Nós estamos acostumados a olhar para a Amazônia e o Pantanal, pensando na estação das águas e da seca. Principalmente para quem quer conhecer as duas regiões, faz uma enorme diferença ir na cheia ou na vazante. Mas o que nos devia preocupar, mesmo, é a temporada das queimadas. Todo ano, as duas regiões vivem uma tragédia sob as chamas do fogo intencional. Muitas dessas queimadas viram incêndios incontroláveis. As queimadas ocorrem essencialmente durante o inverno e a primavera austral na parte sul da Amazônia. No Acre, vão de julho a setembro. Na porção norte, Roraima, Amapá e parte do Pará e Amazonas, ocorrem durante o inverno boreal, de janeiro a março.
No Acre, o Ministério Público resolveu fazer uma tentativa heróica para não repetir a devastação de 2005. A Procuradora de Justiça do Estado, Patrícia de Amorim Rêgo, e a promotora Meri Cristina de Amaral Gonçalves, resolveram recomendar formalmente às autoridades ambientais estaduais e federais, que “não expeçam Autorizações de Queima Controlada, bem como o licenciamento ambiental para conversão de áreas de floresta, na parte leste do Estado, até que sejam concluídos os trabalhos relativos à sistematização das informações acerca das áreas queimadas no Estado do Acre, sua abrangência, impactos e riscos”. Patrícia Rêgo é coordenadora da Coordenadoria de Defesa do Meio Ambiente, do Ministério Público estadual e Meri Cristina, coordenadora do Grupo de Trabalho de Queimadas, constituído para avaliar os danos da tragédia de 2005. E elas não estão de brincadeira, vão logo advertindo: “o não atendimento da presente recomendação, importará no ajuizamento das competentes medidas judiciais civis e criminais visando resguardar os bens ora tutelados e, se for o caso, inclusive, com a propositura de apropriada ação civil pública por improbidade administrativa, [pelo] ilícito de retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”. Falando curto e grosso, a omissão vai dar processo.
O passado condena
Elas justificaram a recomendação pela “situação de excepcionalidade vivida no Estado do Acre no ano de 2005, com número expressivo de queimadas, colocando em risco a vida e a saúde da população e com imensos danos ao meio ambiente”. Por causa disso foi decretada situação de emergência em diversos municípios da parte leste do Estado. Segundo elas, não foram “concluídas pelos órgãos públicos as informações sobre a totalidade de áreas queimadas no ano passado (abertas e de florestas), sua abrangência, os impactos e os danos causados ao meio ambiente, estando tais dados, ainda, em fase de processamento”. Dizem que nas “reuniões do Comitê de Prevenção de Queimadas e Incêndios Florestais e do Grupo de Trabalho de queimadas instituído para planejar ações relativas a esta problemática, foram repassadas informações parciais alertando que, no ano passado, foram queimadas extensas áreas de florestas nativas, as quais se constituem em áreas de risco, com grande potencial para combustão”. O texto da recomendação pode ser lido na íntegra no site do MP do Acre.
A recomendação ressalta, ainda, que as condições climáticas locais já ficaram desfavoráveis e que o índice de umidade está muito baixo. Temem que o quadro de queimadas este ano seja ainda mais grave do que o de 2005, que já foi terrível. Em várias cidades, as pessoas não podiam ver o céu, encoberto pelas nuvens negras da fuligem da mata a queimar. Tinham que usar lenços e máscaras, para não serem envenenadas pela fumaça. Este ano poderá ser pior, argumentam, porque no ano passado o fogo destruiu muita floresta nativa. Agora, ficou mais fácil o fogo se alastrar. Pior, o desmatamento do ano passado, embora menos voraz do que em outros anos, contribui para piorar esse quadro. Floresta cortada é lenha e o fogo sempre vem violento depois da moto-serra.
Números Alarmantes
No bimestre julho-agosto de 2005, o número de queimadas foi dez vezes maior do que no mesmo período de 2004, informa a Embrapa, que monitora as queimadas, por satélite, há 15 anos. A Tabela 1, retirada de um de seus informes, mostra os números. Os estados do Acre e do Amazonas foram os campeões do fogo: 935,5% e 318,1% de crescimento das queimadas nesse bimestre, comparado com o do ano anterior. Na Amazônia, as queimadas aumentaram18% no período.
No ano, o Acre acabou tendo cinco vezes (424,31%) mais queimadas do que em 2004. Na Amazônia, em um ano de queda de 31% do desmatamento, houve também pequena queda de 3% no total de queimadas. É o que se pode ver na Tabela 2, retirada de outro informe da Embrapa.
Significa que, se no bimestre julho-agosto o crescimento foi dez vezes maior e cinco vezes maior no ano e, se na Amazônia como um todo, elas cresceram no bimestre e caíram no ano, os meses de julho e agosto é que foram críticos. Pois é neles que estamos entrando agora. É explicação mais que suficiente para a preocupação da procuradora e da promotora de Justiça do Acre.
