Reportagens

Plantio sustentável de alimentos aponta possíveis soluções para as grandes cidades

Sistema de agroflorestas é utilizado em iniciativas socioambientais em Duque de Caxias e Magé, região metropolitana do Rio de Janeiro

Gabriel Tussini ·
9 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás

Como resolver a difícil equação da crescente demanda por alimentos com a falta de espaço para plantio nas metrópoles, marcadas pela crescente urbanização? A produção alimentícia parece uma realidade muito distante nas grandes cidades, onde normalmente se pensa que a comida que chega aos supermercados necessariamente percorre longas distâncias em caminhões desde plantações a milhares de quilômetros. Mas iniciativas realizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro mostram que os alimentos consumidos nas cidades podem ser produzidos mais perto do que se imagina.

O Sinal do Vale, ONG que se define como um “centro de regeneração” para pessoas, comunidades e ecossistemas, reúne um agrupamento de sítios que somam 200 hectares de terra no bairro de Santo Antônio, em Duque de Caxias (RJ), onde anteriormente havia plantações de café e extração de carvão. O local, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Petrópolis e a menos de 50 km do centro do Rio, foi fundado em 2012 pela empreendedora ambiental Thais Corral, sendo reconhecido pela UNESCO como um Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

Contando com uma estrutura administrativa formada por mulheres, o Sinal – acrônimo para Sincronicidade, Inovação e Alegria – prova que a produção alimentícia nas periferias dos grandes centros, com sustentabilidade ambiental, social e em larga escala, é uma realidade possível. A ONG, que pretende transformar sua área numa Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) no futuro, atua como uma incubadora de projetos sustentáveis que oferecem soluções baseadas na natureza para a região, como a Madre Frutos. Fundada e desenvolvida no Sinal em 2020, a cooperativa emprega 12 mulheres da região – mães solteiras em situação de vulnerabilidade social – para aproveitar algo que era visto como praga: a jaca.

Thaís Corral. Foto: Gabriel Tussini.

Abundante e sem freios para sua proliferação por ser uma espécie invasora altamente adaptável, as jacas costumavam ser vistas como um problema. A empresa ajuda a resolver esse problema colhendo as jacas ainda verdes, antes que caiam e espalhem sementes. Diversas partes da fruta são aproveitadas, gerando opções variadas de pratos nutritivos e orgânicos, dando uma opção de alimentação saudável e acessível para a comunidade do entorno. “Jaca é como boi”, define o chef de cozinha Vicente Esteves, em referência ao aproveitamento de praticamente todas as suas partes – e também à possibilidade de uso do fruto na substituição da carne.

Trabalhando no Sinal do Vale desde sua fundação, Vicente aprendeu a trabalhar com a jaca ali mesmo. Ele conta que não fazia ideia da variedade de pratos saborosos possíveis com o fruto. “Eu nem conhecia a jaca. Um amigo meu falou ‘Vicente, aqui tem tanta jaca… a gente podia aproveitar essa jaca pra fazer alguma coisa’. Eu disse que ele tava doido. Eu não queria nem pensar em mexer com jaca”, relembra. “Aí ele falou ‘vou fazer assim mesmo’ e sujou a panela toda com jaca. Deixou aquela melequeira lá. Aí eu pensei que era melhor eu mesmo tentar fazer”, conta.

A partir dessa experiência quase acidental, Vicente passou a se aprofundar nos pratos à base de jaca – uma nova especialidade que ele diz ter aprendido sozinho. “Fiz o primeiro prato, um estrogonofe de jaca. Nossa, eles comeram e falaram que eu nasci pra isso. ‘Você nasceu pra jaca!’. Aí falei que a partir daquele dia eu iria começar. Pode trazer!”, relembra o chef. Entre as variadas receitas que já preparou, ele cita bolinho de jaca, quibe de jaca, jacarão – basicamente uma moqueca de peixe, mas com jaca no lugar do peixe –, jaca gratinada, panqueca de jaca, rocambole de jaca e até carne assada (de jaca, é claro).

E é de fato muita jaca. A Madre Frutos, que colhe e processa o alimento, tem uma produção que chega a 20 toneladas por safra. As destinações são diversas: o consumo interno do próprio Sinal do Vale, com seus funcionários, voluntários e visitantes e restaurantes da região, além do que vai para venda na Feira da Mantiquira, no bairro vizinho de Xerém. Dessa forma, a companhia contribui para inserir a alimentação saudável no cotidiano da população, fazendo também girar a economia local. A companhia pretende expandir sua atuação para outros alimentos em breve.

