Se você fosse uma arara azul e morasse no Pantanal, você provavelmente não gostaria muito dos tucanos-toco. Tucanos-toco são os maiores predadores de ninhos de araras azuis no Pantanal. No entanto, para a sobrevivência da sua espécie, você dependeria de seu maior inimigo.
Esta fascinante história de uma ironia da conservação foi contada em um artigo que saiu no número de março de 2008 na influente revista Biological Conservation1. Os autores do estudo, realizado na Fazenda Rio Negro, em pleno coração do Pantanal, são quatro pesquisadores brasileiros, Marco Aurélio Pizo, Camila Donatti, Neiva Maria Guedes e Mauro Galetti. O artigo é uma pequena jóia, que não só ajuda a entender o que precisamos fazer para ajudar as araras azuis, mas também fornece um excelente exemplo da importância da pesquisa científica para a conservação em geral.
As araras precisam de muita ajuda. A arara azul, Anodorhynchus hyacinthinus, é o maior psitacídeo do Mundo, ou seja, a maior de todas as espécies de arara, papagaio e seus aparentados. São animais imponentes e majestosos, cujos gritos enchem os grandes espaços do céu do Pantanal – onde existe a maior população remanescente da espécie. Mas os espaços estão encolhendo a cada dia para as araras azuis. Cobiçadas pelo tráfico de animais como bichos decorativos, ilhadas pela perda de seu habitat, elas são consideradas ameaçadas e estão se tornando rapidamente cada vez mais raras.
Araras azuis são bichos muito exigentes, o que não ajuda nem um pouco as perspectivas da espécie no mundo de hoje. Elas se alimentam exclusivamente dos frutos de apenas duas espécies de palmeiras. Além disso, nidificam em árvores, mas não são capazes de cavar as cavidades para fazer seus ninhos. Necessitam de grandes cavidades pré-existentes, que só existem em árvores de grande porte e velhas – com mais de 60 anos de idade. Árvores assim, por sua vez, são cada vez mais escassas, em meio às transformações pelas quais passa o Pantanal. Pior ainda, uma pesquisa anterior feita em parte por uma das autoras do artigo – Neiva Guedes – mostrou que 95% dos ninhos de araras azuis no Pantanal são feitos em uma única espécie de árvore: o manduvi, Sterculia apetala. O manduvi, uma imponente árvore que pode alcançar 35 metros de altura, produz grandes frutos, cada um com três a oito grandes sementes dispersadas por aves. O próprio manduvi está fortemente pressionado no Pantanal, pela transformação de regimes de pecuária extensiva em intensiva.
Os autores investiram muitas horas observando que aves visitavam os manduvis frutificando. Quatorze diferentes espécies de aves vieram comer os frutos dos manduvis, mas os visitantes mais freqüentes, de longe, eram os tucanos-toco, Ramphastos toco – aqueles que são nosso estereótipo de tucano, com seu grande bico amarelo. Eles respondiam por quase dois terços de todas as visitas. Tucanos-toco e seus parentes menores, os araçaris, eram os únicos legítimos dispersores de sementes dos manduvis: aves com grande bicos, capazes de engolir as sementes inteiras, sem quebrá-las, e levá-las para longe da árvore-mãe. Porém, os araçaris, com menos de 8% das visitas, eram apenas dispersores de importância secundária, enquanto os tucanos-toco eram sem dúvida os dispersores principais do manduvi.
Outra análise mostrou que embora a abundância de plântulas de manduvi diminuísse à medida que aumentava a distância da planta mãe, a maioria dos adultos de manduvi estavam espaçados mais de trinta metros do adulto mais próximo. Daí, Pizo e seus colaboradores inferiram que a dispersão para longe da planta mãe – a qual as cutias e os porcos do mato usam para localizar e predar as sementes – era importante para a sobrevivência e o estabelecimento dos adultos de manduvi. Ou seja, os tucanos, ao dispersarem suas sementes, estavam prestando um serviço crucial para a árvore.
Os tucanos-toco, porém, estão longe de serem apenas pacíficos comedores de frutos; são bichos vorazes que não ficam só nisso quando visitam os manduvis. Neiva Guedes, num trabalho laborioso, subiu em centenas de árvores e visitou um total de nada menos que 346 ninhos de araras, em seis diferentes anos, observando a situação dos ninhos. Em muitos casos, ela encontrou que os ninhos haviam sido predados e os ovos das araras azuis haviam sido devorados. O suspeito do “crime” podia ser identificado, na grande maioria dos casos, por uma série de evidências, incluindo observação direta do predador, indícios tais como pelos, penas e marcas deixadas nas cascas dos ovos, ou um predador ter se instalado no ninho. Vários predadores foram identificados, incluindo gralhas, gambás e quatis. No entanto, um mesmo suspeito foi indiciado na maior parte dos casos. Com uma média de 53,5% de todos os ovos predados anualmente, o maior predador de ovos de araras azuis foi… você adivinhou, o tucano-toco.
Ou seja, para ter lugares adequados para fazer seus ninhos, as araras azuis necessitam de manduvis. Os manduvis, para sua reprodução, necessitam de tucanos-toco, que são também os maiores predadores de ninhos das araras. Portanto, as araras, para sua própria reprodução, necessitam de um de seus maiores inimigos.
A história toda encerra algumas importantes lições, sobre a sutileza das intrincadas relações ecológicas, e sobre a importância da pesquisa científica para a conservação. Conservar os bichos e as plantas? Sim, claro, é para isso que nós estamos aqui. Mas bichos e plantas dependem de processos ecológicos, de interações com outras espécies. Conserve funcionando bem os processos ecológicos dos quais o bicho depende, e você conservará o bicho. Na ausência da pesquisa de Pizo e seus colegas, quem teria ousado propor, em sã consciência, que se tomasse medidas para conservar o tucano-toco, ave ainda relativamente comum, e conhecida como voraz predador? No entanto, proteger o tucano-toco pode hoje parecer uma medida crucial para garantir às araras o suprimento de manduvis para nidificação.
Claro que, como sempre em ciência, ainda há muito a aprender – o que só torna a história toda ainda mais interessante. Por exemplo, toda esta situação encontrada hoje já é, até certo ponto, artificial. Será que a dependência das araras sobre os manduvis seria tão grande se outras árvores de grande porte do pantanal, que talvez também pudessem fornecer ninhos adequados, já não tivessem tido suas populações reduzidas? Será que na situação atual os prejuízos diretos causados pelos tucanos às araras, pela morte de seus filhotes, não superam os seus benefícios via manduvi, do qual afinal não são os únicos dispersores? Estas são questões fascinantes de uma tal de ecologia, uma ciência que é confundida com suas próprias aplicações. As respostas são fundamentais para que saibamos fazer as coisas certas para conservar as araras azuis na difícil situação em que essas magníficas aves se encontram.
Mas será que não há uma ironia ainda maior nisso tudo? Será que o dilema da arara azul dependendo do tucano não é, de certo modo, simbólico da situação da natureza como um todo? Os problemas que a conservação da natureza enfrenta são causados pela nossa própria espécie. Nós deixamos os bichos e as plantas nas situações dramáticas em que hoje estão. Ao mesmo tempo, só nós, com conscientização, com vontade política e com boa ciência aplicada, podemos virar este jogo. A natureza como um todo, assim como as araras azuis, depende daquele que tem sido o seu maior inimigo.
Referência:
1 – Pizo, M. A., Donatti, C. I., Guedes, N. M. R. & Galetti, M. (2008). Conservation puzzle: endangered hyacinth macaw depends on its nest predator for reproduction. Biological Conservation, 141: 792-796.
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