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Ciência e evidência se impõem

Melhorou. Desta vez a ciência se impôs à política e os diplomatas-censores enfrentaram a resistência de pesquisadores e negociadores conscientes dos riscos climáticos.

5 de maio de 2007 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A única pergunta que fez Bert Metz, “co-presidente” do Grupo III do IPCC, gaguejar na coletiva de imprensa para apresentação do sumário executivo dos estudos sobre mitigação da mudança climática também encerrou a conversa. Com ironia, o repórter do The Guardian perguntou sobre o efeito das pressões políticas no relatório que estava sendo apresentado. Basicamente, se essas pressões não haviam mitigado o relatório sobre mitigação da mudança climática. Metz disse que não podiam comentar sobre isso, mas que todas as delegações haviam sido muito cooperativas, inclusive as da China e do EUA. O presidente do IPCC, Rajendra Pachauri, atribuiu o bom resultado obtido à liderança firme dos dois “co-presidentes” do grupo dedicado a estudar as opções para mitigação da mudança climática, Bert Metz e Ogunlade Davidson, e ao desempenho dos principais autores do relatório. Davidson disse a frase mais citada na imprensa mundial na cobertura sobre a entrevista de apresentação do relatório: “Se continuarmos fazendo o que estamos fazendo hoje, estamos em profundas dificuldades”.

A mais importante notícia relacionada ao relatório, que é um roteiro de políticas para mitigar efetivamente a mudança climática, foi a resistência dos cientistas e diplomatas de países comprometidos com esse esforço às pressões de China, EUA, Brasil, entre outros, para aguar o relatório. As pressões políticas vinham num crescendo preocupante, desde o primeiro relatório, sobre mudança climática. Não só por causa dos sinais evidentes de censura política à ciência do clima, mas sobretudo pela sonegação à sociedade global de informação fundamental à vida das pessoas. Informação decisiva para apoiar escolhas coletivas que terão que ser feitas, para evitar os piores cenários, que podem ser ainda piores na vida real do que nos modelos científicos. A continuação dessa tendência de censura crescente fazia prever um relatório quase irrelevante sobre as necessidades e as opções econômicas e tecnológicas para mitigação do aquecimento global. Felizmente, não foi assim.

A julgar pelos depoimentos de delegados de países “amigáveis” e de representantes de ONGs ambientalistas, em Bancoc, recolhidos pela imprensa internacional, a ciência, desta vez, prevaleceu sobre a política, evitando a desfiguração do sumário como síntese fidedigna das mais de mil páginas do relatório científico.

O delegado francês, Michel Petit, por exemplo, disse à Associated Press que “este ainda é um excelente relatório” e que a China e outros países emergentes acabaram cedendo em todas as questões principais. “Nada de importante foi retirado no processo”, afirmou. Num tom mais grandiloquente, um especialista em energia do WWF disse ao Times de Londres que foi a vitória da ciência sobre a indústria dos combustíveis fósseis e sobre os céticos econômicos”. Peter Lukey, da delegação da África do Sul, também se mostrou animado. Disse ao The Guardian que “está tudo feito, tudo que queríamos que está lá [no sumário], e mais. A mensagem é: temos que fazer algo agora”.

Todos os sinais são de que a dinâmica política desses quatro dias de intensa negociação em Bancoc foi diferente do que se passou nas reuniões para aprovação dos sumários anteriores. Os países “do contra” começaram fazendo forte pressão, mas desta vez encontraram resistência de delegações favoráveis à integridade do relatório e dos cientistas. Talvez até por não esperarem mais resistência que nas vezes anteriores, acabaram em uma atitude mais consensual, permitindo que a síntese divulgada apresentasse à sociedade global uma mensagem muito clara: é preciso agir prontamente; é possível mitigar a mudança climática com a tecnologia hoje disponível e no quadro atual da economia; o custo de mitigação é desprezível diante dos custos associados aos cenários de aquecimento global, sem políticas de mitigação. O sumário apresenta as principais alternativas disponíveis, nas áreas de energia, transportes, construção civil, indústria, agricultura, florestas e gestão de lixo e resíduos. Afirma que há potencial econômico para reduzir as emissões de gases estufa até 2030 e as tecnologias para essa mudança estão disponíveis.

É claro que é difícil comentar essas alternativas, sem o detalhamento, que estará disponível apenas no relatório completo. Mas é possível dizer o seguinte: as alternativas apresentadas são todas muito razoáveis, de fato são compatíveis com tecnologias já disponíveis e permitem a cada país compor sua própria cesta de medidas, ajustadas ao seu perfil de carbono. As opções econômicas e tecnológicas são muito menos controvertidas do que as estimativas de custos – talvez com exceção da energia nuclear, listada como uma das energias de baixo carbono. Claramente, é preciso desenvolver melhor os modelos da economia da conversão para um modelo de baixo carbono. As estimativas de custo são as menos consensuais. Há quem ache que custará mais que os 3% do PIB mundial em 2030 (uma taxa de perda de 0,12 pontos ao ano). Por outro lado, pode custar menos, no balanço final, porque o processo de conversão provavelmente estimulará investimentos que criarão dinamismo na direção da economia de baixo carbono, compensando os custos nos setores de alto carbono. A parte econômica mais interessante e mais convincente do estudo é a que analisa as alternativas de mitigação associadas a distintas faixas de preço do carbono.

