Esta “folha” eletrônica veiculou na edição de 13 de agosto de 2004 a coluna O torpedo “tatcheriano” contra o meio ambiente, cuja autora, Srª Maria Tereza Jorge Pádua, já desempenhou a elevada função de presidente do Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
O mencionado texto inicia-se com a classificação de “simplista e furibunda” a maneira pela qual a Srª Ministra de Minas e Energia atribui ao licenciamento ambiental o “não licenciamento” de 24 novas hidrelétricas. A questão de fundo levantada pela coluna, no entanto, diz respeito à má qualidade dos Estudos de Impacto Ambiental, à falta de funcionários do Ibama e à concessão de potenciais de energia elétrica sem que se avalie as reais possibilidades ambientais do potencial concedido; bem como às questões sociais suscitadas pela construção de barragens.
A experiência e autoridade da articulista impõem um exame pormenorizado da matéria. É o que pretendo fazer.
A primeira questão que me parece relevante no contexto do licenciamento ambiental – seja para que atividade for – é que, na forma da lei, ele é basicamente uma atribuição dos estados, conforme determina o artigo 10 da lei nº 6.938/81, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente. Entretanto, por meio de normas regulamentares e administrativas, o Ibama foi, paulatinamente, avançando sobre as atribuições dos estados e estabelecendo um “licenciamento federal”, sem que houvesse uma base legal clara para tal. O exemplo mais completo dessa invasão de competências estaduais é a Resolução nº 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que, de forma surpreendente, “legislou” inclusive sobre matéria constitucional. E mais do que isto: à ampliação das atribuições do Ibama não correspondeu uma ampliação proporcional de suas dotações orçamentárias, ou de seu quadro de servidores (é verdade que houve recente concurso para a contratação de servidores para o Ibama). Estes são elementos objetivos que independem do compromisso ideológico dos dirigentes da agência ambiental.
Quanto à severa crítica aos estudos de impacto ambiental, não há dúvida de que os mencionados estudos se transformaram em um verdadeiro equívoco. Em primeiro lugar há que se considerar que os Estudos de Impacto Ambiental foram constitucionalizados (CF art. 225, § 1º, IV) e desde 1988 não foi editada uma lei que discipline a matéria que está regulada por meras resoluções do Conama, muito embora a norma constitucional afirme que a exigência dos Estudos de Impacto Ambiental deverá ser feita “na forma da lei”. Eu mesmo já cheguei a considerar que o vocábulo lei deveria ser tido como norma jurídica e não como lei formal. Vejo, no entanto, que tal concepção é insustentável, na medida em que, no mesmo artigo constitucional (art 225, § 1º) a expressão lei tem sido considerada em seu sentido formal. A utilização de dois pesos e duas medidas não me parece o melhor critério de aplicação da norma jurídica constitucional. A doutrina jurídica não tem atentado para a questão, o que me parece grave, visto que ambos os valores tutelados gozam de status constitucional.
Há uma tendência bastante clara em estabelecer uma pan-necessidade de estudos prévios de impacto ambiental para intervenções sobre o meio ambiente, relegando-se a segundo plano as demais formas de avaliação ambiental disponíveis.
A cartorialização dos Estudos de Impacto Ambiental tem feito com que, sem sombra de dúvidas, muitos EIA sejam de qualidade técnica sofrível e que só tenham a função de atravancar a tramitação dos procedimentos de licenciamento ambiental nos órgãos de controle. Grande parte do problema está vinculada ao fato de que, por muito tempo, não se admitia os estudos feitos pelas próprias empresas pois, romanticamente, a norma determinava que o elaborador do EIA não poderia ter dependência econômica do empreendedor, como se eles fossem ser elaborados graciosamente. A orientação, felizmente, mudou. Hoje, os próprios empreendedores podem apresentar os seus estudos e por eles responder, caso haja alguma irregularidade. A ampliação do número de modalidades de avaliações ambientais implicará, na minha opinião, na melhoria técnica dos estudos e em um licenciamento mais ágil e seguro.
A falta de uma base legal sólida para o procedimento do licenciamento ambiental, visto que o mesmo repousa, fundamentalmente, em Resoluções e atos administrativos de hierarquia subalterna, é um elemento que contribui de forma excepcional, e seguidamente, para o questionamento dos procedimentos perante o Poder Judiciário, que, não raro, suspende a tramitação de licenciamentos com a conseqüente paralisação de investimentos, frustração de expectativas e mais fortemente para o descrédito dos órgãos ambientais, com prejuízos notáveis para a sociedade, a função pública e o meio ambiente. Há uma outra questão relevante: a insegurança dos servidores dos órgãos ambientais que, seguidamente, se vêem processados por improbidade administrativa ou por crimes previstos na lei nº 9.605 (crimes ambientais) pelos simples fato de expedirem licenças ambientais que, na qualidade de atos administrativos, deveriam gozar da presunção de legitimidade. Registre-se, ainda, a agravante de que – como regra geral – tais servidores não são defendidos pelos advogados públicos, visto que, em tese, estariam cometendo uma infração em prejuízo do próprio estado. Este é, sem dúvida, o principal gargalo do licenciamento ambiental.
Um outro ponto que não pode ser desconsiderado, em se tratando do setor elétrico, é a descoordenação entre a ANEEL e o Ibama, o que faz com que sejam licitados potenciais hidráulicos que, muitas vezes, são ambiental e socialmente sensíveis, dificultando, senão inviabilizando, o licenciamento. A este respeito, não posso deixar de consignar que a ANEEL e o Ibama nada mais são do que autarquias federais e, portanto, expressões da União Federal, que não pode oferecer um potencial hidrelétrico em hasta pública e, em seguida, impedir a sua utilização, ainda que motivada por questões ambientais. Do ponto de vista negocial, tal atitude não me parece séria. Uma vez que a utilização do potencial seja impedida por questões ambientais, entendo perfeitamente cabível a indenização do adquirente, levando-se em conta tudo aquilo que, legitimamente, planejava auferir com o empreendimento.
O texto da Srª Maria Tereza Jorge Pádua é oportuno, pois se insere em um contexto da maior relevância. Aponta, a colunista, a questão do desenvolvimento de energias alternativas e do consumo racional com maior eficiência energética como peças fundamentais para um correto equacionamento da questão. Indiscutivelmente, tais pontos são fundamentais quando se fala em geração elétrica. De fato, o Brasil planeja a adoção em níveis bastante significativos da energia alternativa. O Proinfra é um programa governamental que busca ampliar de forma consistente a utilização de energias alternativas. Entretanto, a simples racionalização do consumo de energia e a utilização de energia alternativa não serão capazes de gerar a quantidade necessária para que o país possa subir ao palco do espetáculo de crescimento que vem sendo anunciado pelos mestres de cerimônia deste Grand Cirque du Soleil que é o Brasil.
Em minha opinião, o licenciamento ambiental é, de fato, um problema a ser enfrentado por todos aqueles que entendem a necessidade de que o Brasil entre em uma rota de desenvolvimento econômico com qualidade ambiental. Não cabe, no meu entendimento, a identificação de culpados ou mesmo a identificação dos mais culpados. O que cabe, isto sim, é examinar as diferentes facetas da questão e apontar soluções para o futuro, esquecendo o passado, pois assim como o de Klute, o passado condena-nos todos.
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