Voltou a polêmica sobre os números do desmatamento na Amazônia. O ministro Carlos Minc reconhece que é pautado pela imprensa. Deitou falação sobre a queda do desmatamento de maio para junho, com base nos dados do INPE, atribuindo-o a medidas recentes do governo. E soltou um “não gostei”, quando lhe perguntaram sobre os dados do Imazon, que mostravam aumento do desmatamento, esses dois meses. Chegou a ameaçar de passar um pito no Imazon – “vou chamá-los para uma conversinha” – momentaneamente esquecido de que os institutos de pesquisa da sociedade ainda não estão subordinados ao governo.
Eu compreendo as aflições do ministro. É desagradável ser mensalmente cobrado por um número em relação ao qual não tem completo controle e partes de seu próprio governo ajudam a produzir. Não é por acaso que o núcleo principal de desmatamento nos últimos meses seja a BR-163, açodadamente comemorada pelo governo como a primeira BR sustentável do país. Quem foi lá, como o repórter Mauro Zanatta do Valor, vê a ausência do estado e o império da grilagem, da exploração ilegal de madeira e a pecuária extensiva. Especulação com terras e pecuária são também apontados pelo Imazon como fatores determinantes do desmatamento nessa área, no relatório que o ministro disse não ter gostado. Mas, pautado, Minc foi para lá, acompanhado de uma penca de repórteres, inaugurando um colete novo, e encontrou exatamente isso: ausência da autoridade pública, desmatamento e queimadas ilegais, gado em áreas de conservação. Não gostou. Achou triste. E é mesmo.
Para ser justo, devo registrar que Minc não fez como sua antecessora e equipe e o próprio presidente Lula, e saiu comemorando a queda do desmatamento. Ao contrário, disse que a guerra continua, é dura e está longe de ter sido vencida. Onde Minc escorregou foi nos comentários sobre os números aparentemente divergentes do INPE, agência de estado, e do Imazon, uma instituição científica de auto-gestão, um “think-tank”. Principalmente, ao desqualificar o número “ruim”, dizendo que o único número oficial é o do INPE, o único que deve ser levado em consideração. O ministro Minc militou a vida toda na oposição e sabe como o apodo “oficial” nem sempre cria a respeitabilidade que seu uso prevê. Há uma tendência, em sociedades muito estatistas e autoritárias, em desconfiar mais do “oficial” que do “civil”.
Lembrei-me ao ler as matérias sobre o desabafo do ministro, da sistemática saia curta em que viviam os ministros da Fazenda da época da hiperinflação. Terminamos com uma dezena de índices diferentes, com três institutos principais – o “oficial” IBGE, a FIPE e a FGV – coletando números pontualmente disparatados, mas todos ao fim e ao cabo dizendo a mesma coisa, a inflação não estava sob controle, não parava de subir. O problema só se resolveu com o fim da inflação. Aprendemos a lidar, na economia, com diferenças metodológicas. Ninguém discute mais a discrepância, mas informo aos leitores que o IPC da FIPE, em junho foi de 0,56%, no mês, e 5,84% em 12 meses; o IGP-DI da FGV, foi 1,89% e 17,9% e o IGP-M, 1,76% e 15,12%, respectivamente. Já os “oficiais” INPC e IPCA, do IBGE cravaram 0,91% e 0,74%, no mês, e 7,28% e 6,06%, em 12 meses, respectivamente. Tanta divergência numérica não dá mais briga. Já sabemos, são metodologias distintas, “POFs” diferentes, critérios também diferentes. Mas, o mais importante, todos contam uma história, cujo fim é igual, com ênfases variáveis: a inflação está em alta.
No caso do desmatamento é a mesma coisa. Uma variação na interpretação de um pequeno conjunto de polígonos nas fotos de satélite pode levar a uma diferença aparentemente importante nos números, em um dado momento do tempo. Os dados não são tão precisos e completos – são amostras – para que se ponha muita ênfase na variação mês a mês. No período correspondente ao ano de 2008 do ciclo de desmatamento, os números dizem a mesma coisa: o desmatamento está aumentando, depois de três anos consecutivos de queda. É isso que importa.
Duvido que medidas como a restrição de crédito determinada pelo Conselho Monetário Nacional e outras mais recentes, adotadas pelo governo – todas na direção correta – tenham gerado efeito suficiente para já reverter a tendência de retomada do desmatamento. A matéria de Mauro Zanatta sobre a BR 163 mostra que ele continua a pleno vapor. Eu vi, pessoalmente, a quantidade de madeira retirada ilegalmente de áreas de preservação fora do grande arco do desmatamento – Rondônia, Roraima, Mato Grosso e Pará – no estado do Amazonas. Antes havia visto a atividade madeireira e de carvoaria ilegal na região de Tailândia, Paragominas e Marabá, no Pará. Marabá é outra região identificada pelo mapa do Imazon como de alta atividade de desmatamento, para gerar o carvão ilegal que serve às siderúrgicas. As ações do governo nesse campo têm sido tímidas. Os governos estaduais festejam seus siderúrgicos e fazem vista grossa ao desmatamento para o carvão que consomem desbragadamente e que vem do cerrado mineiro, da Amazônia de Carajás, do Pantanal e do Cerrado das imediações de Corumbá. Número baixo ou alto no papel não mudará essa dura e triste realidade, como caracterizou o ministro do Meio Ambiente. Como os índices nunca fizeram a inflação subir ou cair.
