Contam que o médico sanitarista Mario Magalhães da Silveira – companheiro de toda vida da inesquecível psiquiatra junguiano-sertaneja Nise da Silveira – tinha uma sábia orientação para todos os jovens autores que o procuravam para pedir avaliações e conselhos sobre a possibilidade de publicar seus manuscritos. Ele falava longamente sobre a importância das árvores e os benefícios que elas traziam para o ser humano. E concluía com um discurso dramático sobre a cautela e parcimônia que deveríamos ter ao transformar árvores em papel. Era preciso que os livros publicados compensassem realmente uma tão grande perda. Suas palavras, ao que parece, surtiam efeito. Muitos desistiam dos planos de publicação (ou pelo menos os adiavam por longo tempo). De quantos equívocos e mediocridades estaríamos livres se todos seguissem este conselho ecologicamente correto?
Existem livros, no entanto, que passam com admirável louvor pelo teste de Mário. Que valem cada pedaço de árvore perdido. Que ajudam uma sociedade a se autoconhecer, a visualizar a essência do seu passado e meditar com seriedade sobre o seu futuro. Que abrem novos caminhos de investigação e novos horizontes de compreensão. Um destes livros, escrito pelo historiador norte-americano Warren Dean, foi publicado há exatamente dez anos, na sua edição original em inglês, com o título de With Broadax and Firebrand: The Destruction of the Brazilian Atlantic Forest (University of Califórnia Press) (1). Não tenho duvidas de que Mario o recomendaria com entusiasmo, até mesmo por ser um dos poucos livros de história do Brasil que fala o tempo todo em árvores. E mais ainda, que coloca a floresta, para além das árvores isoladas, no lugar central em nossa história de onde ela nunca deveria ter sido retirada.
Uma operação analítica deste tipo não deveria causar espanto no único país do planeta com nome de árvore. Um país que há apenas 500 anos, quando os europeus aqui chegaram pela primeira vez, tinha quase todo o seu gigantesco litoral leste coberto por 130 milhões de hectares da mais preciosa Floresta Tropical, ou melhor, do mosaico de florestas que hoje conhecemos pelo conceito unificador de Mata Atlântica. Esta onipresença das florestas e do desflorestamento na formação do território brasileiro não passou despercebida dos nossos melhores historiadores. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, entre outros, dedicaram páginas memoráveis ao tema. Mas nenhum deles assumiu o desafio de escrever um painel tão vasto, completo e iluminador sobre o lugar da floresta nos diferentes momentos da história brasileira.
Como geralmente acontece com os grandes livros, “A Ferro e Fogo” foi elaborado através de um longo artesanato, que envolveu não apenas uma minuciosa pesquisa bibliográfica e documental como também, o que é bem mais raro no trabalho dos historiadores, inúmeras viagens de campo para conhecer pessoalmente os remanescentes da Mata Atlântica e desvendar as dinâmicas de destruição da vegetação nativa nas diferentes regiões do país. Warren Dean sabia que esta seria a sua obra-prima e não teve pressa em concluí-la antes do tempo. Quando eu o conheci, por volta de 1981, já estava trabalhando na sua grande história da nossa floresta oriental. Lembro-me de ter percebido, desde o primeiro momento, a grande relevância do tema e de ter comentado com o autor que esta era uma outra maneira – uma maneira realmente inédita – de relatar a história do Brasil (levando em conta que a ocupação mais intensa da Amazônia e do Cerrado é uma realidade das derradeiras décadas do século XX). Se considerarmos que o livro foi publicado apenas em 1994, vamos encontrar nas páginas de “A Ferro e Fogo” mais de 13 anos de um trabalho árduo e paciente, muitas vezes interrompido por outras demandas profissionais, mas sempre retomado com um certo sentido de destino. E este último se apresentou de maneira trágica e irônica. Warren faleceu estupidamente logo após a conclusão do livro – intoxicado em pleno sono por um escapamento de gás no aparelho de calefação de um hotel de Santiago do Chile. É como se a vida do autor atingisse o seu termo junto com a consumação de sua principal obra. Neste ano de 2004, portanto, estamos comemorando conjuntamente dez anos de “A Ferro e Fogo” e dez anos sem Warren Dean.
Se os frutos de “A Ferro e Fogo” não puderam ser colhidos por seu autor, contudo, os leitores brasileiros poderão fazê-lo, tanto em termos científicos quanto políticos. É gentil pensar que um historiador estrangeiro, que tanto se dedicou ao Brasil, possa ter deixado este legado para os brasileiros: um instrumento para conhecer, e na melhor das hipóteses transformar, sua relação com o magnífico território que as vicissitudes da história colocaram em nossas mãos.
Eu tenho a fantasia de que cada jovem brasileiro que chegasse aos 15 anos de idade, como se fosse um rito de passagem, recebesse uma cópia de “A Ferro e Fogo”, para saber como era exuberante a porção oriental de sua casa histórica, de modo a poder compará-la com a (quase sempre) triste paisagem que hoje se apresenta. Como foi possível destruir em alguns séculos essa gigantesca floresta, da qual hoje restam apenas 7% da cobertura original? Como foi possível transformar um cenário tão belo, diversificado e fértil em vastas e monótonas extensões de terras desnudadas, ressecadas, erodidas e cicatrizadas (mesmo com as honrosas exceções que servem para vislumbrar a beleza perdida)?
Sei bem que é utópico imaginar, em um país onde só agora o hábito da leitura começa realmente a se disseminar, um rito de passagem que envolva o enfrentamento de 484 páginas. Por essa razão resolvi prestar um serviço de utilidade pública. Como chamariz para os interessados – e concessão aos realmente apressados e aos legitimamente preguiçosos – publicarei aqui n’OECO uma série de 4 artigos onde buscarei sintetizar os pontos mais importantes do livro. Ou seja, apresentarei, com base nas extensas pesquisas de Warren Dean, os aspectos centrais da relação entre seres humanos e Mata Atlântica em quatro momentos da história do Brasil: 1) As sociedades indígenas e a montagem inicial do sistema colonial, 2) O sistema colonial maduro e o período monárquico, 3) A república até a década de 1930 e 4) As últimas décadas do século XX.
Se for demasiado pedir que todos leiam o livro e o encaminhem para os mais jovens, que pelo menos assim o façam com o seu resumo. Estejam certos que não será perda de tempo. O prêmio será o entendimento de uma verdade cristalina: o Brasil está condenado, mais ainda do que muitos outros países, a ter o debate ecológico no centro de qualquer reflexão séria sobre o seu passado e, principalmente, sobre o seu futuro.
P.S. Melancólico: Se os leitores desse artigo atendessem ao chamado para ler e divulgar “A Ferro e Fogo”, teriam grande dificuldade em encontrá-lo. Por falta de interesse dos compradores, e principalmente falta de visão e excessivo comercialismo da editora, o livro está esgotado e sem previsão de ser reeditado (depois de ter recebido quatro reimpressões desde a primeira tiragem em 1998). Após o que foi dito acima, fica até difícil comentar esse fato. Não reimprimir um livro tão extraordinário, um instrumento tão importante para pensar o destino da nossa sociedade, é um indicador de impotência cultural que a inteligência brasileira não deveria aceitar calada.
1. A tradução foi publicada em 1998 no Brasil com o titulo de A Ferro e Fogo: A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira (São Paulo, Companhia das Letras).
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