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A sagração dos ratos

Roedores são maleáveis à curiosidade humana. Prestam-se até para testar nossa fidelidade. Mas continuam sendo vistos como praga. Deveriam ser santificados.

3 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

Primeira pergunta: Como descobrir se um rato é ou não promíscuo? Usando nossos valores como referência? De acordo com o que foi publicado na Super Interessante de novembro, para construir um sonho para as roedoras, os cientistas alteraram o gene que influencia a absorção pelo cérebro do hormônio responsável pela sensação de prazer do orgasmo. Não entendi bem o que eles fizeram com este pobre camundongo. A matéria não explica o caso em detalhes.

Segunda pergunta: Quem disse que as ratinhas sonham com ratinhos fiéis?

Terceira pergunta: Por que eles estão fazendo essa pesquisa? Será que pretendem lançar no mercado uma pílula que garanta ou estimule a fidelidade masculina? E se for, será que isso pode ser considerado um avanço da medicina?

“Os avanços da área médica sempre dependeram e vão continuar dependendo das experiências com animais”, afirma à reportagem da revista José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração, em São Paulo. Para se testar uma vacina contra poliomielite, por exemplo, é preciso matar 30 macacos. A produção anual da vacina anti-rábica canina impõe o sacrifício de um milhão de camundongos.

São números que fazem arrepiar qualquer membro de sociedade protetora dos animais, mas tolerados diante do objetivo maior de salvar vidas humanas. Os animais preferidos para experiências são os camundongos. Assim como os ratos, eles têm um ciclo de vida curto, cerca de dois anos, o que facilita e agiliza o acompanhamento dos testes. Além disso, procriam com rapidez. Portanto, dificilmente faltarão ratos ou camundongos para os mais diversos experimentos. Sendo assim, o lema é “que se danem os camundongos”. Afinal, pelo que se sabe, eles estão longe extinção.

“Os ratos e camundongos têm entre 90% e 95% dos seus genes iguais aos nossos”, afirma o mesmo José Eduardo – coisa que não serve de consolo para os bichos. Apenas os torna cobaias mais perfeitas. E isso nem ajuda a melhorar sua fama. Dentro de um laboratório, os ratos se prestam a a ajudar os homens com milhares de pesquisas que não melhoram a sua qualidade de vida na terra. Só a nossa. Ainda assim, fora dos laboratórios, esses roedores continuam carregando a pecha de praga maldita.

Sua maleabilidade à nossa curiosidade científica ajuda a transformá-los em sêres de mil e uma personalidades e diferentes formas. Além de transformarem o tal promíscuo num maridão, os pesquisadores agora criaram ratinhos neuróticos e angustiados com o objetivo de desenvolver drogas que ajudem no combate à ansiedade e à depressão. Para tal, eles “apagaram” do cérebro do camundongo, o gene que controla a produção de um hormônio que regula a resposta do cérebro ao estresse.

Uma outra “vítima” roedora traz boas notícias para os obesos. Ele emagreceu bastante em apenas duas semanas, tomando doses de um hormônio chamado leptina, que desde então, não parou de ser estudado. Mas ainda não foi desenvolvida uma droga capaz de fazer pelos humanos o que a leptina fez pelo ratinho. Um outro, que morreu com 4 anos e 12 dias, bateu recorde de longevidade vivendo o equivalente a 136 anos em seres humanos.

Os exemplos são inúmeros. Em busca de soluções que vão desde o combate a calvície até o desenvolvimento de órgãos para transplantes, os cientistas se divertem com as respostas inusitadas apresentadas por seus companheiros de trabalho (se eles se divertem, na verdade eu não sei. Mas, mesmo que de forma irônica, o tem foi abordado como assunto divertido na matéria da Super Interessante).Quem não se diverte são os ratos.

A convulsão, por exemplo, é a principal causa de morte entre os dependentes de cocaína. De acordo com Sergio Tufik, chefe da disciplina de Medicina e Biologia do Sono da Unifesp, se a pessoa estiver privada de sono, mesmo usando quantidade semelhante (de cocaína) à utilizada em ocasiões anteriores, o efeito da droga é potencializado, podendo levar à overdose.

Para ter certeza de que a falta de sono é capaz de alterar a quantidade de convulsões, lá foram os ratos para o laboratório. Os pesquisadores dividiram os animais em cinco grupos de dez ratos. Um dos grupos, chamado de controle, foi o único a permanecer com a rotina inalterada.

Os demais quatro grupos foram colocados em situações de estresse: o primeiro foi obrigado a nadar duas vezes por dia; o segundo ficou imobilizado em tubos plásticos durante 22 horas por dia, com intervalos para se movimentar e se alimentar. No terceiro grupo, os animais receberam choques nas patas, e os últimos ficaram sem dormir. Após quatro dias, os animais de todos os grupos receberam uma dose de 50 miligramas de cocaína.

Os resultados foram surpreendentes – 90% dos animais privados de sono tiveram crises convulsivas, contra 10% dos ratos que não foram manipulados. “Não houve diferença significativa (em termos estatísticos) entre o grupo controle e os demais animais estressados, o que mostra que somente a privação de sono é capaz de alterar a ação da droga”, explica Mônica Andersen, que também participa do projeto. As crises convulsivas afetaram 50% dos ratos imobilizados, 30% dos que levaram choques e 10% daqueles que estavam no grupo que praticou natação. É trágico e cômico.

Enquanto as cobaias ajudam pesquisadores e cientistas a descobrirem novas formas (ou fórmulas) de melhorar a “qualidade” de vida do homem e esticá-la o máximo possível (já que o homem tem essa necessidade incrível de tornar-se imortal), os ratos de rua sobrevivem como podem e são absolutamente desprezados pela espécie humana.

Diante da contribuição que a espécie oferece para os avanços da medicina, acredito que os ratos deveriam ser considerados sagrados. Depois de ler tudo o que li, tenho até certa vergonha de olhar para um camundongo, mesmo que ele da turma dos bandidos e não dos mocinhos, ou seja, mesmo que ele faça parte dos que espalham doenças ao invés de encontrar a cura delas. Questão de sorte. Não foi opção dele. O bicho é um sobrevivente e assim como o homem, se adapta ao meio e faz o que pode.

Os ratos domésticos (hamsters) são os únicos exemplares “respeitados” desta espécie de mamíferos roedores. Além de divertirem seus proprietários fazendo pequenos espetáculos circenses, (quando giram freneticamente naquelas rodas gigantes que ficam dentro das gaiolas), eles vivem sob os cuidados do homem, ou seja, são bem alimentados (comem ração ao invés de lixo), freqüentam veterinários e etc.

São confinados e bem tratados. Dentro das possibilidades de vida que a espécie tem, digamos que o hamsters é um bichinho de sorte. Não está sujeito a pesquisas esquizofrênicas realizadas em laboratórios, não vive nos guetos e não corre o risco de morrer amassado numa ratoeira ou envenenados num jardim.

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