Separado o termômetro da febre, o que temos são duas questões distintas. A primeira e mais importante é que o desmatamento está aumentando. Quem o governo deveria chamar para uma “conversinha”, tipo bronca geral com ameaça de sanções generalizadas, são os pecuaristas que não agem para eliminar seus companheiros que desmatam, escravizam e invadem unidades de conservação, coisa para reunião com o ministro da Agricultura e o presidente da República. Ou os empresários da siderurgia e da mineração de ferro, que mantêm em suas cadeias de suprimento esses produtos sujos com o carvão ilegal. Essa tolerância com a intolerável transgressão continuada da lei é que constitui o problema central do desmatamento na Amazônia.
E não se pode deixar de mencionar a conexão governamental do desmatamento. O governo planeja inúmeras estradas na Amazônia. É grave. Vai dar desmatamento. A férrea autoridade da ministra Dilma Roussef não consegue evitar a grilagem especulativa que seus mapas rodoviários provocam, antes mesmo de saírem do papel. O Governo Federal tem como objetivo prioritário implantar na Amazônia o mesmo modelo de industrialização, transportes e agroindústria que prosperou no Sul-Sudeste. Esse modelo reduziu a 7% a Mata Atlântica e a 40% o Cerrado. Vai destruir a Amazônia. Não será um número baixo do INPE que mudará essa tendência estrutural.
A segunda questão é a diferença metodológica entre o INPE e o Imazon. Conheço cientistas das duas agências, uma grande e estatal, outra pequena e civil. São todos sérios e competentes e têm o mesmo objetivo que é contribuir para o fim do desmatamento, a proteção da Amazônia e seu desenvolvimento com base em um modelo de economia compatível com a floresta em pé. Estão do mesmo lado, acreditam na ciência e defendem a Amazônia. Divergem, eventualmente, nos números. Para um cientista social, como eu, isso não é mistério, nem motivo para fuzuê. Nós sabemos que uma pequena variação na interpretação de uma variável, uma diferença na interpretação de um parâmetro, um fraseado diferente de uma pergunta no questionário, podem produzir diferenças estatisticamente significativas até na mesma amostra.
Uma vez, eu e Marcos Coimbra, da Vox Populi, conversávamos sobre a construção de um índice, que acabou não saindo, e tínhamos uma dúvida: entrevistas a domicílio (ficava mais caro) ou por telefone (ficava mais barato)? Resolvemos fazer um teste e obtivemos respostas estatisticamente equivalentes em 1/3 das perguntas e estatisticamente diferentes, em 2/3. Hoje, talvez, essas diferenças tenham diminuído muito. Na época, havia um fator sócio-econômico subjacente à posse de telefone, que produzia percepções diferentes estatisticamente significativas entre os dois grupos. É comum encontrar artigos sobre o mesmo tema político – votações no Congresso – apresentarem diferenças nos resultados. São estudos numéricos, que usam análise estatística multivariada. As diferenças resultam da composição da amostra de votações analisadas, de interpretações distintas sobre o significado do sim e do não numa determinada votação. Escolhas que p pesquisador faz e tem conseqüências nos resultados. E ambas as análises podem estar certas. A realidade acaba se impondo e, mesmo com variações, os estudos convergem sobre os resultados do comportamento parlamentar, que é o que interessava aos pesquisadores.
Andei olhando os números do INPE e do Imazon. O INPE ainda não encontrou uma forma objetiva e clara para expor seus resultados. Imagino que para muito leitor seja fácil se perder nos números, considerandos e condicionais. É confuso. Seria melhor uma exposição direta de cara (em jornalismo chama lide), deu tantos quilômetros quadrados de desmatamento total verificado e qualificado, tantos quilômetros de corte raso e tantos de degradação. Depois explicar que como o número do Deter foi obtido, em seguida qualificado usando imagens de maior resolução do Landsat. As explicações técnicas podiam vir depois. Mas o número válido e decomposto nas duas partes deveria ser apresentado de forma clara e direta, de saída.
Confesso que levei algum tempo para chegar aos números aparentemente finais de desmatamento por corte raso, para poder comparar aos dados do Imazon – que só mede corte raso – para fazer esse gráfico aí. E não tenho certeza se fiz a dedução correta. Segundo o INPE, em junho, 67% do desmatamento pelo Deter, confirmados pela qualificação com as imagens do Landsat, foram corte raso. Daria 582,9 km2 (67% de 870 km2). O Imazon, encontrou 612 km2 de corte raso. Uma diferença de 29 km2, que caberia em qualquer margem de erro. Concretamente, os dois viram a mesma coisa em junho.
Quando nos fixamos na agenda das instituições científicas, o que vemos, é coisa boa. Muito esforço para ajudar o Brasil a usar conhecimento, informação, ciência e tecnologia, para controlar o desmatamento, que contraria o interesse coletivo do país em geral, e da Amazônia, em particular. Agora, quando se usa um ou outro número para fazer banzé, a poeira da confusão esconde o que há de bom e de importante nessa busca científica do conhecimento sobre o patrimônio natural da Amazônia e os riscos que ela corre. Conhecimento que pode ajudar não só a Amazônia, mas também a monitorar, preservar o que resta e recuperar a Mata Atlântica e o Cerrado.Leia também
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