Dando seguimento à nossa breve revisão da deliberada desconstrução ambiental do Brasil pelo (des)governo corrente e seus asseclas, me parece útil esta semana olharmos para o que vem sendo feito com os órgãos ambientais federais, desde uma perspectiva histórica, para que entendamos por que razões aquilo que nunca foi uma Brastemp agora está sendo encaminhado para a ineficiência planejada, beneficiando – surprise, surprise! – os mesmos interesses de sempre.
Uma das grandes enganações do stalinismo ambiental brasileiro (essa tentativa da “esquerda” partidária de reescrever a história da conservação da Natureza no Brasil) é esconder o fato de que foi ainda nos governos militares que a estrutura da política ambiental de Estado começou a tomar forma.
Os órgãos federais sempre federam a desenvolvimentismo irresponsável, algo que não mudou até hoje nos tempos imperiais de Lulla Roussef. Mas lá em 1973, numa das fases mais duras do governo militar, Paulo Nogueira-Neto assumia a inglória tarefa de pôr em pé o primeiro órgão verdadeiramente ambiental do Brasil: a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA). Até o advento desta, a política ambiental do Brasil era feita subversivamente no interior do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), onde o pessoal técnico da área de parques e reservas, e de espécies silvestres, fazia das tripas coração para criar e manter áreas protegidas e programas de conservação que ainda hoje tentam resistir ao vandalismo lullista.
Nogueira-Neto, que deveria ser canonizado junto com Ibsen Câmara e outros pioneiros corajosos da conservação daqueles tempos, construiu com sua pequena equipe e orçamento menor ainda os primeiros instrumentos de uma efetiva política ambiental para o Brasil, e conseguiu entronizar na legislação federal conceitos como o estudo de impacto ambiental, que com todos os seus defeitos na prática ainda é um dos mais importantes instrumentos para se avaliar ora o impacto de um empreendimento, ora a incompetência de seus proponentes em gerir esse impacto (sim, porque os EIA/RIMAs de copiar-colar são a face escrachada da incompetência desses empreiteiros de republiqueta, certos da aprovação oficial independentemente do que apresentem). Qualidade ambiental, zonas de amortecimento, zoneamento ambiental, um Conselho Nacional de Meio Ambiente que hoje é horrendo na sua composição, mas é melhor que nada, são alguns dos avanços duradouros que esse grande visionário legou ao Estado brasileiro, para desespero desde então e ainda corrente do desenvolvimentismo oficialóide.
Depois de Nogueira-Neto, o grande salto na estruturação do Estado brasileiro para encarar as necessidades de gestão ambiental esclarecida foi dado por Fernando César Mesquita, quando da criação do primeiro IBAMA, reunindo sob o mesmo teto os bandos rivais do IBDF, SEMA e Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE). Corria o ano de 1989, e recém o país estava saindo da obscuridade em várias áreas ambientais (a caça à baleia, por exemplo, havia sido proibida apenas em 1987, e um parque da importância de Fernando de Noronha demorou até 1988 para ser decretado). Mesquita conseguiu a proeza de fazer essas tribos trabalharem em conjunto durante vários anos, com problemas freqüentes e conhecidos, mas ao menos dando forma a uma política unificada para a conservação do patrimônio natural nacional.
A ascensão heterodoxa de Fernando Collor de Mello à Presidência, às vésperas da Rio-92, levou à criação da Secretaria de Meio Ambiente da Presidência da República, o que, se por um lado elevou politicamente a gestão ambiental ao status de Ministério (depois consolidado no MMA), deu origem a um defeito seriíssimo no sistema federal de gestão ambiental: o IBAMA passou a ser subordinado, e não incorporado, a um órgão “político” superior. Isso gerou, além da – mais uma vez – rivalidade entre tribos da “esplanada” e da “sede”, uma crescente duplicidade de funções e desperdício de recursos em intermináveis planejamentos na “esplanada” que não eram executados pela “sede”, ora por falta de recursos, ora por politicagem mesmo. A criação de uma cascata de cargos políticos, de Ministro a chefes de áreas protegidas, sem qualquer vislumbre de implantação de uma efetiva carreira ambiental federal que prestigie a capacitação do funcionário concursado, vem sendo cada vez mais um impedimento para a gestão ambiental decente nesse país.
