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PeLa Floresta

Nas condições atuais, com os prazos que tem, se o governo sair correndo para criar áreas de concessão florestal, só vai ajudar a pelar a floresta mais rápido.

3 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O projeto de lei que regula a exploração de madeira em terras públicas da Amazônia por concessão deu mais um passo. Conseguiu ficar mais polêmico depois da votação no Senado. Ele não havia conseguido consenso dos ambientalistas. Especialistas em Amazônia, da maior seriedade, apoiaram o projeto desde o início. Mas outros especialistas também seríssimos são inteiramente contra. Agora, os que são favoráveis ao projeto ficaram contra as partes emendadas dele. São principalmente contra a emenda que exige aprovação do congresso para concessões de extensão superior a 2500 hectares e a que modificou a composição do comitê gestor, inclusive outros ministérios neles, inclusive o da Agricultura.

Fantasia hegemônica

O projeto e a maneira pela qual tem sido defendido pelo Ministério do Meio Ambiente, é a cara do governo do PT. Um governo que sofre da síndrome do marco zero: toda a história começa com ele. Dessa síndrome nasce uma postura arrogante e o álibi eterno para tudo que não funciona no governo: é por causa da herança da pré-história. A proposta, como as principais iniciativas do governo Lula, tem também a marca da fantasia hegemônica: “antes de mim as trevas, depois de mim tudo”. Ele pensa como se não fosse mais haver alternância no poder. O sonho totalitário do poder infinito foi trocado pela fantasia de que o governo é tão bom e está fazendo tantas mudanças, que vai alterar a seu favor a correlação social de forças e ser reeleito infinitamente.

É essa pretensão hegemônica que faz com que não reconheçam sequer os argumentos mais óbvios: um governo que está acabando não pode garantir que será implementada uma política de longo prazo que porá na rua no apagar de suas luzes. No mínimo deveria esperar a confirmação do sonho da reeleição, para poder fazer nos próximos quatro, tudo o que não fez nos quatro anteriores. É irresponsabilidade impor uma política pública de longa duração dessa maneira. E esse governo quer impor várias. Na área ambiental, pelo menos duas: a concessão florestal e a transposição das águas do São Francisco. Vai responder diante da história do futuro próximo.

Marina Silva e seu grupo e o PT e o governo podem não estar lá a partir de 2007 e como se sentem seguros de que sua política será implementada pelos outros? E se Lula voltar, mas trocar a ministra e seu grupo por gente que não tem seus mesmos compromissos? Tudo é possível. O presidente está fazendo novas alianças. A realidade interna no PT, pós-mensalão é outra. E, na análise de risco de políticas públicas para áreas críticas em democracias, é imprescindível pensar na possibilidade de perder a administração para a oposição. Por isso é preciso pensar no tempo necessário para consolidar regras e instituições para que ganhem legitimidade e estabilidade. É melhor demorar para implantar, mas fazê-lo com solidez e garantias máximas de que não haverá descontinuidade. Esse governo, mesmo, desprezou e rejeitou as políticas dos outros gerando grandes descontinuidade. Na área regulatória, por exemplo, essa atitude inibiu o investimento privado em setores fundamentais. O primeiro ensaio de continuidade administrativa, único em vigor, a manutenção da política macroeconômica do governo anterior está dando o que falar: tem a oposição de grande parte do partido do presidente.

A democracia brasileira, que é muito recente, não desenvolveu, ainda, mecanismos que assegurem a continuidade das políticas de longo prazo no processo de alternância sucessiva no poder.

O governo gastou três anos reinventando a roda, para resolver cada problema que julgou merecedor de sua atenção. O PL das Florestas é apresentado como a única solução para manter a floresta em pé. O Ministério do Meio Ambiente diz que redigiu sua política com o que há de melhor em cada país. A literatura internacional e vários especialistas respeitáveis, entre eles o Marc Dourojeanni, dizem que não há exemplo de solução similar que tenha dado certo em lugar algum do mundo. Independentemente de qualquer aspecto técnico envolvido é certo que existem alternativas. Não existe problema sóciopolítico que só tenha uma solução.

Questão de fé

Não vou meter meu teclado na discussão sobre a viabilidade da exploração com manejo de floresta natural. Pelo que me informaram um dos lugares onde o manejo florestal funciona é a Finlândia. É um dado poderoso para concluir que no Brasil não vai dar certo. Nós somos antípodas em tudo dos finlandeses. Recentemente uma aluna minha, do curso de Risco Político, escreveu um trabalho sobre controle de corrupção, comparando Brasil e Finlândia. O grau de disciplina, funcionalidade institucional e consenso coletivo sobre condutas privadas face ao interesse coletivo existente lá é irreprodutível no Brasil, nos próximos 100 anos. Suspeito fortemente que o mesmo seja verdadeiro para manejo florestal.

Faço apenas uma leitura política do projeto. E é por causa desta leitura que sou contrário a ele. Como ele tem chance remota de sucesso e está sendo apresentado como a “bala de prata”, seu fracasso vai contribuir para aumentar a descrença e o fatalismo em relação ao destino da floresta amazônica.

