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A natureza não pede licença

As tsunamis deveriam suscitar em todos nós, que compartilhamos a condição humana, uma meditação profunda sobre esta realidade espantosa que chamamos “natureza”

14 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
Vilarejo destruído pelo tsunami em Sumatra. Foto: Philip A. McDaniel/Wikimédia.

“Physis, os romanos a traduziram por natura. Natura, de nasci, nascer, originar de. Natura: aquela que deixa alguma coisa originar-se de si mesma”. Com essas palavras Martin Heidegger deu início a uma das mais profundas reflexões filosóficas sobre o significado da natureza produzidas no século XX (publicada em 1958 com o título de “Sobre a essência e o conceito da Physis na Física de Aristóteles”).

Os impressionantes acontecimentos que tiveram início no último dia 26 de dezembro, desencadeados pelo terremoto de 9 graus de magnitude ocorrido na costa da Indonésia, deveriam suscitar não apenas nos filósofos, mas em todos nós que compartilhamos a condição humana, uma meditação igualmente profunda, a mais profunda possível, sobre esta realidade espantosa e complexa que chamamos de “natureza” e sobre a forma pela qual nela estamos inseridos. E isso tanto no que se refere ao pertencimento obrigatório e inescapável que vivenciamos pelo simples fato de sermos animais, de existirmos como realidade biofísica, quanto no que tange àquele tipo de interação consciente, de novo modo de relacionamento socioeconômico e ecológico que precisamos construir no século XXI, se quisermos garantir a continuidade da civilização humana no planeta.

Dos muitos temas possíveis para essa meditação, dois me parecem, de início, fundamentais: 1) O reconhecimento de que a natureza existe por si mesma, não pedindo licença aos seres humanos para manifestar-se e movimentar-se; 2) O reconhecimento de que a natureza, em suas múltiplas manifestações e diferentes níveis de organização, não é um cenário pronto, passivo e estável onde nós humanos encenamos nosso teatro de sangue e (algumas) luzes, mas sim o incessante desenrolar-se uma história antiquíssima, em pleno acontecer, e que nos reserva insondáveis surpresas para o futuro.

Sobre o primeiro tema, vale a pena recuperar a definição clássica apresentada por Aristóteles, com o qual Heidegger soube estabelecer um rico diálogo. O ponto central está presente na citação feita acima. A natureza nasce e existe por si mesma, origina-se de si mesma. As coisas que “existem, ou vêm à existência, através da natureza”, especificou o filósofo grego, talvez o mais importante codificador original das categorias do pensamento ocidental, “possuem dentro de si mesmas o princípio do seu movimento e mudança”.

Quando o observador humano contempla a realidade da existência, percebe que a esmagadora maioria das coisas que existem, incluindo os fundamentos do edifício material que permite que elas existam, não são criações humanas. Ou seja, para o observador humano elas existem por si mesmas e a partir de si mesmas. As espirais das galáxias, a textura das plantas, as fontes e cursos de água, a fisiologia dos organismos – incluindo, por certo, o nosso próprio corpo mamífero e primata – nada disso é criação humana. Sua existência, seu desenho e seu movimento independem do nosso arbítrio. Ao contrário, nós é que somos uma das criações – ou consequências – deste gigantesco processo. Mais ainda, mesmo aquilo que criamos, nossas tecnologias e artefatos, precisa nascer do encontro entre duas realidades que fazem parte da natureza: nosso corpo/cérebro e a imensa gama de elementos materiais existentes na Terra. Olhamos um avião supersônico e dizemos “nada aqui é natural”. Mas o fato é que cada pequena parte da matéria daquele avião teve necessariamente que se originar da natureza, assim como as leis físicas que permitem o seu voo. E isso sem mencionar a matriz inspiradora de sua forma, como um grande pássaro metálico.

“Se o planejamento de nossa vida coletiva pudesse incorporar plenamente o sentido prático desta simples verdade – a natureza não existe por nós ou para nós – estaríamos dando um passo essencial rumo à sustentabilidade”.

O espanto conceitual, ou talvez fosse possível dizer a magia, da palavra “natureza”, está justamente em unificar em quatro sílabas todas as incontáveis manifestações dessa realidade que não é criação nossa. O Big Bang, o gato da casa, as florestas tropicais, o vírus da gripe, o corpo de Gisele Bündchen e as tsunamis da Ásia encontram sua unidade conceitual nessa palavra “natureza” que Raymond Williams chamou de “provavelmente a mais complexa da linguagem humana, uma palavra que carrega, através de um longo período, muitas das maiores variações do pensamento humano”.

