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Ser ou não… Serra da Bodoquena

Esse pequeníssimo parque é pouco do que ficou da natureza do MS. Nem isso parece resistir à ambição de fazendeiros sem escrúpulos, nem vergonha.

22 de janeiro de 2010 · 15 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

fotos: Maria Tereza Jorge Pádua

Resolvemos fazer uma viagem de carro desde Florianópolis até Bonito, percorrendo assim grande parte dos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. A cidadezinha de Bonito, de nome realmente bonito, é proclamada como a capital do ecoturismo no Brasil. Perto dela está o Parque Nacional da Serra da Bodoquena.

A viagem, com raríssimas exceções, era só atravessar um oceano de soja a se perder de vista, interrompido por mares de cana ou pastagens. Uma paisagem monótona, feia e triste, principalmente porque os fazendeiros, na sua enorme maioria, sequer deixaram um simulacro de áreas de reserva legal ou mesmo sequer respeitaram as áreas de preservação permanente (APPs). Por incrível que possa parecer mesmo as faixas de domínio das estradas, desapropriadas com nosso dinheiro, não estão livres da soja ou cana. Tudo está plantado. Não se obedeceu ao Código Florestal em vigor, não há corredores ecológicos, não há fauna silvestre à vista, apenas as emas ou seriemas que sobrevivem nos campos de soja ou nas pastagens e algumas espécies de aves resistentes à tamanha alteração de habitats. As únicas florestas que se observa são os pequenos lotes de eucaliptos alinhados como brigadas de soldados prontos para um desfile e perdidos na paisagem.

Onde se vê algumas manchas de matas secundárias é justamente em alguns assentamentos rurais entre os estados do Mato Grosso do Sul e Paraná, que evidentemente serão desmatadas outra vez para a obtenção de madeira e carvão vegetal. Digo isso, pois, essa é a única atividade econômica evidente nesses assentamentos. Em cada lote apenas se observam uns poucos metros quadrados de cultivos para sobreviver: mandioca, milho, bananeiras e pouca coisa mais. As poucas matas ciliares que os fazendeiros não destruíram estão religiosamente ocupadas por camponeses sem terra, prontos para assaltar a fazenda mais próxima. Esperando o momento da invasão eles se encarregam de destruir prolixamente o pouco de mata que ficou.

Pelas informações de conservacionistas que viajam pela região, por constatação visual, nota-se a imensidão dominada pela cana-de-açúcar de todo o noroeste do Paraná,  salpicada de pastagens ou vice-versa, dominando até a região de Naviraí – Dourados. Então cedem espaço à soja que domina totalmente a paisagem, em geral substituída na estação seguinte por plantios de milho e, também, com algumas manchas de pasto ou de cana-de-açúcar (mas, esta avança rápido em todas as direções) até a região de Guia Lopes da Laguna e Jardim, mas tendo por grande centro o município de Maracaju. Na direção de Bonito dominam as pastagens, cada vez com mais fragmentos de remanescentes mais ou menos naturais de cerrados, cerradões e florestas, conforme a proximidade das bases do Planalto ou Serra da Bodoquena onde as matas, no espaço delimitado como Parque Nacional, ainda predominam.

Ante esses fatos a gente se pergunta por que os ruralistas lutam tanto contra o Código Florestal em vigor se eles nada perderam, em termos monetários, para a obediência da Lei, pois ela parece que para eles não existe. Claro que este quadro é uma constante em outros estados do Centro Oeste e lá se vão o Cerrado, a Mata Atlântica e o Pantanal, que não vai se livrar de tantos agrotóxicos e assoreamentos gerados na sua extensa bacia hidrográfica. Pobre país que deixa destruir completa e absolutamente, enormes ecossistemas e regiões originalmente belas e ricas, para irrestritamente fazer monoculturas avassaladoras. Será que essa forma violenta de uso da terra tem algum futuro? Até quando os custosos corretivos agrícolas conseguirão manter a cobiça de fazendeiros ricos, que agem sem nenhuma consciência ambiental, nem tampouco respeito pela lei?