Por que o projeto tende a fracassar, independentemente da possibilidade técnica de manejo bem sucedido? Por três razões principais: a falta de consenso eleva para além do admissível o risco de mudança subseqüente das regras, que podem acabar virando ao avesso o objetivo central do projeto, que é manter a floresta em pé; o irrealismo da solução diante do quadro geral de falência do estado e da autoridade pública, principalmente em áreas conflagradas como a Amazônia; a inadequação da solução ao quadro de urgência e à complexidade do problema.

Uma quantidade considerável de árvores foi destruída para permitir a publicação da vasta literatura sobre políticas públicas, que demonstra as chances reduzidas de sucesso de propostas controvertidas, que não tem o consenso da comunidade específica que agrega a expertise técnico-científica sobre os temas a que ela se refere e, por isso, são aprovadas por maiorias ocasionais. Todas as circunstâncias envolvendo esse projeto revelam as dificuldades que terá para se consolidar. Não conta com o consenso da comunidade de especialistas e ambientalistas. Nasceu de maiorias ocasionais, negociadas no chão do plenário, não do processo de persuasão sobre uma política (policy), de cujas virtudes uma maioria organicamente constituída estivesse convencida. Portanto, não compromete forças sociais e políticas suficientes para assegurá-la no tempo. A ministra Marina Silva passou muito tempo prometendo um conjunto de políticas “estruturantes”, mas tudo que tem feito é propor fórmulas controvertidas, pouco debatidas, portanto sem força suficiente de persuasão, ancoradas na crença mágica de que mais uma lei dará origem a uma política e, desta vez, será cumprida. Não vai acontecer.

É só pensar um pouco. Se as leis ambientais existentes, se as leis sobre terras públicas, sobre grilagem, desmatamento não autorizado, atividades clandestinas de toda espécie, porte de armas fossem cumpridas, a Amazônia não estaria em crise e não estaríamos debatendo soluções em “urgência urgentíssima” para ela. Aliás, o próprio conceito pleonástico “urgência urgentíssima”, já revela as disfunções recorrentes de nosso sistema político e o grau de tolerância com níveis cadentes de desempenho e eficácia. Uma breve contagem do tempo médio que os projetos em “urgência urgentíssima” levam para serem aprovados, já dá uma medida dos riscos de fracasso de qualquer política pública, o que dizer daquelas que, como essa, não reúnem os requisitos políticos e gerenciais mínimos de viabilidade.

Ao contrário do que dizem alguns críticos do projeto, sua viabilidade não será dada pela participação da iniciativa privada. Empresas privadas cuidam da própria vida e do próprio lucro. Na ausência de regulação, fiscalização e punição, farão o que sabem e devem fazer, para serem fiéis a seus acionistas: maximizar as oportunidades de lucro. Numa região conflagrada, onde o estado não tem, há muito tempo, sequer o monopólio do uso legítimo da força, qualquer iniciativa nova que pressuponha que, a partir dela, o império da lei prevalecerá, a regulação funcionará e o estado será eficaz, é fantasiosa. Esse projeto depende do estado para dar certo, de suas agências regulatórias, da polícia e do Judiciário. Depende de um tipo de articulação entre estado e sociedade que não está presente na Amazônia e na maior parte do Brasil. Vivemos uma crise profunda do estado, crise política, gerencial e de legitimidade.

Por que devemos acreditar que, numa região onde milícias privadas armadas, ao arrepio da lei, selam partes do território, onde jagunços impõem o domínio de grileiros e desmatadores, onde a polícia usa a força, com certa freqüência, de forma ilegítima e brutal, se restabelecerá a ordem com base em uma nova lei?

Porque devemos crer que num momento em que a Agência Nacional do Petróleo não consegue coibir o comércio de combustível adulterado; a Agência Nacional de Águas não tem sucesso em manter a saúde de nossos rios e mananciais, os Comitês de Bacias são atropelados e desrespeitados pelo próprio governo; uma agência nova, sem história, tradição, quadros novos qualificados, o Serviço Florestal Brasileiro, vai dar certo? É pura questão de fé.

Agência anêmica

O projeto, do ponto de vista gerencial e administrativo nada tem de inovador. Inventou uma roda quadrada, como tantas outras penduradas no organograma do estado brasileiro. Toda não-solução pensada por cada equipe que se julga melhor que as outras, mais sabida e competente e imbuída de melhores propósitos sai com a mesma embalagem para suas idéias: um fundo novo e uma nova agência. O fundo não tem dotação segura, será encolhido pelo irremediável ajuste fiscal e engolido pelo caixa único. Terá a mesma prioridade que o meio-ambiente tem nesse governo e teve nos anteriores: nenhuma.

A agência ou nasce velha, ou anêmica. Se for formada pelos mesmos quadros do Ibama, voltamos ao parágrafo anterior. Porque quadros que estão fracassando numa casa, terão sucesso em outra? Vira e mexe descobre-se fraude e corrupção no seu meio, tem sua distribuição determinada pelo apadrinhamento e pelo nepotismo, que tira a maioria do trabalho de campo e encosta em gabinetes refrigerados longe do sufoco, mudam de sigla e se tornam automaticamente melhores, mais competentes e menos corruptíveis? Para fazer direito, desde o primeiro tijolo, não há recursos previstos, nem garantia de que no futuro esses recursos serão alocados a ela. Nasce anêmica, de recursos, quadros e poder.

