Vinte e dois de agosto de 1989. Estamos na transição da madrugada para o dia. O sol recém venceu o horizonte e sobe tímido contra um céu carregado de nuvens cinzas e ameaçadoras. Acabei de despertar, perscruto o horizonte de Mossel Bay, pequena vila na província sul-africana do Cabo Ocidental. O vento maral que soprou a noite inteira, agora acalmou a ponto de quase parar. As ondas, variando de meio a um metro, entram com uma consistência impressionante, estourando com perfeição. Não rebentam abruptamente; pelo contrário, quebram do centro para as bordas, abrindo no processo longas e surfáveis direitas e esquerdas. O mar está vazio, não há viv’alma dentro d’água: é o sonho dourado de todo surfista.
Volto apressado à pensão, sacudo meu primo ainda sonolento embaixo das cobertas e, ignorando o café da manhã, juntos voamos de volta à praia. Rápidos, vestimos as grossas roupas de borracha e remamos mar adentro.
Beto mal vence a linha de arrebentação, vira a prancha e desce intrépido veloz esquerda. Na próxima meia hora, mais meia dúzia de vagas ainda são surfadas sem concorrência, até que dois surfistas locais entram na fita. Passam direto pelo local onde estamos meu primo e eu e vão se postar vinte metros à nossa esquerda, entre nós dois e um baixo promontório rochoso que, a partir da areia, se projeta cerca de 130 metros mar adentro.
Como se fora por encanto, imediatamente as ondas pareceram todas abandonar-nos e dirigir-se ao pico escolhido por eles. Beto, impaciente, quis logo juntar-se aos sul-africanos. Argumentei que devíamos esperar alguns minutos. Não prosseguimos na discussão: um grito hediondo cortou-nos a fala. Espantado virei o rosto em sua direção: vi um enorme rabo junto à prancha de um dos sul-africanos. “Uma baleia”, pensei entre impressionado e tranqüilizado. Não era! A água turvou-se de sangue. Seu companheiro remava frântico em direção ao promontório, que galgou como se fosse cabrito montês. Na água, a vítima voltou à superíficie e agarrou-se à prancha, apenas para ser tragado novamente por uma horripilante cabeçorra.
Tomado de pânico, remei impulsionado por potentes descargas de adrelina em direção a um local seguro. Quando atinei que se tratava de um tubarão branco, já estava seguro no topo do promontório. As pernas bambas. O coração somente seguro na boca pelos dentes cerrados. Enquanto isso, Nico von Broemsen grudara-se novamente à sua prancha que as ondas haviam empurrado até a pedra, poucos metros abaixo de onde estávamos. Guindei-o e deitei-o de costas na rocha fria. Seu amigo, em estado de choque pouco ajudou. Não era para menos:
Entre o ombro e a mão direitas de Nico não havia mais braço; apenas a ossatura e esparsas franjas de carne descoladas do membro. Dentes de tubarão soltos por toda parte. Na perna, outra mordida arrancara-lhe toda a vida entre a cintura e o joelho, deixando intacta apenas fina tira na parte interna da coxa. Banhava-se em crescentes doses do próprio sangue. Vai morrer, pensei atônito e impotente.
Desde aquela data retornei várias à África, até finalmente decidir-me a morar no Quênia a partir de abril de 2005. O continente tem uma magia que se impregna no amante dos esportes da natureza. Nunca mais, entretanto, surfei as vagas africanas com a tranqüilidade de quem não deve nada. De fato, a partir daquela data, tenho surfado sempre assustado, quase temeroso, no limiar entre o prazer e o desconforto. Ademais, sempre que a escolha se apresentou troquei o surfe pelo trekking, esporte nacional sul-africano, pelo rafting ou pelo mountain biking.
Dezessete anos depois
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