Esse raciocínio, além de oferecer parâmetros mais palpáveis para a análise de custo-benefício das ações de mitigação, servirá de forte estímulo à taxação de carbono que, ao lado de esquemas de cota e crédito, como o do Protocolo de Kyoto, elevarão progressivamente os custos da economia de alto carbono, tornando economicamente mais atrativas as vias para economias de baixo carbono.

O ponto central da cobertura da imprensa, a partir das manifestações de cientistas, especialistas e ambientalistas, é de que, com este relatório, acabaram-se as desculpas. O mundo sabe, hoje, a extensão da mudança climática provável, os efeitos já observados das mudanças que têm ocorrido e a projeção dos efeitos daquelas que virão e, agora, tem um quadro coerente de referências do que é possível e preciso fazer e uma estimativa de custo.

As três sínteses já divulgadas dessa quarta rodada de estudos do IPCC (AR4) estão tendo um impacto inédito na opinião pública e, certamente, têm e terão grande influência na política doméstica e global do clima. Elas servirão de base para as discussões acerca do “regime pós-Kyoto” e demarcarão os termos mínimos das discussões da próxima Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP 13), em Bali, de 3 a 14 de dezembro próximo. Também tendem a fortalecer a posição daqueles que defendem mudanças no plano doméstico. É muito provável, por exemplo, que sirvam de forte estímulo a um acordo bi-partidário, no EUA, que pode levar a alguma mudança na política federal em relação ao clima, antes da substituição de George Bush. Não será nenhuma mudança revolucionária, mas já reduzirá consideravelmente a resistência estadunidense na política global do clima e pode vir a dar mais consistência às políticas estaduais já em implementação.

Um dos pontos levantados pelo relatório, que tende a ser desenvolvido por uma nova geração de estudos por ele estimulada, é que a conversão para uma economia de baixo carbono não implica necessariamente em enormes sacrifícios de bem-estar. O desafio é mudar padrões de comportamento e consumo de recursos e de bens finais, para ajustá-los a índices de intensidade de carbono substancialmente inferiores aos atuais. Realmente, a ênfase no caráter recessivo da conversão para o baixo carbono e nos sacrifícios no “nível de desenvolvimento”, principalmente dos países em desenvolvimento ou emergentes, é deliberadamente enganosa. Primeiro, porque há mudanças de custo econômico muito baixo ou nulo, que em nada comprometem seja o crescimento, seja o padrão de vida, como mostra o relatório-síntese. O exemplo mais banal é o banimento das lâmpadas incandescentes, menos eficientes, e a troca por lâmpadas eficientes.

Segundo, porque a decisão coletiva de reduzir a intensidade de carbono da economia – mesmo incentivada por impostos sobre o carbono ou constrangidas por regulação – cria novas oportunidades de investimento e emprego. Ainda que haja uma defasagem no tempo entre a destruição dos empregos “carbono-intensivos” e a criação de empregos nas atividades de baixo carbono, é muito provável que, a partir de um determinado ponto de expansão desses novos setores ou atividades, a maior parte das perdas seja compensada e, dependendo do grau de inovação, superada. É claro que esse processo envolverá – como já envolveu, principalmente no EUA com as mudanças que levaram ao que se chamou, erradamente, de “nova economia” – à reciclagem e retreinamento da força de trabalho. Mas isso ativa, inclusive setores da indústria de serviços do conhecimento.

Terceiro, essa conversão levará, aí sim, à criação de uma nova economia, de baixo carbono, que provocará reposição de capital físico, mudança de padrão tecnológico, estímulo à inovação e à adoção de inovações, que muito provavelmente levarão a um ciclo de expansão econômica, dos setores de baixo carbono, enquanto os setores “carbono-intensivos” terão seu ritmo de expansão reduzido ou entrarão em declínio.

Se as evidências de mudança climática que já estão se manifestando seguirem as previsões, é muito provável que a maioria dos países que hoje têm impacto significativo nas emissões de gases estufa adote medidas sérias de mudança. Na verdade, as alterações climáticas em curso têm superado as previsões: o derretimento do gelo ártico, por exemplo, ocorre em velocidade três vezes superior ao previsto pelos modelos. Se isso ocorrer, a economia política do capitalismo global será muito diferente em 2015 do que é hoje e assistiremos a uma série de transformações e efeitos dinâmicos, não previstos, nem antecipados. Só uma coisa é certa. O mundo será muito diferente por volta de 2020.

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