Na cozinha do Sinal, a “filosofia” do preparo da comida no local é chamada de “Culinária Regenerativa”, por visar benefícios à saúde de quem consome e à Mata Atlântica ao redor. A prioridade do cardápio, 100% vegetariano, é para a produção nas hortas e agroflorestas locais. Vicente conta que no Sinal do Vale são cultivados, além da jaca, banana, milho, couve, alface, abacate, manga, rúcula e chicória, por exemplo. “A gente trabalhava até com carne. Então decidimos não ter mais carne e sermos vegetarianos. Pra gente se sentir melhor, né. Muitos problemas de saúde são por causa disso, a carne é gordurosa, a comida é gordurosa”, conta o cozinheiro. “Olha como que eu tô. Quem que fala que eu tenho 50 anos? Cozinha é saúde, a gente tem que cuidar muito”, defende.

Vicente Esteves, cozinheiro do local. Foto: Gabriel Tussini.

As agroflorestas, presentes no local, são um método de cultivo sustentável que une espécies nativas com os gêneros plantados, num sistema de sucessão ecológica – primeiro são plantadas espécies de crescimento mais rápido, mais resistentes ao vento e ao calor, que consolidam o local. Depois é a vez das que precisam de mais sombra e proteção. Dessa forma, cada espécie desempenha um papel crucial nesse sistema, que não utiliza produtos como agrotóxicos, por exemplo.

Segundo Eraldo – “nome brasileiro” pelo qual atende o alemão Horst Erhard Bernhard Kalloch –, dono de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural na cidade vizinha de Magé, as agroflorestas trabalham com plantios a curto, médio e longo prazo. “Quando eu planto rúcula, são 45 dias para colher. Abóbora, são 6 meses. Tangerina leva 4, 5 anos”, enumera. Ele conta que a bananeira é uma das primeiras espécies a ser plantada, pois dá frutos o ano inteiro e fornece sombra e água para outras espécies.

No processo de implementação da agrofloresta, conta Eraldo, a fauna local também é beneficiada. “Normalmente a gente planeja uma mistura de espécies frutíferas locais, para dar alimento à bicharada, às aves, e depois uma madeira que cresça muito rápido, que vai dar sombra e criar muita biomassa”, conta.

Para Mari Chiba, gestora de projetos regenerativos do Sinal do Vale, o modelo agroflorestal é uma solução aplicável também em outras regiões. “Você produz alimento sem desmatar, restaurando, numa outra lógica, que não é de monocultura”, cita. “Você planta milho, abacaxi, cúrcuma, banana… tem uma diversidade de alimentos, e ao mesmo tempo você está enriquecendo o solo ao invés da lógica contrária, que é de desmatar tudo e cultivar uma coisa só”, defende.

Segundo Mari, o local fica numa região com grande tendência de desmatamento e loteamento de terras, na fronteira entre a expansão urbana e alguns dos últimos remanescentes de Mata Atlântica no estado. “Então é crucial que a gente consiga cada vez mais ter sucesso em restauração”, frisa.

Mari Chiba. Foto: Gabriel Tussini.

Para Thaís Corral, fundadora do Sinal do Vale, o uso de espécies locais na alimentação é muito importante ambiental e culturalmente. Ela conta que a reserva utiliza alimentos não-convencionais que a Mata Atlântica oferece. “A gente faz esse experimento, do sistema de alimentação que representa aquilo que existe localmente”, conta. “Eu acho que a gente precisa resgatar esses sistemas de alimentação saudável, locais. Isso é a base da regeneração, criar economias regenerativas baseadas na produção de alimentos, no uso de alimentos locais”, defende.

Ela, que já trabalhou como radialista e participou da fundação de diversos projetos socioambientais voltados para mitigação das mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e direitos das mulheres, inclusive da fundação do Partido Verde, conta que teve a ideia de implementar o Sinal do Vale como uma forma de colocar em prática seus conhecimentos e contatos adquiridos ao longo de décadas de ativismo ambiental.

