Você conhece a Simopelta mínima? Nós também não. E pior: nem teremos a chance de conhecer. Ela era uma formiguinha da região de Ilhéus, no sul da Bahia, que foi coletada em duas oportunidades e numa única localidade há 15 anos. O que aconteceu? Não é novidade. Essa área natural foi destruída ou, se você preferir, “limpa”, no eufemismo do agrobusiness. Este relato está no excelente trabalho União pela Fauna da Mata Atlântica explicando que “apesar da constante coleta de amostras na região na última década, a espécie nunca mais foi encontrada”. Extinta, sumiu, escafedeu-se, ou seja, nós nunca mais saberemos a história que a Simopelta mínima tinha para nos contar.
O drama da extinção dessa formiga seguramente não é único. Os invertebrados recebem menos atenção da opinião pública e até mesmo do meio acadêmico, mas representam mais de 95% de todas as espécies animais – enquanto o número conhecido de espécies de mamíferos e pássaros está em torno de 5 mil e 10 mil, respectivamente, o de insetos está em torno de um milhão. E o número preciso ainda permanece uma incógnita. Por exemplo, somente agora começaram a ser descobertas espécies de insetos que vivem no dossel das árvores, que possuem microclimas totalmente diferentes das camadas inferiores e, por isso, induz a uma adaptação diferenciada. Isso significa também que não é contado o número de espécies que já desapareceram por causa da perda de habitats. Por acaso do destino, alguém fez a coleta e descobriu a Simopelta mínima. Quantas outras espécies não tiveram o consolo de, ao menos, ter seu desaparecimento registrado?
Não pense que isso é um problema restrito aos meios científicos – insetos como as formigas podem trazer inúmeras contribuições para o nosso cotidiano. Por viverem em comunidades muito densas, por exemplo, as formigas acabam produzindo naturalmente substâncias antibióticas que protegem seus ninhos, e que podem ser bastante úteis no desenvolvimento de fármacos. Não sabemos se nossa amiga Simopelta mínima produzia alguma substância para sua defesa, mas sabemos que animais peçonhentos, por exemplo, são altamente importantes para a pesquisa médica. O mesmo manual da União pela Fauna da Mata Atlântica também explica que o tráfico de animais para pesquisas (ilegais) de substâncias de valor para as indústrias química e farmacêutica está aumentando consideravelmente.
Por enquanto, o destaque ainda permanece com os vertebrados: “Só o mercado mundial de anti-hipertensivos movimenta cerca de 500 milhões de dólares por ano. O princípio ativo desses medicamentos é extraído de serpentes brasileiras, como a jararaca (Bothrops jararaca), que tem o grama de seu veneno cotado a U$ 433”. Mas com o avanço científico, não há dúvida que descobertas semelhantes também sairão dessas pequeninas criaturas que desde criança aprendemos a encarar como “animais nocivos ao homem”, e estamos destruindo um precioso estoque potencial de bem-estar para as próprias sociedades humanas sem mesmo saber que eles existem…
No mesmo dia em que ficamos sabendo do infortúnio de nossa formiguinha, estava no jornal que o Presidente da República cedeu ao “tratoraço” do lobby ruralista – uma manifestação organizada pelas associações patronais da agricultura que ameaçou invadir o Palácio do Planalto com tratores – e estabeleceu uma série de concessões ao setor rural. O que isso tem a ver com o desaparecimento de espécies como a Simopelta? Por incrível que pareça, tudo!
O “tratoraço” conseguiu, entre outras coisas, 3 bilhões de reais para renegociar as dívidas dos agricultores. Entre os argumentos utilizados está a queda de preços dos produtos agrícolas. Mas isso acaba realimentando a política autofágica de expansão ilimitada da oferta: o governo incentiva o aumento da produção por uma série de políticas, inclusive as recentemente propostas, e pela velha lei da oferta e da procura, o preço acaba caindo. Os lucros, antes elevados, diminuem até chegar no vermelho. Aí funciona uma outra velha lei, mais específica do capitalismo brasileiro: o lucro é privado, mas o prejuízo é coletivo.
