É verdade que a colunista Flavia Velloso, mineira criada no Rio de Janeiro e hoje moradora de São Paulo, está se queixando da qualidade do ar da maior metrópole brasileira. Ela, como metade dos brasileiros, mora em cidades com alto grau de poluição do ar, conforme diagnosticou o documento Perfis dos Municípios Brasileiros, do IBGE. Nas grandes cidades, os automóveis são os principais responsáveis pela poluição do ar, e em pequenos e médios municípios a situação se inverte: é a poeira das ruas sem pavimentação que responde pela maior causa de poluição do ar. Curiosamente, poeira no Brasil urbano polui mais do que atividade industrial.
Mas a minha defesa de São Paulo está inspirada na comparação com o decadente balneário carioca, o Rio de Janeiro. A capital paulista é, a princípio, um lugar inóspito para quem gosta de verde, meio ambiente e sossego. A imagem é a da cidade antítese do Rio, esta sim um lugar privilegiado pela natureza, cercado de mar e montanha. O mito cai por terra quando se constata que, segundo o mesmo estudo do IBGE, os cariocas vivem num estado no qual 77% das cidades registram poluição na água, resultado do esgoto jogado nos rios e lagoas.
Mais um item sempre favoreceu o Rio em relação a São Paulo: a maior cidade da América Latina, que em 2005 ultrapassa a Cidade do México em número de habitantes (18 milhões lá, para 19 milhões aqui, dados da ONU em documento da Cepal), tem um trânsito infernal, no qual se contabiliza engarrafamentos em centenas de quilômetros. A (falsa) idéia é que no Rio de Janeiro as distâncias são curtas, os tempos de percurso, rápidos e o trânsito, bom. E justamente por não reconhecer o excesso de carros nas ruas e o trânsito caótico tem se tornado uma ameaça à cidade que o Rio está virando um lugar pior do que São Paulo para se movimentar.
O melhor exemplo são os motoboys. Qualquer paulistano dirá que eles fazem o horror do trânsito paulistano. Como bem mostra o documentário de Caito Ortiz (Motoboy, vida louca), o bom funcionamento da cidade de São Paulo depende desses garotos, às vezes nem tão jovens assim, que passam a vida sobre uma pequena motocicleta, cruzando as ruas atrás de prazos e destinos impossíveis. Mas existe um pacto entre os carros e eles: os motoboys andam sempre entre as pistas do centro e da esquerda. Coisa que não é possível no Rio por várias razões: a primeira delas, a constatação de que na grande maioria das grandes vias não há três pistas, apenas duas. Até aí, seria fácil. O motoboy poderia circular na mesma faixa entre direita e esquerda.
O problema é que o Rio de Janeiro abandonou – se é que um dia teve – todos os códigos de conduta. Funciona mais ou menos assim: como motoqueiro virou quase sinônimo de ladrão, quando um motoboy cerca o seu carro seja lá por que lado for, agradeça pelo fato de não ser um assaltante e não se preocupe se a moto está do lado errado da pista. Terra sem lei, não apenas pelo descaso do prefeito – a governadora é ocioso citar – , mas sobretudo porque se perderam, nas tramas que unem violência e degradação urbana, os pactos entre os cidadãos. É o que faz com que, no Rio de Janeiro, ninguém respeite, por exemplo, regras básicas de trânsito: não fechar o cruzamento, não buzinar, parar no sinal fechado, não arrancar quando o sinal abre se ainda houver pedestres cruzando a faixa.
São quase 10 milhões de cariocas barulhentos e agressivos, no trânsito ou nas calçadas. Quem sofre é o meio ambiente urbano, essa categoria que mede a qualidade de vida numa cidade não apenas pelos indicadores do IBGE, mas pelo grau de hospitalidade que o lugar oferece. O Rio de Janeiro está se tornando uma cidade desagradavelmente hostil, e o mesmo não se pode dizer de São Paulo, onde a consciência de que qualquer deslize leva ao caos completo faz com que os moradores sejam muito mais respeitosos dos limites individuais, das regras coletivas e dos códigos mínimos de boa conduta. Eu, que como a Flávia sofro de alergia respiratória, resolvi escrever este elogio a São Paulo como um desabafo de quem também não consegue mais respirar por aqui.
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