A área escolhida, que era formada por fazendas que foram sendo adquiridas e incorporadas aos poucos a essa iniciativa, estava degradada por séculos – desde a época colonial – pela produção cafeeira e extração de carvão, com pouca ou nenhuma preocupação ambiental. Thaís conta que só deixar a terra parada já foi suficiente para que a floresta começasse a voltar para a área, mas que o Sinal também trabalha ativamente para reflorestar grandes áreas – e dada a grande cobertura vegetal nos 200 hectares do local, tem tido sucesso. “Eu queria muito cuidar dos animais, da floresta, das pessoas, e onde você pode fazer isso melhor do que num lugar, numa fazenda, como o Sinal?”, explica.

Pelo Sinal do Vale passará, a partir do ano que vem, uma trilha de longo curso – o Caminho do Recôncavo da Guanabara, que ligará o sítio à Reserva Ecológica de Guapiaçu (REGUA), em Cachoeiras de Macacu (RJ). A trilha passará pela Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) El Nagual, no município vizinho de Magé. A reserva foi fundada por Eraldo, o alemão das agroflorestas, que se dedica ao local há mais de 30 anos. A RPPN funciona no modelo de Ecovila, em que um grupo de pessoas (ele, sua esposa e demais voluntários que passam por lá) vivem uma vida de baixo impacto ambiental, cooperação com a natureza e entre si, em estilo comunitário.

Ele, que é cozinheiro de profissão, conta que veio ao Brasil pela primeira vez aos 24 anos, em 1986, e acabou se apaixonando pelo país. Enquanto estava aqui, aconteceu o desastre na Usina Nuclear de Chernobyl, na Ucrânia soviética, e por medo da radioatividade ele acabou ficando por aqui. O fato do Brasil ter poucas chances de se envolver numa guerra pesou, segundo ele, que conta aos risos que seu irmão na Alemanha já ligou falando que vai morar com ele caso o presidente russo Vladimir Putin “faça alguma besteira”.

Amigo de longa data de Thais Corral, Eraldo é também um entusiasta das agroflorestas. Segundo ele, esse modelo é uma boa solução do ponto de vista ecológico, mas também econômico e social. “Aqui o que era comum, até 5, 6 anos atrás, era a horta de subsistência. Os pais plantam suas bananas e tiram as coisas para comer em casa. Mas é difícil chegar a um salário mínimo plantando só banana e aipim”, afirma. “Então você incrementa com coisas que tenham maior valor, como ervas medicinais. Remédio a gente normalmente compra na farmácia, mas a agrofloresta também é nossa farmácia”, frisa.

Eraldo em El Nagual. Foto: Facebook Reserva Ecovila El Nagual.

Outra possibilidade são os produtos derivados do que é plantado nas agroflorestas. “Eu gosto muito de plantar manjericão”, diz Eraldo. “E dele eu faço o pesto, que vendo diretamente para meus fregueses, que adoram. Então eu consigo aumentar bastante a minha renda fazendo produtos com a minha matéria-prima, do plantio. Eu faço pastas de aipim pra colocar no pão, super valor agregado. Manteiga de aipim, cada pote a 20 reais e um quilo de aipim dá cinco potes. Bastante valor”, detalha.

Segundo ele, esse modelo permite colher diferentes gêneros alimentícios ao longo do ano, sempre em equilíbrio com a natureza. “Na agrofloresta a gente faz manejo permanentemente. No mínimo a cada 3 meses a gente dá uma olhada, pra fazer uma colheita e plantar novas coisas no meio. E a coisa boa nesse tipo de plantio é que a gente cria alimento, então não precisa esperar muito até uma coisa que vai dar lucro”, diz. “Vou plantar tangerinas. Entra a muda e a minha primeira colheita vai ser daqui a 5 anos. Mas antes disso estarei colhendo hortaliças, aipim, milho, abóbora… e todas essas frutas dão seu excesso de biomassa para adubar as próximas”, explica.

Essas experiências na Baixada Fluminense, uma região geralmente conhecida pela sua expansão urbana, pelos problemas socioeconômicos e pouco conhecida pelas suas áreas verdes, mostram que é possível unir alimentação saudável, plantio sustentável e desenvolvimento econômico para a região. A poucos quilômetros da capital, mas longe da profusão de ultraprocessados que marca a alimentação nas grandes cidades, as iniciativas de Thais e Eraldo apontam para um caminho de mais benefícios à saúde e harmonia com a natureza, sem pesar tanto no bolso – e gerando oportunidades de geração de renda.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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