Esta coluna vai ser um exercício para vocês, pois ela será publicada no meio do tórrido verão brasileiro. No entanto, eu moro no Hemisfério Norte e escrevo ainda no meio do outono, mas já será inverno quando vocês a estiverem lendo. Caminhamos para dias cada vez mais curtos até chegar no começo do inverno, o chamado Solstício de Inverno, dia 21 de Dezembro (o dia mais curto do ano). Dali para a frente, os dias começarão novamente a se ‘alongar’, chegando ao pico no Solstício de Verão, dia 21 de Junho, dia mais longo do ano.
Se isto não faz tanta diferença no Brasil, aqui chega a ser de cerca de 10 horas de luz (ou escuridão) entre o verão e o inverno. Para brasileiros, é muita coisa e acabamos sentindo isso no nosso humor, disposição e vontade de fazer (ou não) as coisas mais banais do dia-a-dia. Nunca achei que me importaria com isso e já experimentei dois Solstícios de Verão em países ainda mais ao norte que Calgary: Finlândia e Alasca, EUA. Em ambos, tive praticamente 24 horas de luz, com um breve período de lusco-fusco, quando aproveitávamos para dormir. No Alasca, estava escalando o McKinley e deixei a lanterna de cabeça no hotel, por absoluta falta de necessidade!
Mas faz diferença sim. E muita, mesmo morando em Alberta e tendo boa parte do inverno com céu azul e sol brilhando forte (mas nunca a pino!). Outra coisa que faz diferença e é o motivo da minha coluna deste mês, o frio. Uma frase famosa por aqui diz que não existe muito frio, o que existe é pouca roupa ou roupa inadequada. No início da minha segunda temporada fria, descobri que adoro o frio mas odeio, claro, sentir frio – existe uma diferença imensa entre os dois!
Quinze expedições a montanhas geladas, incluindo temperaturas de -30°C e -40°C DENTRO da barraca, me ensinaram alguma coisa. Aprendi a me vestir – é bem verdade que aprendi a me vestir com roupas de expedição, que não usamos na cidade. Mas aprendi também a idéia da “coisa” e procuro reproduzi-la aqui, no dia-a-dia. Acabamos de sair de uma semana onde a sensação térmica chegou a -40°C e a temperatura média deve ter beirado os -25°C. Fez muito frio. Não à toa, esta é a época da epidemia de gripe: é um eterno entra e sai de lugares ultra-aquecidos!
E é aí que a experiência de montanha conta pouco – lá, não temos lugares aquecidos. Nunca. Muito menos banhos quentes. Aqui é quase um refresco. Tá frio? Mas você já vai chegar em casa, que está quente, e vai tomar um banho pelando, comer uma comida quente, dormir em cama idem. Vai passar o dia esquiando? Mas vai ter todo este conforto no fim do dia. Moleza…
Isso me lembra quando fui passar 40 dias na Estação Antártica Comandante Ferraz, Ilha Rei George. Eu, a alpinista da estação, era responsável pela segurança de pesquisadores e do Grupo Base, formado por militares da Marinha Brasileira. Eu, a “especialista” em frio, passei maus bocados naquela água gélida do mar antártico no Verão, com temperaturas beirando o zero e onde sobrevivemos por apenas 90 segundos antes de morrer de hipotermia. E, da pior maneira possível, descobri que eu podia entender de frio seco, mas úmido? Não, eu não sabia nada – até aquela hora.
Por sorte ou coincidência, vim morar em um lugar de frio seco e isso faz muita diferença. Para se proteger, você precisa se vestir como uma cebola, ou seja, em camadas. Quanto mais camadas tiver, melhor vai ser seu isolamento, pois criará bolsões de ar entre as camadas, que te isolará do frio. Algumas coisas não podem faltar: uma roupa de baixo, ou segunda pele, de preferência de algum material sintético que tem a propriedade de afastar a umidade do contato com sua pele e secar apenas com o calor que você produzirá (essas roupas, normalmente feitas de poliéster, são extremamente confortáveis, mas podem guardar cheiro. Existem também as feitas de lã e as de seda, sendo que essas últimas não são indicadas para lugares extremamente frios).
Algodão? Esqueça. Molha fácil, guarda a umidade, não seca de forma alguma (a não ser quando submetido a uma prolongada fonte de calor, como uma máquina de secar ligada por muito tempo – costuma ser a roupa que ainda sai úmida da máquina, depois de deixá-la funcionando por uma hora). Pior, pode contribuir com uma hipotermia e, em isso acontecendo, com a morte. Mas sem extremismos – é claro que você pode usar uma camiseta de algodão ou uma calça jeans na cidade!
A roupa de baixo vale para as pernas também. Aliás, vale para tudo, até luvas – existem umas bem fininhas que são ótimas em expedições para lugares muito frios. Na cidade, uso uma luva de fleece ou fibra polar, também feita de poliéster (algumas são feitos com garrafas pet recicladas), não muito grossa. Seguindo a camada da cebola, coloque um fleece fininho ou um suéter de lã. Ambos funcionam muito parecidos e o fleece é a imitação sintética da lã – além do mais, ambos não perdem a propriedade mesmo molhados. Se for procurar uma lã de qualidade, procure por produtos feitos com lã de merino, um tipo de ovelha conhecido por produzir a melhor e mais macia lã do mundo. Você encontrará inclusive meias e roupas de baixo de merino.