Se o planejamento de nossa vida coletiva pudesse incorporar plenamente o sentido prático desta simples verdade – a natureza não existe por nós ou para nós – estaríamos dando um passo essencial rumo à sustentabilidade. Apesar da arrogância e desmesura da civilização industrial, é forçoso ter a humildade de reconhecer que as manifestações da natureza derivam de seus próprios movimentos auto-organizadores, existem por si mesmas. Podemos meditar sobre as origens físicas ou metafísicas desses movimentos, mas certamente eles não existem em função de nossos desejos e anseios: eles não nos pedem licença para acontecer. Nossa vida é um constante diálogo e interação com matérias e dinâmicas que não escolhemos e dos quais dependemos, no sentido mais fundamental da palavra.

Um segundo tema que precisa ser debatido, superando visões superficiais bastante arraigadas na consciência comum, é o de que os cenários da natureza não devem ser vistos como perfeitos e acabados, mas como uma longa construção histórica e evolucionária, um mosaico cuja única realidade imutável é a da permanente mudança. Cada vez mais, no horizonte da ciência contemporânea, tudo é história. O velho historiador William McNeill, decano da “world history” norte-americana, escreveu recentemente que na sua juventude as ciências físicas e biológicas pareciam duras, sólidas e definitivas, enquanto que a história e as ciências sociais eram fracas e incapazes de predizer a realidade. Na virada do milênio, por ironia, as ciências naturais foram se tornando cada vez mais historicizadas, abertas e “fracas”, entendendo as formações da natureza como configurações momentâneas de uma história de transformações cujo destino é desconhecido, mesmo que muitas vezes elas pareçam infinitamente longas diante do limitado tempo da vida humana.

Nos últimos dois séculos as ciências físicas e biológicas viveram uma verdadeira revolução cronológica, passando a trabalhar com escalas de tempo extraordinárias. Hoje se considera uma história cósmica de 15 bilhões de anos, uma história geológica de 4,5 bilhões e uma história biológica (restrita ao que sabemos da Terra, obviamente) de 3,5 bilhões de anos. É irônico que nesse contexto intelectual revolucionário a pesquisa e o ensino da história e das ciências sociais insistam em manter-se, quando muito, no que até o século XIX, e ainda hoje em alguns círculos fundamentalistas, pode ser definido como “horizonte bíblico” da história (da ordem dos 6.000 anos). A paleontologia e a antropologia física estão situando a emergência do humano na Terra em um marco de pelo menos 2,5 milhões de anos, se tomarmos como base o aparecimento do Homo Habilis na África Central. Para a maioria dos historiadores, no entanto, o que está além do horizonte dos 6.000 anos é classificado no estranho e duvidoso conceito de “pré-história”. Como se a trajetória dos seres humanos não fosse toda ela fundamental para nos definir como hoje somos.

“A paleontologia e a antropologia física estão situando a emergência do humano na Terra em um marco de pelo menos 2,5 milhões de anos, se tomarmos como base o aparecimento do Homo Habilis na África Central. Para a maioria dos historiadores, no entanto, o que está além do horizonte dos 6.000 anos é classificado no estranho e duvidoso conceito de “pré-história”.”

A história cósmica, que deu origem a cerca de 100 bilhões de galáxias, está em plena atividade. Os ciclos de existência das estrelas, das gigantes vermelhas aos buracos negros, está ocorrendo nesse instante em incontáveis lugares do cosmos. O Sol e a Terra existem em um rincão do universo que apenas para nós é o que existe de mais importante. Eventualmente aparecem notícias sobre possíveis choques de corpos celestes com o nosso planeta. Um desastre cósmico deste tipo, imensamente mais impactante do que o terremoto que tanto nos impressionou, faz parte do jogo de possibilidades da história (realmente) universal. A verdade é que diante da magnitude gigantesca da história cósmica, todos os sonhos e criações humanas “podem estar por um segundo” (pedindo licença ao Gilberto Gil ).

Da mesma forma, a longa história geológica do planeta, como acabamos de constatar tão dolorosamente, encontra-se em plena atividade. O desenho dos continentes variou bastante na longuíssima duração. Há 200 milhões de anos atrás, por exemplo, os atuais continentes do planeta estavam agregados numa grande massa central que hoje se convencionou chamar de Pangeia. A separação completa entre a África e a América do Sul, fundamental para a atual configuração das terras e oceanos, definiu-se apenas há cerca de 90 milhões de anos. Esta dança dos continentes continua. O choque entre placas tectônicas que deu origem aos tsunamis é parte deste movimento endógeno sobre o qual não temos qualquer controle.