Um guia local resumiu muito bem o dilema dos poucos proprietários de terra que querem preservar algum resto da floresta. Se eles não desmatam devem enfrentar os sem terra e o governo federal que alegam que a terra está abandonada. Se quiserem fazer uma reserva particular de patrimônio natural, para evitar que os sem terra invadam, devem enfrentar anos e anos de trâmites custosos e ridiculamente complexos ante as autoridades federais. Só como exemplo a pequena RPPN do Buraco das Araras, com 29 hectares no município de Jardim, levou 8 anos para ser reconhecida como tal. Por isso muitos optam pelo simples expediente de aceitar que os carvoeiros eliminem a mata e entreguem a terra nua aos proprietários que assim evitam as invasões e desapropriações e ganham algum dinheiro. Tudo legal, tudo tranqüilo. Isso é o que, na prática, faz e fomenta o governo que, não obstante, enche o peito com seu papo furado nos eventos internacionais.

Quando se chega a Bonito, após dois dias de viajem, se respira um pouco, pois, como todos sabem há muitas reservas particulares de patrimônio natural (RPPNs); rios ainda ricos em peixes, um pouco mais de mata ciliar e de florestas secundárias esparsas aqui e acolá e, vêem-se ainda alguns animais silvestres, dentre eles as famosas araras vermelhas e pelo menos uma unidade de conservação pública federal de proteção integral, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, além da reserva indígena dos Kadiweu, com seus 530.000 hectares.

Por vício de profissão quisemos visitar a única unidade de conservação federal de proteção integral em Mato Grosso do Sul (segundo dados do ICMBio, disponíveis em seu site), o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, criado há 10 anos, com 76.000 hectares que evidentemente, como muitos outros, ainda não foi implantado, nem totalmente desapropriado. Não sei por que insisto em visitar parques nacionais! São só problemas e mais problemas! Até as fazendas já desapropriadas pelo Poder Público continuam com gado dentro e sendo tranquilamente usadas pelos antigos proprietários, que não deixarão de pedir em breve uma nova desapropriação. O Poder Público, com grande, mas insuficiente esforço, apenas desapropriou pouco mais de 11% da área total do Parque Nacional.

O Parque tem poucos amigos e muitos inimigos. Os amigos são apenas os poucos que pensam no futuro, dentre eles os funcionários encarregados da sua defesa no campo. Os inimigos são todos os outros, principalmente os ruralistas locais concentrados na Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), pois eles não param de atacar o Parque Nacional desde o momento de seu decreto de criação. Mas, até os comerciantes do ecoturismo estão velada ou abertamente contra, pois acreditam que se o Parque abrisse as portas ao turismo seria um sério competidor aos seus negócios.

A Famasul é um caso à parte. Começaram por uma ação direta de inconstitucionalidade, que não prosperou, e seguem com todas as ações que possam atrapalhar a implantação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena. Até contestaram a própria existência do Parque Nacional alegando, através do Poder Judiciário, a caducidade do decreto de criação do Parque Nacional. Como se decreto de criação de Parque Nacional caducasse! De acordo com nossa Constituição- artigo 225 §1º, incisos I, II, III e IV um Parque Nacional só pode ser extinto por Lei. É só conferir. O que caduca é o decreto de desapropriação, que tem validade de 5 anos. De fato, na vigência do decreto de desapropriação por utilidade pública, não se desapropriou as terras particulares do Parque Nacional da Serra da Bodoquena. Poucas fazendas foram adquiridas pelo Poder Público e, como já mencionado, continuam a ser exploradas pelos antigos proprietários pela falta de ação do ICMBio. Mas o governo federal pode, após um lapso de um ano da caducidade do decreto de desapropriação, que, volto a repetir, tem validade de 5 anos preparar um novo decreto de desapropriação. Ou seja, a qualquer momento, o senhor Presidente da República pode agora promulgar outro decreto para a necessária desapropriação desse Parque Nacional. Deveria fazê-lo rapidamente em benefício do único Parque Nacional do estado de Mato Grosso do Sul. Deveria ainda implementá-lo enquanto é tempo, antes que os ruralistas desafetos do Parque Nacional acabem por matá-lo, conseguindo de forma espúria sua extinção.