A terceira camada pode ser com um suéter mais grosso, do mesmo material anterior. Na perna, eu costumo usar duas camadas só. Na montanha, a terceira camada das pernas é composta de um corta-ventos: uma calça de alguma fibra respirável, que tem o ‘poder’ de barrar o vento e a umidade exterior, mas deixa meu suor sair (isto acontece porque as moléculas de água são infinitamente maiores que as de vapor. Então, descobriram que criando micro-furos maiores do que o vapor e menores do que a água, conseguiam este ‘efeito’) – esta fibra, ainda muito cara, funciona muitíssimo bem em lugares frios e secos, quando a diferença de temperatura externa e interna é considerável, favorecendo o movimento das moléculas de vapor de dentro para fora.
No Brasil e, principalmente, no Rio de Janeiro, isto não acontece. Pelo contrário: você tem um ambiente extremamente quente e úmido do lado de fora e também quente e úmido do lado de dentro. Para quê as moléculas precisam se dar ao trabalho de sair dali? Assim, você terá a desagradável sensação de que está ‘chovendo’ dentro do seu casaco, casaco este que você pagou uma pequena fortuna para desfrutar das tecnologias que ele oferece. Bem, continua oferecendo, se você utilizá-lo nas condições para as quais eles foram feitos – e cuidar dele com o carinho que merece, mantendo-o sempre limpo, já que a sujeira não deixa a fibra trabalhar como deve (não entrarei em detalhes em como limpar um casaco de fibra respirável mas, só por curiosidade, ele ‘gosta’ de máquina de lavar com um sabão neutro e ADORA uma máquina de secar, que irá reativar o DWR – durable water repellency –, uma membrana aplicada no exterior do casaco, para protegê-lo da umidade).
O corta-ventos sempre precisará, uma hora ou outra, entrar em ação, seja na cidade ou na montanha. Quando a temperatura desce para abaixo de zero, costumo tirar o meu casaco de pena de ganso do armário – é a melhor coisa já descoberta pelo homem para se aquecer. Já inventaram milhões de tipos de fibras, tecidas das mais diversas formas para imitar a pena do papo do ganso e… nada! Nada, no mundo, consegue ser tão comprimido e voltar à sua forma original, se enchendo de ‘espaços vazios’ que, por sua vez, vão se encher de ar e te aquecer. Ou melhor, não deixarão o calor que você produziu com tanto sacrifício ir embora. Porque, no fundo, é isso que interessa. Uma roupa de pena de ganso, bem tratada, durará uma vida inteira e o segredo, mais do que lavar, está no secar da roupa – bolas de tênis jogadas em uma secadora industrial, com ar quase frio por horas a fio costuma dar conta do recado e deixar as penas, novamente, soltinhas. A pena de ganso tem pelo menos um inimigo: a umidade. Por isso que sacos de dormir sintéticos funcionam melhor no clima brasileiro.
Outra coisa que não pode faltar: o gorro! Feio ou não, amassando ou não os seus cabelos, não existe a possibilidade de alguém estar bem agasalhado sem gorro, já que perdemos 25% do nosso calor pela cabeça e pescoço – portanto inclua na lista um cachecol ou uma pescoceira, se você for fazer qualquer atividade ao ar livre (as pontas do cachecol podem prender em algum lugar, estrangulando-o). Cansado de tanta roupa? Em uma expedição, contando com toda a roupa, as botas duplas e os crampons (aquele solado de metal, com pontas, que anexamos às botas para nao escorregar no gelo), chego a carregar seis kilos apenas no corpo – fora a mochila!
Se tudo está nevado, ou seja, branco, não esqueça de duas coisas importantes, os óculos escuros e o filtro solar. A neve reflete o sol e, dependendo do tempo que você ficar exposto, poderá ter queimaduras em lugares inimagináveis. Vi alpinistas com queimaduras dentro da orelha, do nariz e no céu da boca. Assustador. Quanto aos óculos, o motivo é o mesmo, o reflexo da luz. A claridade é imensa e você pode vir a queimar a retina. Costuma ser reversível, mas dizem que a dor é imensa.
Agora que você está preparado para temperaturas gélidas, o que mudará é a quantidade de camadas e o tipo delas conforme o frio que está lá fora. Não esqueça, se possível, de verificar a sensação térmica. O vento é o maior ladrão de calor que existe e, se ele estiver soprando, poderá “baixar” a temperatura em muitos graus. Neste caso, dependendo do tempo de exposição, sugiro que nenhum pedaço de carne fique exposto. E não esqueça de alguns ‘detalhes’ como não tocar um metal com a língua, por exemplo – penso nisso toda vez que tenho a tentação de botar o meu chaveiro na boca! Ou não deixar sua mão exposta, tocando na neve enquanto limpa o carro, por muito tempo. Aliás, nem precisa muito. Às vezes, pouco tempo é suficiente para iniciar o processo de congelamento e, este sim, pode ser irreversível.
Mas, acho que a maior dicas de todas é: não deixe que o frio te atrapalhe. Fica tudo lindo lá fora e passar um dia esquiando ou andando por trilhas nevadas é uma experiência maravilhosa. Vai compensar todo o tempo que você levou escolhendo e vestindo a roupa e você logo vai esquecer do trabalho tão logo chegue em casa e entre em um banho quente. Vão sobrar só as memórias de um proveitoso dia nas montanhas…
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