Nova manobra política provoca o risco de severos prejuízos ambientais ao Brasil. Tramita na Câmara, após ter sido aprovado pelo Senado, projeto que altera o Código Florestal para reduzir a reserva legal na Amazônia, afrouxar as regras que definem as reservas legais em propriedades privadas e ampliar as formas de compensação para a desobediência em manter partes das áreas das propriedades florestadas. De quebra, permite a plantação de espécies exóticas nos 30% que seriam liberados, entre os 80% de reserva de hoje e os 50% aos quais o projeto quer chegar. A idéia é expandir o plantio de espécies como a palma de dendê, para fazer biodiesel. A mesma que está devastando a segunda maior floresta tropical do mundo na Indonésia. Quem me lê aqui, sabe que não sou contra os biocombustíveis. Me oponho é à sua expansão desordenada, desregulada e sem limites.
Esse é apenas o mais recente risco político de danos ambientais que enfrentamos. No caso, é mais grave do que parece, porque cria um precedente péssimo, com a redução da área de reserva. Se for aprovado, no futuro, será mais fácil reduzir ou acabar com as reservas legais em propriedades privadas, que estão, muito timidamente, inibindo a destruição mais acelerada da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal e garantindo a persistência de alguma cobertura de Mata Atlântica, nos estados onde se cumpre alguma coisa da lei.
Temos, também o caso do gás da Bolívia. As decisões políticas da Petrobrás e sua recusa ideológica em admitir o risco que o acordo do gás enfrentava com a mudança de governo naquele país, nos levou ao apagão do gás de hoje. Ele vai promover o retorno ao óleo combustível, que a Petrobrás se recusa a melhorar, para reduzir o teor de enxofre. Ela só consegue resistir às determinações legais e regulatórias porque é estatal, novamente, uma forma de risco político. Em conseqüência, certamente a qualidade do ar nas cidades, principalmente na grande São Paulo, vai piorar muito, com o retorno ao diesel. De quebra aumentarão nossas emissões de gases estufa.
A necessidade de faturar politicamente a queda do desmatamento, determinada principalmente pela crise no preço da soja e da carne, levou o Ministério do Meio Ambiente a relaxar, perder espaço dentro do governo na defesa de medidas mais duras de controle do desmatamento e assistir impotente ao seu retorno. O desmatamento voltou com força e descaradamente, as correntes puxadas por juntas de tratores andam devastando em ritmo que pode levar o governo Lula a novo recorde de destruição.
Esses eventos políticos carregados de ameaça ambiental não são fatos isolados. Nascem da desgovernança política e partidária que vivemos e da complacência de organizações da sociedade civil e dos cidadãos. Umas cooptadas pelas promessas de recursos, prestígio e influência localizadas, às custas de sua eficácia mais ampla. Outros, cooptados pelo aquecimento econômico, e alienados da ação coletiva pela descrença na possibilidade de mudar o rumo da política brasileira.
Nos dois casos são perigosas ilusões de ótica, provocadas por uma visão de momento e estreita. O custo é a perda de governança, local e política. Só há governança quando há resultados. Governos e administrações de empresas ou ONGs sem resultados significativos são apenas maus governos e más administrações. A complacência dos cidadãos, por sua vez, gera insegurança coletiva e perda da soberania popular. Aí, sim, ficamos todos nas mãos dos ocupantes contumazes dos corredores do poder em Brasília.
Pior é que nos partidos se passa a mesma coisa. Formou-se um conluio generalizado, pela tolerância com a corrupção e pela abertura de vantagens de todo tipo, para os que se candidatam à farra do toma-lá-dá-cá. O contexto em que será votada essa tentativa de desfigurar o Código Florestal é uma síntese dessa geléia moral da política brasileira.
