plenamente satisfatórios. Não há, hoje, uma só unidade de serviço público que esteja financiada ou que opere a contento. Nem haverá tão cedo. E não estou incluindo aqui, hipóteses de sobrepreços, desrespeito a normas técnicas e outras formas usuais de corrupção no estado brasileiro.

 

Qualquer autoridade sensata e que pusesse a racionalidade do interesse geral à frente de seus interesses políticos pessoais se recusaria a tocar um projeto desses, no estágio em que se encontra. Como, no Brasil de hoje só não se faz o que se deve fazer, estamos provavelmente, em vias de fazer uma obra que certamente não se deveria fazer.

 

Digo isso, sem sequer levar em consideração que estamos diante de um governo que se dissolve, num mar de suspeitas e evidências de corrupção, irregularidades e fraudes eleitorais. Sem a mínima capacidade de condução de qualquer política pública de porte. Não está moral ou politicamente autorizado a iniciar uma obra dessa envergadura e de tão longo prazo. No máximo poderia plantar as pífias 200 mil mudas de árvores para formar uma matinha ciliar.

 

Drummond já havia alertado: “Está secando o Velho Chico. Está mirrando, está morrendo”. Matar rios não é coisa só nossa. Outros já fizeram. Coisa nossa é não aprender com a experiência dos outros. Em breve teremos que cantar para nossos rios, uma canção que diz assim, em inglês: “dying rivers – no life in empty waters,
silent lakes where nothing dwells within”. Rios à morte, nenhuma vida nas águas vazias, lagos silentes nenhuma vida habita seu interior.

 

Leia o que O Eco já disse sobre o Velho Chico

Santo de casa no São Francisco

Valei-nos, São Francisco

Água para quem não tem sede

Seguro para o Velho Chico

Deixem o Chico em paz

Tão longe e tão perto

Malandragem Transgênica

Todas as margens do rio

Licença para transpor

Levante federativo

O sertão vai virar mar

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