Os biocombustíveis serão um componente importante da matriz energética das primeiras décadas do século XXI. É inescapável. O Brasil terá um papel significativo na economia dos biocombustíveis de uso doméstico e para exportação. Os incentivos para que isso ocorra são claros. O mercado já mostra sinais fortes de interesse. A Petrobras já se lançou para controlar uma parcela do mercado de biodiesel.
Se essa afirmação se mostrar verdadeira, estamos diante de uma situação de risco ambiental. Risco real, probabilidade de dano ambiental considerável. A questão é saber se seremos capazes de eliminar ou mitigar esse risco. O problema é simples. O governo está fazendo demagogia eleitoreira com o biodiesel. Há autoridades mais afoitas e desavisadas, que já celebram o programa de produção de biodiesel, a partir da mamona plantada em pequenas chácaras familiares, como uma espécie de bolsa-família do biocombustível. Está improvisando feio. Não dá sinais de ter planejado adequadamente, nem de ter estudado a sério os problemas para produção em larga escala de biocombustíveis. Há sérios problemas de logística, de garantias de suprimento, de danos ambientais e custos sociais. Tudo isso tem que ser avaliado previamente.
É pouco provável que a economia do biodiesel se assente na produção de pequenas propriedades e na mamona. Eles podem ter uma participação minoritária nesse processo. Mas o mais provável é que o centro da produção de biodiesel venha a ser a soja. E essa tendência, que mudará o comportamento dos preços da soja, passando a ser uma matéria-prima energética, gera, no Brasil riscos ambientais de grande magnitude. A soja, como commodity agrícola, para alimento animal e humano, tem balanço ambiental e social negativo no país. É o principal agente de desmatamento. Há registro freqüente de trabalho escravo na sua produção. O uso intensivo de fertilizantes e defensivos agrícolas é altamente prejudicial à terra e às águas.
A política energética e ambiental brasileira está totalmente errada. Há uma segmentação anacrônica entre as duas, que as torna pólos contrários de um sistema de conflito. A área da energia vê a política ambiental como um entrave. Ora, com o aquecimento global e a necessidade imperativa de redução das emissões de carbono, política energética é política ambiental, para o bem ou para o mal. No Brasil, para o mal. Porque a compartimentação das decisões energéticas é feita de modo a desprezar a variável ambiental nas decisões sobre fontes de energia, sobre localização e desenho de hidroelétricas, sobre uso do solo, sobre utilização de carvão, vegetal e mineral. Agora mesmo, exemplo absurdo dessa compartimentação, o Ministério da Ciência e Tecnologia está anunciando incentivos financeiros para aumentar a participação do carvão – a pior das fontes, do ponto de vista de emissões de gases estufa – de 2% para 5% na matriz energética nacional. Vai na contramão da história do futuro.
Vê-se o governo pondo ênfase na geração de emprego e renda via produção de biocombustíveis, nas vantagens de maior independência energética, calculada a partir de um nacionalismo tosco e dando demostrações de absoluta ausência de cálculo do balanço ambiental e de carbono das escolhas que faz. Move-se o governo, portanto, no plano da mais clara irresponsabilidade ambiental, agora agravada pela incorporação da política de biocombustíveis ao marco de seu exacerbado clientelismo social.
É fácil prever que vai dar tudo errado. Incapaz de definir um marco regulatório aceitável para áreas já maduras, como a do petróleo ou da hidroeletricidade, o governo marcha teimosamente para um programa de biodiesel, que carece de regras adequadas, tanto de produção, refino, distribuição e comercialização, quanto ambientais e sociais. Ao dar início ao processo, sem desenhar instrumentos que lhe permitam regular a implantação dessa nova agroindústria, abrirá espaço para que sua expansão se dê de forma desordenada. Significa potenciar o risco de desmatamento. Se a soja já desmata, hoje, toda vez que, estimulados pela elevação do preço no mercado de commodities agrícolas, os produtores decidem expandir a área plantada, imaginem quando ela se tornar uma das modalidades de “petróleo vegetal”. Adeus Amazônia, adeus Cerrado.
Essa tragédia pode ser evitada. Com bom senso, inteligência, planejamento, seriedade. Para começar, os mais afoitos no governo, poderiam ler o relatório da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável do Reino Unido, ao Departamento de Transportes, sobre biocombustíveis e a Obrigação de usar Combustíveis Renováveis nos Transportes. Foi divulgado em junho passado. Como se sabe, o Reino Unido determinou o uso de 5% de combustíveis renováveis nos transportes rodoviários do país. E a Comissão ensina em seu relatório que o benefício, sob a forma de redução da emissão de gases estufa, não é garantido. É preciso analisar cuidadosamente o impacto ambiental e social da produção desses combustíveis e determinar sua eficiência real na redução de emissões, quando comparados aos fósseis.
Dadas as substanciais diferenças na redução de emissões de gases estufa, de diferentes biocombustíveis, diz o relatório, essa política deve incentivar, desde o início, aqueles de balanço de carbono mais favorável. Recomenda, também, regulação rigorosa e verificação criteriosa da admissibilidade dos combustíveis, considerando os impactos de desmatamento e sociais. Aposta, também, no desenvolvimento tecnológico adicional, para produção de biocombustíveis, mais limpos, mais eficientes do ponto de vista energético e mais “carbono-eficientes”, sobretudo aqueles à base de resíduos agrícolas.
Mesmo a troca de culturas pode não ser recomendável do ponto de vista do balanço de carbono, diz o relatório. Não é garantido que trocar a produção de alimentos, pela de biocombustíveis, tenha sempre balanço de carbono positivo. Portanto, para que se vá além dos 5%, conclui, será preciso examinar cuidadosamente os aspectos de eficiência, de competitividade de custos – considerados os custos ambientais e sociais – comparados aos combustíveis fósseis e aos outros usos da terra.
O que os ingleses podem ensinar ao governo brasileiro, além de responsabilidade na formulação de políticas públicas, é que decisões desse tipo nada têm de triviais. Exigem estudos sérios e abrangentes de seus impactos, custos e benefícios relativos e viabilidade econômica, energética, ambiental e social. Análise em toda a cadeia de suprimento e produção. Se não, se trata de uso perdulário de recursos públicos e desconhecimento das conseqüências ambientais irreversíveis de más escolhas.
O cerne do problema no Brasil é a falência operacional, gerencial e ética do aparelho de estado. Como confiar em políticas que dependem da capacidade regulatória, fiscalizadora e repressora do estado? Ainda mais, quando os aparelhos de estado estão sob o comando de um governo que se mostra cada vez mais demagógico, clientelista e descuidado?
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