Fruto da geléia geral
O projeto nasceu dentro do PSDB, mas prospera tocado por uma coalizão tecida no oportunismo, na conivência e na omissão. Nasceu sob a liderança de um senador, Flexa Ribeiro, que não esconde seus valores e princípios. Seu maior feito recente foi baixar na fazenda Pagrisa, no Pará, flagrada com empregados em condições degradantes, que a OIT considera ser a forma contemporânea de trabalho escravo, para isentar seu dono. O senador e outros companheiros ruralistas que o acompanhavam não se limitaram a defender o proprietário delinqüente, mas fizeram pressão política para inibir o trabalho dos fiscais. Não queriam mais que as propriedades rurais sejam molestadas por fiscais querendo fazer com que apenas cumpram as leis do país.
Que existam senadores com esse tipo de atitude faz parte da vida democrática e eles estão, felizmente, se tornando uma minoria incômoda mas cada vez menos influente. Que esse esteja abrigado no PSDB, que se diz social-democrata, faz reuniões para debater um programa ambiental que muitas de suas lideranças prometem ser avançado, é muito mais sintomático dos erros e perigos da política brasileira. Enquanto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defende em seus artigos o desmatamento zero, seu partido patrocina o desmatamento máximo. Quem expressa melhor o espírito da social-democracia brasileira?
Provavelmente o senador, mais fiel à geléia ideológica e moral em que se transformou o seu partido. Basta ver as atitudes tucanas mais recentes no Congresso. Fizeram um grande cambalacho com o PT para varrer o mensalão para debaixo do tapete e assim livrar seu ex-presidente, Eduardo Azeredo, beneficiário do protótipo do valérioduto que depois seria transformado pelo PT em megaduto de dinheiro escuso. Seu líder no Senado saiu em defesa de seu correligionário Ronaldo Cunha Lima, que renunciou para escapar retirada do processado por crime de tentativa de homicídio, que dormitava há quinze anos na Justiça. O tucano do Amazonas disse que custou, mas acabou entendendo “as razões nobres” que levaram o seu colega de Casa e partido a renunciar para escapar do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Mas não lhe deve ter escapado que o processo saía do limbo para ser relatado pelo ministro Joaquim Barbosa, o mesmo que aceitou a denúncia contra os 40 do mensalão. Tampouco que o júri popular que ele julga ser o destino democrático do colega, ficará para as calendas das calendas.
Mas talvez mais fiel ainda à amorfia ético-política da social-democracia tenha sido o senador tucano Cícero Lucena, que se referiu ao fato do companheiro atirar em um desafeto da seguinte forma: “dolorosamente foi traído em algum momento da sua vida pela dramaticidade de um gesto e uma circunstância”. Nada mais impessoal, indefinido e ardiloso que esse exemplo de malabarismo mental para transformar agressor em vítima, ferindo gravemente a ética e a lógica.
Nenhuma surpresa que o projeto tenha sido aprovado neste Senado, à sorrelfa, no mesmo pacote de arreglos com que estão preparando o terreno para a impunidade do senador Renan Calheiros. Na mesma cumplicidade que se vai espraiando entre tucanos, petistas e peemedebistas. No mesmo fluxo do toma-lá-dá-cá que permitirá a prorrogação da CPMF, sem qualquer discussão substantiva sobre a qualidade e a finalidade do gasto público, sem um minuto de reflexão sobre os descaminhos das políticas públicas no Brasil, sem um segundo de preocupação sobre o fato de que, embora a receita tributária só cresça, todos os setores críticos sob responsabilidade do estado – educação, saúde, segurança, meio ambiente, ciência e tecnologia – reclamam da falta de recursos e estão aos frangalhos.
É dessa irresponsabilidade política generalizada, que tem no seu epicentro, hoje, os dois partidos “presidenciais”, o PT e o PSDB, um no comando da geléia ética e política governista e o outro na liderança da geléia ética e política oposicionista, que nascem os riscos, que se tornam danos, alguns irreparáveis, ao interesse coletivo.