O mesmo pode ser dito da história da biosfera terrestre, que nasce com o aparecimento de organismos unicelulares há cerca de 3,5 bilhões de anos antes do presente. Hoje, devido ao enorme crescimento da tecnosfera humana sobre a paisagem, o cenário do planeta está dominado pelos mamíferos. Mas há 80 milhões de anos este era um planeta dos répteis, com uma paisagem dominada pelos grandes dinossauros. Os mamíferos que então existiam ocupavam uma posição muito secundária no panorama terrestre, e nós humanos, que muitos julgam ser o motivo de existência de todo este longo processo natural, simplesmente não existíamos. Das espécies surgidas na extensa história da Terra, cerca de 99% foram extintas pelo movimento da própria natureza.

Seja na escala global, ou através de inúmeros exemplos locais, que não poderiam ser enumerados aqui, os cenários da natureza – com seus biomas, ecossistemas e diferentes formas de vida – estão sempre em transformação, seja por fatores naturais ou, como ocorre cada vez mais nos últimos milênios, pela escalada da intervenção humana. Os movimentos humanos ao longo do tempo ocorrem em conexão com – ou melhor dizendo, através de – movimentos biofísicos maiores. O dinamismo humano é uma variação, dotada de qualidade especiais que devem ser ressaltadas, do dinamismo maior da natureza. Uma atitude sábia e pragmática, portanto, considerando-se a complexidade e magnitude do que chamamos de natureza, seria a de reconhecer que nós é que devemos nos adaptar inteligentemente aos padrões e movimentos naturais, superando a ilusão de que eles devem adaptar-se aos nossos desejos e objetivos.

“Nós humanos, assim como todos os seres vivos, não somos passivos. Ao contrário, sempre modificamos e modificaremos o meio onde nascemos e vivemos”.

É importante entender bem este ponto. Nós humanos, assim como todos os seres vivos, não somos passivos. Ao contrário, sempre modificamos e modificaremos o meio onde nascemos e vivemos. A tecnologia industrial nos permite intervir de maneira especialmente forte no jogo de configurações que surgiu do longo processo evolucionário. Mas essa intervenção tem custos ecológicos que nem sempre fazem parte dos nossos cálculos. É possível, tecnologicamente, transformar uma área desertificada em uma floresta, mas para isso é preciso consumir uma grande quantidade de energia e de recursos que precisam ser retirados de outros lugares do planeta, resultando em danos ambientais e despesas econômicos. O mais inteligente é conservar as florestas que existem por si mesmas, adaptando a geografia de nossos assentamentos e atividades ao imperativo de conservá-las.

É preciso reconhecer – inclusive para evitar generalizações românticas sobre uma natureza voltada para o cuidado imediato e sentimental com o ser humano – que os movimentos da natureza muitas vezes não nos são favoráveis, pelo menos segundo o critério daquilo que costumamos considerar como os objetivos da vida humana. A história geológica e biológica acontece por si mesma, mesmo que no caminho das ondas impetuosas de um maremoto ou da expansão de um vírus existam milhões de vidas humanas. Mas, em sentido geral, esses movimentos e sistemas criaram na Terra o que James Lovelock chamou de uma condição “próxima da perfeição para a existência da vida”. Pelo simples fato de permitir a existência de uma biosfera eles nos são altamente favoráveis. O longo aprendizado evolucionário costuma ser bem mais eficaz, em termos de construção da vida, do que a nossa visão parcial sobre como deveria ser a realidade.

De toda forma, seja para reduzir o impacto dos desastres que a história da natureza pode lançar sobre nós, seja para evitar ao máximo os desastres que a nossa própria história pode provocar sobre o planeta, e portanto sobre nós mesmos, é preciso repensar as questões do meio ambiente, da conservação e da sustentabilidade a partir dos novos conhecimentos, tecnologias e contextos históricos surgidos com o avanço do processo de globalização. A explosão de temas biofísicos na cena política contemporânea – tsunamis, perda de biodiversidade, aids, transgênicos, aquecimento global, terrorismo biológico – está aí para mostrar que no universo da modernidade a natureza será uma questão cada vez mais fundamental e candente. Como disse Michel Serres, no mundo da informação globalizada “irrompe em nossa cultura – que dela sempre formou uma ideia local e vaga, cosmética – a natureza”.

 

*Editado às 18h50, do dia 22/03/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.

 

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