Fazia um calor emoliente, cozinhando em fogo lento o temporal que desabaria no fim de semana, quando um chamado urgente despertou na sexta-feira o telefone do biólogo Apolônio Rodrigues. Vinha da base do Poço Preto, uma residência funcional desabitada que se repovoou este ano, mais movimentada do que nunca, como alojamento para os estudantes, alunos e pesquisadores que o Parque Nacional do Iguaçu atualmente hospeda para seus cursos.
No caso, encerrava-se naquela tarde a árdua semana de trabalhos de campo para uma turma vinda Alemanha, do Campus Ambiental Birkenfeld, da Universidade de Trier, para aprender e ensinar o que a cidade de Foz do Iguaçu, o parque e seus vizinhos do Sudoeste paranaense podem fazer em favor de uma vida mais próspera e mais limpa, usando o que botam fora como lixo e esgoto.
Eram estudantes universitários. E cumpriram em poucos dias uma tarefa que as administrações públicas no Brasil adiam indefinidamente. À noite, apresentariam suas conclusões no auditório do parque. Estavam, a essa altura, aquertelados na base, batucando em notebooks seus projetos. E acostumados, depois de seis dias, a consultar Apolônio Rodrigues sobre todas as dúvidas que lhes surgiam pelo caminho.
Mas aquele telefonema pegou de surpresa o diretor de Conservação e Manejo. Estava na linha um coordenador da universidade, contando que havia nos fundos da casa dois bichos que, se não eram, tinham tudo para ser onças pintadas. E pareciam dispostos a ficar por ali.
Apolônio pegou a máquina fotográfica, pulou no carro e correu para o alojamento. Ele dá a impressão de que está sempre com pressa. Mas o calor daquele princípio de tarde havia imobilizado até as folhas na floresta. E a cena que encontraria na base de pesquisas do Poço Preto não dava o menor sinal de que estivesse disposta a se desmanchar espontaneamente, de uma hora para a outra. E isso tornava o espetáculo ainda mais inverossímil.
Eram onças mesmo, constatou Apolônio. Dois filhotes encorpados, beirando o ponto de largar a mãe e cuidar sozinhos das próprias vidas. Provavelmente representavam uma das famílias que, há semanas, têm aparecido nas encruzilhadas da floresta com o asfalto, na área mais frequentada do parque. Talvez e mesma que posou para a posteridade numa armadilha fotográfica armada na estrada de terra das Bananeiras, em pleno circuito turístico do Macuco Safari.
Na sexta-feira, a dupla repousava languidamente nas ruínas de um canil onde, no começo da década de 1990, a “onça do Peter” entrou à noite para matar seu cachorro. O que é outra história. Naquela madrugada, encontraram-se frente à frente no terreiro limpo, a poucos passos de distância, uma fera especialmente intratável e o biólogo Peter Crawshaw, dono do maior currículo brasileiro em Pantera onca e professor de etiqueta, quando se tratar de lidar com ela em pé de igualdade.
O espetáculo que Apolônio flagrou dessa vez era estranhamente plácido. Lembrava um idílio pastoral nas melhores tradições do teatro germânico. Ex-assistente de Crawshaw, ele não estava preparado para encontrar, de um lado, moças e rapazes espalhados pelo chão de uma minúscula varanda, retocando seus relatórios sem tirar os olhos do canil meio demolido, sem porta nem tela, separado do mato por vinte centímetros de tijolos. Ali, a oito metros de distância, as duas onças ocupavam as ruínas sem se importar com a platéia.
Apolônio foi direto ao último ato. Tocou os alunos porta adentro. Numa das salas, encontrou um aluno de engenharia às voltas com os gráficos de seu computador, de costas para a janela aberta. Atrás dele, a um pulo do estudante, as onças. Explicou aos visitantes que onça não é brinquedo. Pode matar uma pessoa com um tapa. Sem contar que a mãe daqueles filhotes provavelmente poderia andar por perto. E reprovar a seu modo tamanha promiscuidade.
Fez tudo como manda o figurino de seu cargo. Sem deixar de ser Apolônio. O diretor de Conservação e Manejo fotografou e filmou os bichos no canil. E em seguida despachou-os de volta à floresta. Mas só à custa de muito berro. No dia seguinte, o guia Wanderlei Vargas encontrou a dupla a 500 metros da casa, junto ao asfalto que atravessa a área visitável do parque. Tinham matado um tapiti. Um deles devorava o coelho silvestre. O outro simplesmente balançava a cauda, “como gato, sabe?”. Eram seis e pouco da manhã. O tempo tinha virado. Começava a se armar sobre o parque o temporal que cairia de tarde. Ninguém, fora Wanderlei, estava ali naquela hora para aproveitar as onças.
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