O Brasil precisa de um serviço florestal? Com certeza precisa. Mas um Serviço que nasça de planejamento de longo prazo, cujos quadros sejam constituídos sem pressa e passem por um processo sério e profundo de treinamento. Que tenham um plano de carreira que lhes garanta a remuneração adequada, as chances de progresso, associadas a etapas subseqüentes de aperfeiçoamento. Que tenham um código de conduta que seja respeitado e defina como tarefa principal o trabalho de campo e, por isso, tenha melhor remuneração e o desempenho nela seja central na avaliação para progressão funcional.

Leva alguns anos até tirar uma agência dessas do papel e colocar seus agentes em campo. Como não dá para agir de pronto, ou será tudo improvisado e a agência nascerá com os mesmos vícios e deficiências que se deseja corrigir ou não estará pronta. Nesse último caso, o governo se prepara para repetir os passos da pior privatização do governo Fernando Henrique Cardoso: a do setor elétrico. O governo privatizou o setor elétrico a meias, sem ter implantado uma agência regulatória de qualidade e foi um desastre, como se sabe, e o governo Lula não cansa de nos lembrar.

Poder ilusório

Imaginar que, porque sua direção será sabatinada pelo Senado – mesmo que tenha autonomia estatuária e a diretoria mandato fixo – a fará tão poderosa quanto o Banco Central é ingenuidade pura. O Banco Central exerce o poder que exerce porque sua missão na política monetária é respaldada por um forte consenso de poderosos e de alcance global. Se fizer diferente, o mercado reage, provocando crise cambial ou monetária. O BC tem poder porque faz o que o mercado espera que ele faça. Mas examine o outro lado do Banco Central, de fiscalização bancária, que não tem esse consenso. Não viu os bilhões de reais que passaram nas contas do mensalão, não viu as irregularidades bancárias todas, não percebeu as contas de Duda Mendonça no exterior, não foi capaz de parar o senhor Cacciola, no governo anterior. Enfim, o Banco Central, fora da área monetária, regula tão mal quanto as outras agências reguladoras do governo. E o Serviço Florestal não será diferente.

A conclusão é que não tem, então, solução para a Amazônia? Claro que tem. Apenas a solução imaginada e defendida pelo Ministério do Meio Ambiente, não é boa nem viável, do ponto de vista do estado atual da gestão pública, no contexto da crise do estado. Um governo que está nos seus últimos meses, um Congresso que vai se renovar em outubro – 100% da Câmara e 2/3 do Senado – não está em condições de impor políticas públicas complexas e de longo prazo. O que o MMA devia estar fazendo era implementar um plano de emergência, mais adequado ao tempo que tem e à complexidade do problema e duas soluções mais estruturais e definitivas, que só podem se materializar a longo prazo.

A idéia que estava por trás do GT do Desmatamento, que envolveria uma ação articulada e concentrada, de emergência, para reduzir o desmatamento, com apoio do Exército e da Polícia Federal faria mais sentido e teria mais chance de dar certo. O GT não andou, porque ficou na mão do todo-poderoso Chefe da Casa Civil, José Dirceu, que não o fez andar. Não era prioritário. Depois, foi pulverizado pelos petardos do mensalão. Mas a única coisa que faria sentido seria ressuscitar uma ação de emergência anti-desmatamento, enquanto amadurece as soluções de longo prazo e espera a constituição do novo governo, que terá tempo de criar as condições mínimas de viabilidade de uma política para a Amazônia. A conversa seria diferente, se a proposta tivesse sido apresentada no primeiro ano de governo. A equipe teve que estudar, tudo bem. Mas, agora, está na sua hora de esperar.

Compreendo as intenções dos que propõem, com fervor, a solução do PL. A muitos conheço e respeito. Mas é patente a ingenuidade com que passam ao largo dos obstáculos estruturais, políticos, fiscais e gerenciais, que tornam a idéia inviável no curto prazo. Antes de se pensar em soluções dessa natureza, é preciso atacar a raiz do problema: a crise estrutural do estado e o colapso das relações estado/sociedade. Primeiro, o estado tem que recuperar a governança integral sobre o território nacional, recriar sua capacidade de intervenção e regulação legítimas, para viabilizar novas iniciativas, mais eficazes e menos vulneráveis à corrupção, ao clietentelismo e ao nepotismo. Antes dessa reforma e conseqüente reforma fiscal, que desengesse o orçamento e permita, de fato, a existência de agências de estado, sobretudo na regulação, com autonomia política, financeira e administrativa, todo fundo novo e toda agência nova nascem incapacitados.

Se sair correndo implantando açodadamente áreas de concessão, num quadro desses a única coisa que o governo vai conseguir é ajudar a pelar a floresta mais rapidamente.

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