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Liberou Geral?

A caça é problema em diversas reservas no Brasil. Se for tratada como um esporte e bem manejada pode trazer vantagens para a conservação, como mostram bons exemplos na África.

19 de dezembro de 2007 · 17 anos atrás

Recente reportagem de Karina Miotto aqui em O Eco informa que políticos e empresários amazonenses têm caçado impunemente na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, a cerca de 220 quilômetros de Manaus. Que novidade! A caça corre solta no Parque Nacional da Bocaina e no Parque Estadual da Serra do Mar, ambos no Estado de São Paulo, o mais rico, conscientizado e urbanizado do país. Também há caça a rodo no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, dentro da cidade do Rio de Janeiro, que alberga um Batalhão Florestal da PM, um Grupo de Defesa Ambiental da Guarda Municipal, uma Delegacia para crimes ambientais no âmbito da Polícia Federal e outra sob a esfera da Polícia Civil, além de todos os canais possíveis para denúncias, como telefones específicos para isso, sedes do IBAMA, IEF e Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Ministério Público, jornais e emissoras de rádio e televisão. Como é que alguém pode se surpreender que haja caça na Amazônia?

Já tratei desse tema algumas vezes aqui em O Eco e acredito que é de difícil solução sem que tenhamos uma legislação que não seja tão apegada a formalismos e sem que criemos uma carreira de guardas-parques profissionais. Pessoalmente sou contrário à caça mas, convenhamos que ela pode servir como uma linha auxiliar de políticas de conservação. Na África do Sul, a legalização ensejou a criação de diversas reservas de caça no entorno de Parques Nacionais, aumentando a área disponível para a fauna e funcionando como zonas tampão para áreas protegidas.

Naquele país, o estabelecimento de cotas permite que as populações sejam caçadas em níveis sustentáveis, impedindo que o “esporte” dizime ou mesmo desequilibre a sobrevivência das espécies cujos indivíduos são abatidos. Há hoje, inclusive em áreas privadas, um programa de reprodução induzida das espécies mais procuradas, como os grandes felinos, o que permite o aumento do seu abate, ao tempo em que proporciona um crescimento real dessas populações.

Na Namíbia, em Botswana e no Zimbabwe, a proibição internacional de venda de marfim de elefante, imposta pelas partes da Conferência Internacional sobre o Comércio de Espécies Ameaçadas (CITES), tem causado indignação. Os países da África Meridional alegam, com certa dose de razão, que a população dos paquidermes está se reproduzindo em taxas alarmantes e que os animais já começam a destruir o habitat em que vivem, devastando as reservas e começando a sair delas para pilhar as hortas e pomares de agricultores que vivem em seus entornos. A solução que algumas Agências de Parques tem encontrado é sacrificar os animais a tiros.

Esse abate, feito para controlar a capacidade de carga das unidades de conservação, poderia ser executado por caçadores diletantes, mediante pagamento de polpudas licenças e com supervisão dos governos. Os recursos obtidos daí, mais a venda de marfim com certificado de origem, poderiam beneficiar as populações que hoje abonimam os elefantes, pois os vêm como flibusteiros que devoram suas hortas e pomares, muitas vezes fonte única de renda de famílias inteiras. O resultado não é difícil de prever. Aumentaria a área onde os elefantes têm seu habitat. Além disso, as populações tradicionais veriam a fauna como fonte de renda e passariam a apoiar a conservação. Os elefantes- e outros animais- seriam vistos como alternativa de sustento e não como concorrentes por pasto e área agricultável.

Outro benefício da caça esportiva advém de seu uso como instrumento de controle e eliminação de espécies exóticas invasoras. Na Austrália clubes de caçadores se reúnem nos fins de semana para abater porcos selvagens, raposas e lebres, animais que foram introduzidos pelos colonizadores europeus e tornaram-se pestes. Também recorreu-se a caçadores para eliminar os “brumbies”, cavalos ferais, exóticos ao ecossistema, que estão destruindo a frágil flora dos parques nacionais dos Alpes Australianos. No Brasil, tal recurso poderia ser utilizado para controlar as populações de búfalos selvagens que tornaram-se nocivos à natureza nativa em alguns pontos da Amazônia.

Em Portugal, há reservas de caça para todo lado. Elas servem para dar um valor econômico a terras que, de outra forma, estariam degradadas. A caça é feita em temporadas específicas por indivíduos previamente licenciados e mediante pagamento de taxas. E acreditem, a atividade dá dinheiro. Muitas pessoas querem caçar! Afinal, como animal que está no topo da cadeia alimentar, o homem é um caçador por natureza e instinto. Na história, a caça sempre foi reservada aos membros mais importantes das coletividades. Nas tribos indígenas caçavam os homens. Na Europa, quando a caça começou a rarear, os reis e os nobres passaram a fechar grandes áreas para seu divertimento. São os famosos coutos de caça até hoje existentes em muitos países, cujo símbolo máximo é a cavalhada, até recentemente montada por fidalgos vestidos de vermelho atrás da pobre raposa inglesa.

Por que então não legalizamos a caça no Brasil? Toda moeda tem dois lados. O Quênia já permitiu a caça. Nesse período o descontrole foi total. O número de animais abatidos superou em muito o que estava previsto nos planos de capacidade de carga e populações inteiras de animais, sobretudo, os elefantes e rinocerontes, foram dizimadas. Ao proibir a caça e criar, em 1989, uma estrutura decente de fiscalização, o Kenya Wildlife Service, o país conseguiu estancar a sangria. Hoje extrai percentual significativo de seus ingressos em dólares por meio do ecoturismo. O trauma do descontrole, contudo, ficou. Atualmente o Quênia é um dos mais ferrenhos opositores à legalização da caça.

No Brasil estamos no pior dos mundos. Não legalizamos a caça por razões ideológicas. Ademais, não contamos com um aparato legal, judiciário e, sobretudo, fiscalizatório que nos permitisse fazer cumprir um sistema de cotas e licenças que eventualmente viesse a ser adotado. Com efeito, essa deficiente estrutura de governo sequer funciona para impedir que se cace à luz do dia e em quantidades insustentáveis, mesmo dentro do atual quadro de ilegalidade.

Nesse contexto, defender a legalização da caça no Brasil é discutir o sexo dos anjos. Precisamos mesmo é que o Instituto Chico Mendes ganhe corpo e se transforme em uma Agência de Parques capaz de administrar áreas protegidas, manejá-las e, principalmente, fiscalizá-las com uma intensidade compatível com o problema. Se isso não for feito – e rápido – em breve não precisaremos mais discutir esse assunto pela simples razão de que não haverá mais nada o que caçar.

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