O presidente Lula vai se gabar nas Nações Unidas da queda do desmatamento. Ele já disse, recentemente, que nem ele, nem seu governo precisam de lições de ninguém sobre como lidar com a Amazônia. Pior é que precisam desesperadamente. Enquanto o presidente desfiar os dados do passado recente, quando o desmatamento realmente caiu, os satélites estarão flagrando o retorno do desmatamento selvagem. O governo faz festa sobre os dados de uma temporada e a floresta agoniza na fogueira que completa o serviço sujo da nova onda de expansão da soja e da pecuária em seu território, na nova temporada.
O repórter Rodrigo Taves, do Globo, sobrevoou Alta Floresta (PA) e Cláudia (MT), no avião do Greenpeace e contou o que viu na edição de domingo: “uma área completamente esturricada, ainda há focos de fogo na vegetação, a floresta arde”; toras de castanheiras e castanheiras queimando. Era o avanço sobre o Parque das Castanheiras, em Cláudia. O presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Alto Progresso, conta para o repórter que “este ano os produtores daqui derrubaram muito mais, muito mais mesmo”. Para ele, “enquanto não houver políticas, o produtor vai sempre desmatar para fazer um dinheiro maior”. Ele reclama que o “o governo só vem cá pra multar”.
A política pública que ele quer é a legalização do que foi grilado e crédito oficial subsidiado para os grileiros. Mas, numa coisa, ele tem razão: o poder público só aparece nas áreas conflagradas da Amazônia, onde a ação ilegal avança sobre terras públicas com cobertura florestal e sobre as unidades de conservação, episodicamente. O Ibama empilha multas cobradas em vão. Nem vê o dinheiro, nem inibe os criminosos. O desmatamento só cede quando os preços caem e os grileiros ficam sem demanda.
Não foram poucas as vozes que alertaram o governo e as ONGs que se deixaram levar pela fantasia de que a Amazônia estaria, pela primeira vez, sob controle. Os preços da carne e da soja estiveram deprimidos durante os anos de queda do desmatamento. O verdadeiro teste seria este ano, quando uma quebra quase generalizada de safras, projetou os preços dos grãos brasileiros e dos EUA para as alturas. É nessa temporada que se abre já sob enorme pressão de desmatamento e das queimadas associadas a ele que esse suposto controle seria testado. Pois os dados dos três primeiros meses da temporada (maio, junho e julho) mostram um aumento de 200% na destruição em Mato Grosso em relação ao mesmo período de 2006, como mostra a matéria de Andreia Fanzeres. Além disso queimadas se multiplicam fora do arco do desmatamento, também por causa da ação criminosa, auxiliada por uma seca mais intensa. Tudo conspira contra a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado.
Nem as unidades de conservação escapam. Rodrigo Taves conta que sobrevoou a Floresta Nacional de Jamanxim, no Oeste do Pará, e viu sinais de queimadas recente e “clareiras enormes abertas na floresta”. Reservas de papel, que o governo espalhou pelas áreas conflagradas, pouco antes de detonar as estrutura do Ibama, sem plano e sem recursos, para criar o Chibio de sua costela que já não estava em boas condições. O resultado foi uma grande desorganização, a debilitação da área de proteção florestal e a partilha, aparentemente desigual, da penúria orçamentária.
Em resumo, no primeiro teste real das políticas contra o desmatamento, o governo vai sendo reprovado. Ainda tem tempo para uma boa autocrítica – coisa que nunca vi nesse governo – e fazer uma boa recuperação, para passar de ano sem voltar às marcas do início da gestão do presidente Lula. Quem acompanha o desmatamento na Amazônia há mais de uma década, olhando as fotos de satélite, diz que existe o risco de voltarmos àqueles números. A pressão de preços sobre a soja e a carne não vai ceder esse ano nem, provavelmente, no próximo.
O que está acontecendo é relativamente simples: a safra em consumo havia sido prejudicada por eventos climáticos como a seca da Austrália; seca, calor e chuva na Europa e no Canadá. Os estoques foram quase zerados para completar a oferta mais baixa de grãos novos. A próxima safra foi seriamente comprometida, pela continuidade e agravamento dessas condições climáticas. A safra de trigo quebrou no mundo todo, menos no EUA e na Argentina. Na Europa, quebrou forte na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na Grécia, na Hungria e na Ucrânia. O trigo do EUA vai compensar a quebra da safra canadense. O da Argentina vai atender à Europa. Preços no céu.
A safra de milho no México voltou a ser ruim. Vai ser complementada pelo milho estadunidense, cuja safra foi recorde. Mas está sendo recorde, também, a demanda por milho para produzir etanol. Pior ainda, 39 novas plantas de etanol vão entrar em produção este ano, aumentando a demanda por milho. Com o preço do petróleo na casa dos US$ 75.00-US$ 80.00 o barril, o etanol de milho fica suportável. A política do governo Bush é aumentar a produção e o uso de etanol. Os estoques de milho estão esgotados, por causa da demanda do etanol e das exportações. Para dar conta da nova demanda do setor de biocombustíveis, sem afetar a oferta de alimentos, cuja demanda é também crescente, e pressionar mais do que já estão pressionados os preços – a participação do milho na dieta do EUA é expressiva, basta ver a quantidade de produtos do dia-a-dia que usam corn flour e corn syrup – terão que reduzir o uso para ração, que no ano passado consumiu 51% da produção. É aí que esse processo chega à nossa soja.
