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Diluição não é solução

Especialistas do mundo todo discutiram em seminário no Rio o descarte de resíduos no mar. Mas o lixo involuntário não foi contado. E ficou por isso mesmo

8 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

Emissário sanitário. Foto: Pixabay.

O mar tem sido repositório de todo o tipo de lixo sólido, líquido e gasoso gerado pelo homem. É a velha cultura da diluição. Parece que a imensidão do oceano dilui, espalha, faz desaparecer. Na verdade, o lixo se acumula quando não recicla. Infelizmente, as escalas de tempo e espaço nas quais vivemos dificultam a análise global do problema. Talvez seja mais fácil entender a gravidade da contaminação marinha fazendo comparações com a escala do nosso quintal. Por exemplo, a espessura média dos oceanos, que é de aproximadamente 3800 metros, está para o planeta assim como a camada de tinta externa está para a bola de boliche. Na verdade os despejos crônicos ou agudos, propositais ou acidentais, se acumulam gradativamente. Concentram-se cada vez mais nos limites das bacias oceânicas e começam a fazer parte do funcionamento de um ecossistema contaminado que automaticamente nos prejudica, (e à maioria dos organismos marinhos) ou nos exclui totalmente.

É verdade que existem aspectos positivos dessa má educação atávica. Pelo menos parte da história dos povos ao redor do Mediterrâneo é conhecida graças ao descarte dos potes cerâmicos usados nos navios para armazenar vinho. Potes vazios eram imediatamente lançados pela borda. Se não era coisa de bêbado, era pra economizar espaço a bordo. Imaginem isso ao longo de centenas de anos formando trilhas de lixo submarino entre a origem e o destino desses navios. Arqueólogos marinhos e oceanógrafos resgataram esse material do fundo do mar, georrefenciaram trilhas e estabeleceram cronologias históricas com base nas correntes, na profundidade e na posição que esse material era encontrado. É interessante. Só que agora no século XXI quase nada justifica o lançamento de lixo no mar.

“Até o início da década de 70, os países industrializados despejavam o lixo indiscriminadamente, sem nenhum controle sobre o efeito desses materiais na saúde dos oceanos.”

Até o início da década de 70, os países industrializados despejavam o lixo indiscriminadamente, sem nenhum controle sobre o efeito desses materiais na saúde dos oceanos. Mas em 1972, algo mudou no reino de Namor. Pelo menos em águas internacionais. Esses países reuniram-se em Londres para discutir a questão do lixo no mar e estabelecer medidas para que o desenvolvimento industrial global não prejudicasse os ecossistemas marinhos. A chamada Convenção de Londres (daqui pra frente CL) entrou em vigor em 1975, e agora é o documento que regulariza o despejo de lixo no mar por aqueles que assinaram esse compromisso. Foi o primeiro compromisso internacional para criar critérios técnicos, políticos e socioeconômicos para o despejo de resíduos no mar, visando a proteção da saúde humana e do ambiente marinho. Pela primeira vez na história da humanidade, o homem se reuniu com a intenção de proteger os oceanos contra a poluição.

O Brasil ratificou a CL em 1982, mas ainda falta fazer o mesmo em relação ao seu Protocolo de 1996, que adaptou os procedimentos originais de despejo com base nos de licenciamento ambiental. Talvez com o intuito de acelerar o processo, o Ministério do Meio Ambiente reuniu autoridades marítimas governamentais e não-governamentais, ambientalistas, cientistas e empresas privadas durante o “Seminário Internacional sobre Gestão e Controle de Resíduos e outras matérias que podem ser considerados para alijamento no mar” no Rio de Janeiro entre os dias 7 e 9 de março. O encontro foi financiado em parceria com a Petrobras, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA e o escritório da CL na Inglaterra.

“Pelas estatísticas da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) são cerca de 20 milhões de toneladas de “by-catch” (fauna acompanhante) da pesca de arrasto que são descartados de volta ao mar.”

O objetivo da reunião foi esclarecer os termos da CL para aqueles que estão envolvidos direta ou indiretamente com alguma atividade que provoca despejo e assentamento de resíduos sólidos ou líquidos no mar. Essa tarefa ficou por conta de convidados estrangeiros especialistas no tema. Como disse sabiamente Craig Vogt, dos EUA, “Diluição não é solução”. A CL entende que a contaminação é um processo crônico e cumulativo que precisa ser urgentemente controlado. O ordenamento do despejo começa com a classificação dos materiais candidatos a serem jogados ao mar de acordo com uma “lista negra”, uma “cinza” e uma 3ª lista na qual estão incluídos os materiais autorizados a serem despejados de acordo com os licenciamentos ambientais. A lista negra inclui materiais proibidos sob quaisquer circunstâncias, mesmo em quantidades mínimas. A lista cinza inclui alguns materiais que necessitam de permissão da Convenção para serem despejados em situações específicas. Podem ou não ser autorizados para despejo, desde que haja uma justificativa irrefutável para que não seja mantido em terra e desde que não contamine o local de despejo de modo a prejudicar irreversivelmente outras atividades ou a própria saúde humana. Estão incluídos nessa lista o despejo de sedimento dragado, esgoto, restos da pesca industrial, navios e plataformas obsoletas, restos de construção e estruturas metálicas diversas, as quais são julgadas de acordo com o impacto físico no mar, tais como alterações no regime hidrográfico, erosão, etc.

Mas nem tudo é perfeito. Pela própria definição da CL, despejo no mar é tudo o que é embarcado e despejado com o único propósito de se livrar do material. Está escrito na CL, em inglês claro e enxuto, que “dumping is deliberate disposal at sea of wastes loaded on board”. A lista cinza inclui entre outras coisas o resíduo dos navios-fábrica que processam o pescado a bordo, produzindo enlatados e produtos embalados prontos para serem comercializados. São conservantes e restos não aproveitados despejados no mar. De acordo com René Coenen, um dos executivos da CL, essa atividade gera cerca de 8 mil toneladas de resíduo orgânico no mar. Ora, isso não é nem 0,05% do descarte da pesca de arrasto que devasta há décadas as plataformas continentais ao redor do planeta.

Pelas estatísticas da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) são cerca de 20 milhões de toneladas de “by-catch” (fauna acompanhante) da pesca de arrasto que são descartados de volta ao mar. Trata-se de um despejo involuntário, porque a indústria pesqueira não associa esse fato ao despejo nos termos da CL. Todo o material capturado indiscriminadamente nas redes é içado para o navio e selecionado. Ou seja, é um material loaded on board. O resto é descartado. Esse despejo é muito mais grave do que os restos dos navios-fábrica. E essa falha da CL precisa ser urgentemente corrigida para que seus termos de referência sejam totalmente validados pela comunidade que depende da saúde dos oceanos para seu sustento e que se preocupa com a conservação dos ecossistemas marinhos.

 

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