O avanço do cambalacho
E a geléia vai contaminando os setores da sociedade civil que deveriam ficar de fora dos cambalachos e dos acertos de conveniência. Esses tempos de decepção e realismo que vivemos estão mostrando todas as faces dos desvios nacionais: ONGs criadas para alimentar os dutos da corrupção, ONGs cooptadas pela intimidade com o poder ou alienadas pela descoberta de fontes mais abundantes de receita econômica. As ONGs sérias, para evitar problemas, não buscam separar as desviantes das de boa conduta, estabelecendo princípios de autoregulação, propondo regras e governança mais eficazes para evitar que os espertos de sempre se aproveitem do estatuto de organizações sociais, para traficar dinheiro e influências, lavar recursos sujos, fazer o jogo do establishment corrompido.
Nos últimos tempos, freqüentemente, quando há uma ameaça ambiental na política, aparecem lideranças ongueiras prontas a defender a complacência, a aceitar perdas, para garantir certos ganhos – raramente coletivos e quase nunca suficientes – sempre dispostas a negociar compromissos. Dessa forma, vão enfraquecendo e desacreditando o ambientalismo, sob o argumento de que é melhor negociar do que defender princípios radicais. Viram uma fonte de risco político. É claro que o objetivo deve ser negociar: novas políticas públicas, mecanismos eficazes de governança, caminhos alternativos. Negociar a aceitação do dano, o rebaixamento do nível de qualidade, a ampliação do desmando tem outro nome: conivência ou capitulação.
Esse projeto surge, não por acaso, no momento em que um grupo de lideranças políticas, ONGs e empresas, lança a idéia de um pacto pelo desmatamento zero. Quando começam a surgir empresas, antes cúmplices do desmatamento, dispostas à moratória e à reparação.
Fácil entender. Toda ação política provoca reações. O danado é que, hoje, as ações políticas do bem provocam reações fortes e muitas vezes eficazes dos que acobertam grileiros, desmatadores e exploradores de trabalhadores despossuídos, mas, em contrapartida, as investidas desses transgressores contumazes têm encontrado complacência e uma estranha disposição à negociação.
Coalizões espúrias
Por uma manobra que contou com a participação do presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), o projeto que fora barrado na comissão de Meio Ambiente, foi enviado à comissão de Agricultura, o reduto dos ruralistas. A idéia era aprová-lo de forma terminativa, sem que precisasse passar pelo plenário. Felizmente, dificilmente ele escapará de ser votado em plenário. O que não garante que venha a ser rejeitado, com os ambientalistas divididos e os ruralistas coesos e recebendo apoios de setores que se dizem progressistas.
Nem mesmo a retomada do desmatamento sem peias, puxado pela recuperação dos preços da soja, serve de alerta para os riscos de afrouxar as regras na Amazônia. O projeto, se aprovado, não vitima somente ela. Ele pode ser fatal para o Pantanal, ao enfraquecer o próprio estatuto da reserva legal e ampliar desmesuradamente as formas de compensação pela desobediência da exigência de manter as reservas nas propriedades.
Não se deve esperar que o ministério do Meio Ambiente se esforce por derrubar o projeto, até como uma forma de reparar os danos causados por sua imprevidência e excesso de confiança, que fizeram com que fosse surpreendido, sem capacidade de ação, pelo retorno anunciado do desmatamento selvagem. O ministério quer aproveitar para contrabandear no projeto mudanças de seu interesse no Código Florestal.
Na verdade, o destino desse projeto é menos importante do que as revelações de sua trajetória. É um testemunho da história que andamos escrevendo contemporaneamente, em todos os campos, no Brasil, não apenas no ambiental.
Está se formando o pior tipo de coalizão possível: aquela formada por um pequeno núcleo com interesses fortes e bem definidos e uma maioria de oportunistas, que prefere tirar algum proveito da decisão, a assumir a defesa do interesse coletivo. São as coalizões implícitas, feitas por baixo de panos espessos, sem a coragem da transparência. Não há ética possível numa coalizão dessas. A moral dominante será sempre aquela definida pelo toma-lá-dá-cá, nunca pela melhor razão. O que define uma coalizão é sua banda mais podre, não sua franja inocente e útil.
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