Muitos produtores de soja do EUA preferiram plantar milho, daí, inclusive, a safra recorde. Portanto, a produção de soja caiu e os preços subiram. Vai faltar soja para ração. A soja brasileira suprirá o que faltar. Resultado, os preços explodiram, já vivemos inflação de preços de alimentos de 2 dígitos, em alguns meses chegou a 20%, milho e soja comandam a alta dos preços de grãos entre nós.
Tudo isso se agrava com a demanda mundial por alimentos em alta, puxada pela expansão econômica continuada por vários anos. No Brasil, também a demanda doméstica por alimentos cresce fortemente, embalada pelos ganhos de renda proporcionados pelo aumento do nível de atividade, com inflação baixa. É nesse movimento que sobe, também, o preço da carne, por causa do consumo mundial e interno aquecido e do custo em elevação da ração.
Esse contexto impele a produção sojeira e a pecuária, promovendo uma nova onda de ataque à floresta amazônica, ao Pantanal e ao Cerrado. Um quadro que se completa com o aumento da demanda por álcool brasileiro, tanto doméstica, quanto internacional. A cana avança sobre os pastos das regiões canavieiras, empurrando a pecuária para as regiões menos propícias ao seu cultivo com produtividade, contribuindo para pressionar o desmatamento.
Essa não é uma surpresa do inesperado. Era o resultado previsível de processos econômicos, em geral, e no setor de combustíveis, em particular. Não há justificativa para incautos. O aumento do desmatamento foi prenunciado por inúmeras análises e sistematicamente desdenhado pelas autoridades governamentais. Exatamente no momento em que fica claro que o governo não tem condições de proteger as reservas que criou no papel, não consegue impor um sistema mínimo de comando e controle na região amazônica, começará a licitar pedaços da floresta para suposto manejo florestal. Manejo já é um conceito com pouco fundamento científico para uma floresta tropical com as características da Amazônica. Para qualquer floresta, requer boa regulação, boa governança. E é isso que nos falta mais.
Os piores cenários estão se cumprindo para a Amazônia. Ela ainda não entrou seriamente na pauta do debate nacional, em busca de um padrão de desenvolvimento que permita zerar o desmatamento, erradicar o trabalho escravo, desfazer as redes de grilagem que alimentam o crime organizado na região. As empresas brasileiras ainda não se deram conta de que quando aceitam transacionar com produtos amazônicos ilegais estão causando danos irreparáveis à sua reputação e, mais cedo que imaginam, sofrerão as conseqüências no mercado global. A idéia de desenvolvimento que este governo tem para a Amazônia é velha de 50 anos. A Amazônia que aparece nas exposições da ministra Dilma Roussef é a de uma fronteira de expansão agrícola, recortada por rodovias e coalhada de hidrelétricas. Só falta tirar dos mapas do PAC o verde da floresta, porque se esse modelo for mesmo implantando totalmente, será um fator decisivo para que ela entre em processo irreversível de debilitação.
O Brasil não é mais subdesenvolvido por um critério de quantidade. Ele é subdesenvolvido por um problema de qualidade. E isso é uma ameaça para nós e para a Amazônia. A floresta só sobrevive em um modelo de desenvolvimento de qualidade, que eleve a qualidade e a densidade científica e tecnológica das atividades que seriam responsáveis por seu dinamismo econômico, inclusive a qualidade da educação e dos empregos gerados na região. O desenvolvimento no século XXI não será de quantidade, por mais que pareça o contrário, quando se olha para a China. O único padrão de desenvolvimento sustentado viável nesse século, será de desenvolvimento com mais qualidade e menos quantidade. Estamos longe, muito longe, de estarmos qualificados para ele.
PS
João Paulo Capobianco, que está respondendo pelo Ministério do Meio Ambiente, ligou para dizer que eles não estão trabalhando com dados velhos de desmatamento, como escrevi acima, nem estão querendo esconder desmatamento. Não foi minha intenção dizer que havia um jogo de esconde do desmatamento. A idéia da frase é que enquanto o ministério trabalha com o período julho de 2006-julho de 2007, o desmatamento aumenta e aparecerá nos dados da temporada seguinte. Espero que a nova versão da frase expresse corretament essa avaliação.
Capobianco diz que, pelos últimos dados fornecidos pelo INPE analisados pelo ministério, que são de 31 de julho de 2007, não é isso que estão esperando. “As projeções continuam apontando queda”, segundo ele. Disse que ficou apreensivo quando viu os dados do ICV e do iMazon, apontando aumento do desmatamento, e pediu ao INPE para reexaminar os dados. O instituto confirmou que não houve crescimento em números absolutos. “A curva de redução é que desacelerou, mas os dados continuam projetando queda expressiva no período”, disse.
Mesmo uma queda no ritmo de redução do desmatamento inquieta o ministério, diz o Capobianco. Ele reconhece que os fatores aqui levantados como aceleradores do desmatamento existem e preocupam. “Sabemos que a pressão é alta, os preços dos grãos subiram, vai entrar o período eleitoral, mas a lógica não mudou”, explica. Na sua opinião há muitos fatores adversos em operação, mas a tendência de queda do desmatamento continua. É claro que os dados terão que ser depurados para se ter uma confirmação final, pondera.
Evidente que todos torcemos para que Capobianco esteja certo e que apesar das pressões o processo de desmatamento siga uma dinâmica de reversão. Isso indicaria que os fatores redutores do desmatamento estão predominando sobre os fatores aceleradores. Os aceleradores são, para mim pelo menos, mais visíveis do que os redutores. Os sinais que vêm da Amazônia são de que os satélites, mais cedo ou mais tarde, verão aumento do estrago. Mas isso não é uma torcida, é pura análise. A torcida fica do lado das ponderações do ministério.
Sérgio Abranches
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