É importante lembrar que não somos contra a agricultura e os agricultores – acreditamos firmemente na importância econômica e social desse setor. Não é errado o governo incentivar a atividade produtiva – muito mais saudável do que manter o parasitismo dos que vivem das “tetas gordas” dos juros da dívida pública (a conseqüência ambientalmente perversa das altas taxas de juros é assunto para outra coluna). O problema é o modelo adotado para incentivar o setor: ao invés de trabalhar para aumentar a quantidade de grãos via expansão da fronteira, que acaba sempre resultando na queda de preços, seria mais inteligente incentivar a produção diferenciada, onde se pode agregar mais valor aos produtos. É o caso dos produtos orgânicos, que além de gerarem mais valor por unidade, empregam mais gente no processo produtivo.
O mesmo raciocínio serve para a discussão dos organismos geneticamente modificados (OGMs). Como o exemplo da soja: ao invés da estratégia de baratear os custos de produção pela adoção de sementes geneticamente modificadas e, assim, vender a soja ao preço mais baixo possível, podemos conquistar os mercados emergentes dos consumidores exigentes que, provavelmente, estarão dispostos a pagar mais por um produto natural, livre de manipulações em seu DNA. O consumidor europeu ainda vive o trauma da síndrome da vaca louca: até 1995, o Governo Britânico jurava de pé junto que não havia evidência científica que a doença poderia ser transmitida aos seres humanos.
Um argumento semelhante dos pró-OGM: não há problema em consumi-los, enquanto não se descobrir se fazem mal ou não. Teve até um Ministro da Agricultura na TV, na época, dando um hambúrguer para sua filhinha para mostrar que não havia nada de errado (bom, é melhor não dar idéias assim pro Ministério brasileiro…). Até que um belo dia a suspeita se transformou em proibição de importação de carne bovina britânica, e a pecuária de Sua Majestade foi parar no brejo.
Vale relembrar o que disse Paulo Choji Kitamura, Chefe-Geral da Embrapa Meio Ambiente, durante o VIII Congresso Brasileiro de Defesa do Meio Ambiente no mês de junho: “A produção agrícola brasileira pode continuar aumentando sem derrubarmos uma única árvore a mais”. Ele estava ressaltando, além dos ganhos de produtividade, a enorme quantidade de terras que já foram desmatadas e que são mal empregadas ou simplesmente abandonadas. Mas no mundo das decisões políticas, que contraste… O Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), maior levantamento de informações sobre a agricultura no Brasil, corre o sério risco de não ser mais realizado por falta de verbas (em economês, contigenciado para aumentar o superávit primário). Quer dizer, para fazer o principal estudo sobre o que está acontecendo no campo brasileiro – inclusive identificando as áreas ociosas ou mal aproveitadas – não tem dinheiro, mas para outras coisas…
E as formigas? A maioria das espécies desaparece anonimamente quando seus habitats naturais são destruídos. No Brasil do século 21, isso ainda é chamado pelo eufemismo de “alargamento da fronteira de produção”. Mas todo mundo conhece mesmo pelo seu nome popular: desmatamento. Provavelmente a Simopelta mínima desapareceu do sul da Bahia quando a crise do setor cacaueiro levou ao desaparecimento do sistema agroflorestal da cabruca, no qual o cacau era plantado sem a remoção da Mata Atlântica. Essas áreas passaram a ser convertidas para pecuária ou cultivo, e por isso essa região acabou sofrendo taxas altíssimas de desmatamento. Sem dúvida nenhuma, eis o principal suspeito para o desaparecimento de nossa formiga.
Se La Fontaine tivesse baseado sua fábula na Simopelta mínima, escreveria “era uma vez uma formiga…”, e teria parado por aí mesmo.
*Carlos Eduardo Young é economista, professor de Economia do Meio Ambiente da UFRJ e Doutor em Economia pela University College London.
*Priscila Geha Steffen é paranaense, jornalista ambiental e também colunista de música brasileira do Jornal do Estado, no Paraná.
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