Há anos que somos bombardeados com propostas para explorar de forma “sustentável” do que resta de nossas matas preservadas, como se mantê-las intactas não fosse uma alternativa possível para merecer todo o esforço e empenho da sociedade. Os serviços ambientais prestados por estas áreas não valem. Se não entrar uma motosserra na jogada, não tem conversa.
Quando eu lia sobre o assunto e assistia as reportagens na TV, exibindo aquelas entrevistas de proprietários rurais com aquelas frases prontas, cheguei a me iludir, confesso. Achava que alguém tinha realmente encontrado uma maneira de salvar a Mata Atlântica, de controlar a ganância do ser humano, sem a necessidade de pedir socorro para a fiscalização do Ibama ou da Polícia Ambiental.
No início dos anos 1990, conheci uma área preservada em Itaiópolis, Santa Catarina, que era cortada pelo Rio Costa Carvalho, afluente do Rio Itajaí, que passa em Blumenau. O lugar tem uma concentração incrível de atrativos naturais de grande beleza. São muitas cachoeiras de tirar o fôlego e várias cavernas. Mas o que me atraia mais era a beleza da mata preservada, bastante extensa, com aquelas árvores centenárias e muita fauna.
Naquela época, conversei com o pessoal da prefeitura sugerindo algum projeto para o “uso sustentável” daquela área preservada, para atividades de ecoturismo, como os exemplos que gente via sendo divulgado por aí. A lógica seria que, se o “pequeno agricultor” tivesse uma alternativa de renda, no caso do ecoturismo, não iria desmatar mais. Quem seria doido de não apoiar uma idéia tão óbvia assim?
Então, a prefeitura fez sua parte, apesar de suas limitações orçamentárias. Melhorou a estrada de acesso até a propriedade e abriu uma outra estrada até bem próximo da principal cachoeira e às cavernas. Colocou macadame nas estradas para permitir o acesso até nos dias chuvosos. Caprichou mesmo! Fez até um cartão postal com a principal cachoeira da propriedade.
O pessoal me garantiu na época que aquela área estava salva, pois o proprietário estava conscientizado da importância da mata preservada. De fato, nas vezes em que fui visitar o local, agradava-me muito a conversa que mantive com este agricultor, que era sempre muito gentil também. Andei várias vezes com ele pela mata de sua propriedade e adjacências, onde ele me mostrava, com muito entusiasmo, as belezas naturais, os bugios etc. Acabei sendo contagiado pelo otimismo do pessoal da prefeitura e fiquei muito animado. Eu estava diante de um agricultor de bem com a natureza.
Nove anos depois, em novembro de 2001, voltei lá. Foi por ocasião do projeto de educação ambiental patrocinado pela Fundação O Boticário de Proteção à Natureza para popularização dos anfíbios. Uma das metas do projeto era fotografar todas as espécies de anfíbios que ocorriam no norte de Santa Catarina.
Devido às péssimas condições da estrada de acesso, que é de forte declividade, deixei o carro na casa de um agricultor na estrada principal, em cima da serra, e segui a pé. Logo que avistei a imensa paisagem do alto da serra da margem oposta do rio, fiquei chocado. A paisagem ao longo do rio Costa Carvalho tinha sido arrasada. Estavam tocando fogo e desmatando as áreas que restavam. Havia dezenas de fornos de carvão e áreas recém desmatadas ou incendiadas.
Quando estava trocando a lente da câmera, preparada para fotografar anfíbios, para fazer algumas fotos daquela paisagem, apareceram dois estranhos de bicicleta que pararam e foram logo perguntando o que eu estava fazendo ali. Eu expliquei que estava fotografando sapos, mas acho que não fui muito convincente. Explicaram que eram de outra cidade e foram contratados para trabalhar num “reflorestamento de eucalipto”, ou seja, para desmatar a área. Estavam a caminho de um bar que ficava no povoado, uns 15 km dali. Fiquei com um pouco de medo, mas não o suficiente para desistir de chegar ao rio e esperar anoitecer para fotografar os anfíbios.
Na estrada que conduzia à cachoeira não havia mais a exuberante floresta. Logo encontrei o proprietário e um rapaz, seu filho, que era a criança muito simpática que conheci doze anos atrás. Eles estavam num trator que puxava uma carreta cheia de sacos de carvão de árvores nativas. A cena foi até engraçada, ele estava com o rosto todo sujo de carvão e ficou meio constrangido ao conversar comigo. Eu pedi permissão para ir até a cachoeira e nos despedimos.
Trajetória comum
A história é a mesma em qualquer propriedade rural. Os filhos crescem, casam e querem mais dinheiro. Eles fazem aquilo que dá mais dinheiro e fazer carvão é a última etapa da devastação. Em uma outra propriedade de Itaiópolis que conheci desde criança, notei que recentemente foram derrubadas as árvores até dos paredões de uma cachoeira e de toda a mata ciliar preservada há décadas. Foi o neto que rapou tudo o que o avô tinha preservado, derrubando qualquer coisa parecida com árvore para fazer carvão.