Com tudo isso, ainda havia alguma esperança e um semblante de gestão ambiental no sistema dual MMA/IBAMA, até que Suas Imbecilências brasilienses começaram a ver nele um obstáculo para sua estratégia de entregar o país aos “agentes privados do desenvolvimento”, ou seja, às empreiteiras e seus conglomerados, aos donos do dito agronegócio (mais negócio do que agro) e aos demais lobbies de apropriação indébita do patrimônio natural público, como a famigerada “Bancada da Pesca” que defende os predatórios industriais do setor no Congresso.
É assim que, desesperada pelo bom trabalho dos analistas ambientais do IBAMA que se recusavam a dar cheque em branco para as obras faraônicas e eleitoreiras de PACs e quejandos, a Primeira-Ministra ordenou o esquartejamento da autoridade ambiental federal. Aproveitando uma boa idéia de outrem – a possível criação de um Serviço de Parques Nacionais, capaz de centralizar esforços na proteção de áreas naturais representativas como é feito em países mais civilizados – e a abastardando, mandou-se dividir o IBAMA em dois, esperando com isso enfraquecer a gestão e direcionar (“agilizar”, no jargão da hipocrisia palaciana) os licenciamentos federais. De quebra, acomodou-se mais uma dúzia de carguinhos num novo Instituto, batizado com o nome de um sindicalista do Partido, e que como já se viu tem a missão institucional clara de presidir sobre o fim de nossas áreas protegidas através de um processo de miserabilização absoluta, que só não atinge os pouquíssimos parques com serviços licitados – uma das poucas coisas boas acontecendo que vêm de outros tempos e que simplesmente não se espalha para o sistema de Unidades de Conservação por falta de vontade política.
O trabalho sangrento dos estripadores do Planalto não parou por aí, entretanto. Uma outra coisa que estava incomodando muito era essa besteira de se querer encarar a realidade da pesca marinha no Brasil, ou seja, de que a “riqueza” pesqueira nunca foi do tamanho da verborréia palaciana, e o que há já foi demolido por décadas de mau uso e falta absoluta de controle estatal. O IBAMA dizia claramente dessas limitações e propunha limites claros à devastação pesqueira; ora, cale-se o IBAMA, tire-se dele a função de fiscalização, invente-se uma nova “otoridade” que cante o coro mentiroso dos palácios. É assim que estamos diante agora de um Mistério da Pesca – não se pode chamar de MiNIStério, já que não se sabe onde está o mar riquíssimo que os discursos de governo alardeiam. O que não é mistério, entretanto, é o vergonhoso volume de subsídios que se estão aportando para estimular o continuado estupro do mar brasileiro através da pesca predatória. Esses subsídios, na contramão absoluta da tendência internacional, vão fazer com que o meu imposto e o seu sigam sendo doados para a devastação dos ambientes marinhos do Brasil.
É assim que, graças a cooptação e aquietamento de setores importantes da sociedade civil da qual já falamos na semana passada, o (des)governo imperial vigente vem promovendo o fim das instituições de gestão ambiental da União. No interior dos membros espalhados que se esvaem em seu parco sangue em praça pública, alguns servidores que ainda acreditam tentam fazer algo para que esses membros funcionem. O próprio ministro Minc se vê que tenta, nada, rema, mas a praia onde morrerá seu esforço já se vê no horizonte da desincompatibilização para concorrer a alguma outra coisa. Heróico esforço, sem dúvida, é o dos funcionários de carreira que ainda lutam pra fazer valer a gestão ambiental, mas que só dará frutos quando conseguirmos fazer o que o Estado brasileiro mais precisa: um implante de cérebro. No momento, parece que está em falta.
*Esse texto foi editado em 17/05/2024 para repaginação
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