Assim mesmo aqueles ruralistas querem fazer crer a todos que o decreto de criação do Parque caducou. Mentira, e todos os advogados e juízes devem saber disso. De tão atrasados e antidemocráticos, esses ruralistas atacaram a instalação do Conselho Consultivo do parque e eles conseguiram evitar sua instalação, através de uma liminar do judiciário, o que não impede em nada a implementação da unidade pelo poder executivo. Os Conselhos Consultivos são previstos pelo artigo 29 da Lei Nº 9985 de 2000, a conhecida lei que estabelece o sistema de unidades de conservação do país (SNUC) e têm a função de garantir a participação dos setores e da sociedade envolvidos com a unidade de conservação. Impedir-se, através de uma liminar, o funcionamento do Conselho Consultivo só evitará que o processo de gestão da unidade seja mais transparente, participativo e democrático. Mas, o assunto é preocupante, pois pela primeira vez tal fato ocorreu no Brasil. É uma decisão totalmente incongruente e que atenta de modo flagrante contra uma lei. Porém, decisão judicial tem de ser obedecida.

Na verdade, neste sentido os ruralistas deram um tiro no próprio pé, porque com isso não podem nem mesmo palpitar sobre o plano de manejo e sobre a implementação da área. Por outro lado, impedem que outros interesses econômicos legítimos, como aqueles do setor turístico, participem da gestão da unidade de conservação.  O melhor que fariam para eles e para o próprio Parque Nacional seria lutar por emendas orçamentárias para a desapropriação de suas terras (com isso resolveriam o maior problema que os afeta); ou ainda agir via ação de desapropriação indireta (para atingir o mesmo fim) e, ainda, pela efetiva implementação da área, que gera benefícios locais que se expandem para toda a sociedade. Mas não, são do velho lema do “quanto pior melhor”.

O Parque Nacional da Serra da Bodoquena é a única e mínima porção mais ou menos natural que está protegida pela União na região. A destruição que o agro-business, provocou em Mato Grosso do Sul é assustadora, única, feia e, pior, contou com suporte e subsídios pagos por todos nós cidadãos deste país. O mínimo que a Famasul deveria fazer seria lutar pela implantação do Parque Nacional, depois de tanto destruir. E também deveriam lutar pela desapropriação das terras que alegam pertencer a alguns dos seus membros. Pelo contrário, pelo visto preferem eliminar as poucas árvores que não conseguiram tirar antes que o Parque fosse estabelecido e concluir a destruição do lugar. Esse pequeníssimo Parque é com exceção da terra dos Kadiweus e de umas poucas e pequenas áreas protegidas estaduais ou particulares, tudo o que ficou da outrora natureza desse grande Estado. Nem isso parece resistir à ambição desmedida de alguns fazendeiros sem escrúpulos, nem vergonha.

Onde está o Governo Federal? Por que esse Parque, inclusive os poucos setores desapropriados ainda não tem infra-estrutura de visitação? Que espera o instituto “Chico Mendes” de Conservação da Biodiversidade para fazer algo mais que abandonar alguns funcionários no lugar, sem autoridade, nem autonomia para resolver os problemas? Será que não é óbvio para as autoridades federais que é muito urgente, urgentíssimo proteger esse último resquício da natureza de Mato Grosso do Sul onde se concentra a diversidade biológica que o Brasil requererá mais cedo do que tarde?

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