À medida que avançava pela estrada rumo à cachoeira e cavernas, via mais desgraça. Estava muito decepcionado com aquela situação. Eu cheguei lá no momento em que a destruição estava acontecendo. Mais adiante, outro grande desmatamento e uso do fogo para limpar a área que tinha fumaça saindo nos troncos e cepos das árvores centenárias. Esta área era de outro proprietário, investidor em “reflorestamento”, que morava em São Bento do Sul (SC).
O alojamento do pessoal que estava desmatando e plantando eucalipto ficava a uns 50 metros da estrada. Eu passei meio abaixado para eles não me verem, já que estavam todos no interior do alojamento. Minha preocupação maior era com os dois indivíduos que me abordaram na estrada, manuseando a câmera fotográfica. Eles estavam neste alojamento, voltariam mais tarde e contariam sobre o cara que estava “fotografando sapos”, que certamente deveria ser uma desculpa bem esfarrapada para eles.
Logo que passei o alojamento, entrei num trecho de mata da borda do desmatamento que estava esperando pelas motosserras. Encontrei logo no início, distante uns 100 metros do alojamento, o esqueleto de um bugio cujo crânio estava perfurado por uma bala (veja foto acima). Então, aquela cena começou a me deixar apavorado, em pânico para dizer a verdade. Mas tive coragem de continuar para testemunhar algo mais terrível ainda. O proprietário usou a estrada construída para a atividade de ecoturismo para retirar toda a madeira (árvores centenárias), nos grotas, às margens do Rio Costa Carvalho. A cada 10 ou 20 metros da estrada havia uma trilha rasgada (escavada) pelo arrasto dos troncos das árvores abatidas. Simplesmente raparam a madeira das margens do rio.
Sentei sobre uma rocha na entrada de uma das cavernas, com muito medo, já me vendo no lugar do bugio, como sendo a próxima vítima, e esperei escurecer para procurar os anfíbios que habitavam aquele lugar tão especial. Durante este tempo, refleti muito sobre a situação das nossas áreas preservadas, dos animais que ocupam estas áreas cada vez mais reduzidas, dos bugios que o proprietário havia me mostrado dez anos atrás. Enfim, eu estava arrasado e nunca senti tanto medo como aquele dia. Então, decidi tratar de sair dali o mais rápido possível, antes que os caras voltassem do bar e me delatassem para seus companheiros.
Imaginei que eles poderiam fazer uma emboscada em qualquer ponto da trilha ou da estrada. Andei com muito cuidado e iluminava sempre pontos bem adiante da estrada ou da trilha, na tentativa de descobrir alguém escondido. Na hora de passar em frente do alojamento, liguei as quatro lanternas que levo sempre de reserva. Segurei duas em cada mão, para simular quatro pessoas na tentativa intimidar possíveis agressores. Mas acho que não me viram passar, pois estavam distraídos, jantando animadamente.
Engodos televisivos
Recentemente vi num programa de ecologia na TV um outro engodo da tal exploração sustentável da Mata Atlântica na região norte de Santa Catarina. Era sobre a extração de cipó-branco (liana) para artesanato (cestos). Foi o absurdo a enganação. O entrevistado é um velho conhecido da polícia, com dois processos penais por ter sido pego em flagrante furtando palmito e embalando clandestinamente o produto.
Com uma expressão do homem mais generoso do mundo com a natureza, que sabe viver em harmonia com ela, disse na entrevista que extraia cirurgicamente o cipó para não prejudicar a planta. Uma mentira deslavada. O sujeito invade as áreas preservadas alheias, inclusive unidades de conservação, e limpa tudo.
Embora fosse um programa de ecologia, foi lamentável ter deixado de informar que este cipó é crucial para a fauna, pois frutifica abundantemente e alimenta as aves, principalmente. É uma bagueira imprescindível na Mata Atlântica. É tão importante quanto qualquer árvore, mais valorizadas pelos humanos.
Geralmente, estes projetos são mostrados num dado instante, mas se você olhar para trás ou para frente, às vezes num curto período de tempo, de alguns meses, vai notar que são devastadores para a natureza, porque não há como controlar a ganância do ser humano. Por que essas iniciativas são defendidas com tanto entusiasmo, então? Por que tanto marketing em cima disso?
É fácil entender. Todos os anos, na véspera do Natal, as TVs mostram exaustivamente que papai Noel existe de fato e mora na região da Lapônia, no norte da Escandinávia. Eles mostram aqueles vilarejos, onde os comercialmente faturam alto com o turismo. Entrevistam as pessoas que ali vivem e os turistas de várias partes do mundo. Todas procuram ser convincentes ao confirmar que o papai Noel existe e vive ali. Por fim, entrevistam o próprio papai Noel, em carne e osso. Todos se esforçam muito para alimentar o mito, porque senão o negócio deles vai por água abaixo.
O problema é que a aniquilação de um ecossistema não é nenhuma brincadeira. É uma pena que os exemplos que tivemos aqui no Sul, do extrativismo da erva-mate e tantos outros que não conseguiram impedir a devastação das Matas de Araucárias, não sirvam de alerta para o que estão fazendo na Floresta Amazônica e nos vestígios da Mata Atlântica.
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