Onde queima
As queimadas não aconteceram de forma uniforme em todas as regiões da Amazônia, nem mesmo em todo o Acre. Nem o padrão de 2005 foi igual ao de 2004. O Informe Técnico da Embrapa diz que o total de queimadas manteve-se equivalente entre os dois anos, mas a distribuição das queimadas variou bastante entre 2004 e 2005. “Ocorreram aumentos significativos das queimadas nas partes mais orientais e ocidentais da Amazônia, ao longo da Transamazônica e no leste do Pará. Foram detectadas amplas áreas de redução do fenômeno nas regiões mais centrais e envolventes. Houve também incrementos concentrados em áreas específicas como no sul de Mato Grosso, na região de Barão de Melgaço e no leste do Maranhão, na região dos municípios de Graça Aranha, Jatobá e Tuntum. Por outro lado, as reduções nas queimadas foram mais evidentes no norte da região, no Baixo Amazonas, na fachada litorânea e no Mato Grosso”. As queimadas diminuíram em 21,26% das células mapeadas na região, informa, e aumentaram em 21,06%.
O Informe dá o endereço certo da tragédia acreana: “os municípios mais afetados foram os do extremo leste, numa área que abrange de Sena Madureira, Bujari, Porto Acre, Acrelândia, Rio Branco, Senador Guiomard, Plácido de Castro e Capixaba até Xapuri, Brasiléia e Assis Brasil. Notou-se, ainda, queimadas crescentes em Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, no limite ocidental da fronteira com o Estado do Amazonas”.
Agroindústria predatória
A Embrapa, que não é contra as queimadas, ao contrário, acha que é uma tradição funcional, do que discordo radicalmente, nem pode ser vista como antagônica à agricultura, concorda que as queimadas estão associadas à expansão da pecuária e da agricultura. No seu Informe Técnico pode-se ler que: “outro indicador relevante para o aumento substancial no número de queimadas é o excepcional crescimento do rebanho bovino. A segunda maior taxa de crescimento do rebanho bovino, entre 1990 e 2003, na Amazônia, foi observada no Estado do Acre: 12,6% ao ano, atrás apenas de Rondônia, com 14%. A taxa média de crescimento do rebanho no restante do Brasil, nesse período, foi de apenas 0,7% ao ano. A abertura de pastagens, inclusive dentro de reservas extrativistas, destina-se ao lucrativo atendimento das demandas urbanas locais e regionais de carne, leite e derivados”. O monitoramento detectou, também, queimadas em reservas extrativistas, áreas indígenas e estações ecológicas.
Bloqueando o assalto à floresta
As duas combatentes do Ministério Público acreano querem um plano de combate e controle de queimadas e incêndios, com comitês municipais organizados pelo menos nas áreas críticas. Têm toda razão. A ministra Marina Silva cobra do Ministério da Agricultura um plano de contenção da expansão da fronteira agrícola, encomendado ao ex- ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, pela xerife governamental Dilma Roussef e que nunca saiu da prancheta. A ministra do Meio Ambiente argumenta, também com toda razão, que com a tecnologia de que a Embrapa dispõe e, diga-se de passagem, é usada pelo empresariado da agroindústria brasileira, para ser campeão mundial de competitividade, seria possível reincorporar à produção agropecuária nacional 160 mil km2 de terras já desmatadas e abandonadas na Amazônia. Dessa forma, seria possível dobrar nossa produção “sem cortar mais um pau de mato”. Encontrei a ministra no aeroporto, voltando de uma missão saneadora na Europa, onde foi defender a posição brasileira de não importar pneus usados de lá. Falamos sobre sua demanda ao ministério da Agricultura e ela repetiu todos os seus argumentos.
A agricultura pode expandir sem precisar continuar avançando de forma predatória sobre a Amazônia. É claro que será necessário, também, reprimir o corte ilegal de madeira para comércio. E as queimadas? Em parte, contendo a grilagem e o desmatamento, se consegue também reduzir as queimadas. Mas ainda sobra muita queimada para manejo agrícola, limpar pastos, preparar colheitas.
Acho que está na hora de a Embrapa parar com esse papo de que é uma tecnologia agrícola tradicional, que sempre foi usada e feita da forma certa, tem impacto pequeno e é um bom recurso. A Embrapa tem inteligência de sobra para continuar pedalando nesse caminho errado de sempre. A queimada é uma forma atrasada de manejo agrícola, de impacto danoso ao meio ambiente e à saúde animal e humana, que deve ser erradicada. É um recurso tosco, predatório, uma prática lesiva, que não pode mais ser defendida, para fim algum, por um centro de excelência como a Embrapa.
Existe um caminho de conciliação entre a agroindústria e o meio ambiente. Ele tem que se tornar a única via para obter qualquer tipo de crédito ou incentivo governamental, o parâmetro para a repressão aos que se desviam dele e o padrão de responsabilidade mínima para as empresas.
Há alguns dias, numa reunião promovida pela Fundação Avina, pelo Instituto Ethos e pela ANDI (Agência de Notícias de Direitos da Infância) a Cargill foi constrangida, antes de apresentar seu caso, a que todos vissem o Jornal Nacional mostrando militantes do Greenpeace sendo agredidos no seu porto. Os empresários presentes foram alertados para o fato de que responsabilidade socioambiental não é adotar uma creche e um parque. Não é filantropia, nem boa vontade. É adotar padrões responsáveis, sociais e ambientais, nos seus negócios, na relação com clientes e fornecedores. No caso, não aceitar produtos produzidos com trabalho escravo, trabalho infantil, desmatamento, grilagem. Está ficando cada vez mais difícil enganar a sociedade e atuar sempre nas sombras do anonimato e da impunidade.
O Eco tratou da tragédia acreana de 2005 em reportagens de Lorenzo Aldé, Carolina Elia e Andreia Fanzeres, na coluna do Marc Dourojeanni e no balanço de Eric Macedo.
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