Escrevo de Bangkok, na Tailândia. Estou entre espécimes exóticos. Cinco mil e duzentos deles. Alemães, africanos, sauditas, indianos, japoneses, neozelandeses, são-tomenses, nepalis, trinitinos e outros representantes de duzentas nacionalidades do mundo inteiro estão aqui, reunidos no 3º Congresso Mundial de Conservação da Natureza, que vai de 17 a 25 de novembro, sob os auspícios da UICN (União Mundial para a Natureza).
Neste caso, não são espécies exóticas invasoras, mas uma reunião do que há de melhor, mais engajado e mais combativo no mundo em termos de teoria e prática da proteção (do que restou) da natureza mundial. Essa babel de gente de pele curtida pelo sol e lanhada pelos matos vai discutir o que ainda é possível fazer para manter a Terra minimamente saudável. Vêm dar seqüência aos acalorados debates e importantes decisões tomadas no Congresso Mundial de Parques Nacionais, realizado em setembro de 2003, na cidade sul-africana de Durban.
Do meu ponto de vista, difícil é decidir que palestras assistir e que conferencistas abordar em busca de uma boa prosa. Escassos cinco minutos após adentrar o Centro de Convenções Rainha Sirikit, já estou completamente tomado por uma ansiedade de criança pequena em loja de brinquedos. Tudo me interessa, todos os assuntos são relevantes, não quero abrir mão de nem uma conferência. O problema é que, somente nos três primeiros dias do Congresso, ocorrem 903 seminários técnicos! Assistir a um implica em deixar de estar presente em dezenas de outros. Acabo por escolher os temas que me parecem mais prementes para o Brasil. Mesmo assim, me vejo pulando de sala em sala, na sofreguidão de tudo absorver.
Interessantíssima é a discussão em torno dos Parques Nacionais Transfronteriços. Cada vez mais, sabemos que a estratégia de proteger áreas geograficamente restritas, transformando-as em ilhas de conservação não é suficiente para garantir a manutenção da biodiversidade mundial. Com efeito, é fundamental que seja assegurada a conectividade entre as áreas naturais, propiciando, assim, maior troca genética e permitindo a continuidade de áreas protegidas para espécies migratórias. Nesse caso, sob o aspecto da preservação da natureza, não faz sentido impor barreiras construídas por obra e graça de instituições humanas – os países – entre Parques Nacionais e outras reservas contíguas, embora localizados em territórios nacionais diferentes.
Como explica Trevor Sandwich da Transfrontier Park Unit, da África do Sul: “Os animais não carregam passaporte, nem servem exércitos, para eles, a única fronteira que existe é aquela que separa uma Unidade de Conservação de um ambiente antropizado, seja ele uma área utilizada para agricultura ou para habitações humanas”. Assim sendo, o movimento em prol dos Parques Transfronteiriços ou Parques da Paz, como também estão sendo chamados, propugna pela remoção de qualquer barreira física entre áreas protegidas adjacentes, bem como prega a coordenação estreita de suas políticas de manejo.
Felizmente, não se trata de mera retórica. Já existem hoje, no mundo, algumas centenas de Parques Transfronteirços em diversos estágios de implementação. Nesse sentido, inspirador é o exemplo da África Meridional, onde há três deles funcionando de maneira a priorizar a conservação da fauna e flora, a despeito de desconfianças dos militares e de movimentos ilegais de mão-de-obra nos países onde estão localizadas as áreas protegidas ligadas pelos Parques Transfronteiriços.
A primeira dessas unidades de conservação internacionais, o Parque Transfronteiriço de Kgaladi, foi estabelecida em maio de 2000, unindo áeras protegidas de Botswana e África do Sul. Logo depois, em dezembro de 2000, foi criado o Parque Transfronteiriço do Grande Limpopo, reunindo o Parque Nacional Kruger, na África do Sul, o Parque Nacional do Limpopo, em Moçambique, e o Parque Nacional de Gonarezhou, no Zimbabwe, totalizando 35 mil quilômetros quadrados. Há, entretanto, planos para aumentá-lo no médio prazo, agregando a ele APAs e outros Parques Nacionais nos três países, processo que, quando finalizado, resultará em uma área de 100 mil quilômetros quadrados. Em um primeiro momento, já foram removidas as cercas que separavam África do Sul e Moçambique, ensejando assim a livre movimentação da fauna.
Naturalmente que o arranjo assusta setores nacionalistas nos diferentes países envolvidos, que temem que os Parques Transfroteiriços criem vulnerabilidades na defesa nacional e problemas de soberania. Hoje, os três Parques Transfronteiriços da África Meridional (o terceiro chama-se Ai-Ais/ Richtersveld, foi criado em agosto de 2003 e fica entre a África do Sul e a Namíbia), têm sua gestão disciplinada por tratados internacionais que estabelecem a criação de Comitês Permanentes de Manejo multinacionais que deliberam sobre absolutamente tudo que concerne à área protegida internacional em questão, desde assuntos de conservação propriamente ditos até turismo, passando por segurança, finanças, recursos humanos e legislação. A presidência dos Comitês de Manejo é rotativa, cabendo a cada país liderar o processo durante dois anos. Até aqui, os ambientalistas dos países envolvidos, bem como pesquisadores internacionais, têm sido unânimes em aplaudir os resultados da iniciativa africana, que têm exemplos similares entre Quênia e Tanzânia, Quênia e Uganda, e outros.
No Brasil, apesar da óbvia conectividade de nossos Parques com os dos países vizinhos sul-americanos, especialmente na Amazônia, ainda engatinhamos no assunto. Há, contudo, algumas iniciativas encorajadoras entre o Parque Nacional do Iguaçu e seu congênere argentino. Embora seja pouco, pode nos servir de aprendizado para iniciativas mais relevantes em um futuro não tão distante.
Findo o seminário sobre Parques Transfronteiriços, encaminhei-me à cafeteria. Rapidamente estava cercado de conferencistas de diversas cores e nacionalidades. A conversa fluindo sobre desmatamento, espécies exóticas invasoras, tráfico de animais, aquecimento global. Todos se pronunciando indignados e discursando teses inflamatórias. O pequeno círculo lembra-me os dias de Faculdade de Geografia na UFRJ, quando todos, tomados dos mais puros ideais comunistas, consertávamos o Brasil. É uma memória triste, pois crescemos, assumimos as posições socioeconômicas e os cargos governamentais antes ocupadas por nossos pais, mas não logramos mudar o país.
Aqui em Bangkok, contudo, há uma diferença, pequena mas fundamental. A indignação não vem de jovens idealistas, mas de homens feitos que o tempo e as derrotas seguidas, infligidas ao meio ambiente pelo progresso, não conseguiram quebrar. Pode ser que a causa esteja perdida e que a humanidade acabará mesmo por destruir o planeta. Mas, se assim for, essa pequena comunidade de aguerridos ambientalistas há de cair de pé e lutando até o último homem.
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