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Uma década com balancete questionável

Lei do SNUC foi passo adiante na formalização de áreas protegidas, mas teve pouca influência na melhora da gestão. 

2 de setembro de 2010 · 14 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) cumpriu, há pouco tempo, dez anos de vigência. Faz sentido aproveitar a data para analisar e comentar seus efeitos sobre as áreas protegidas. Mas, para se fazer isso é preciso separar o que é conseqüência direta desta lei e do que a legislação anterior já previa e do que os governos teriam feito de qualquer modo, independentemente dela. Por exemplo, o estabelecimento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de enorme importância para as unidades de conservação, não é um mandato da nova lei. Tampouco pode se atribuir diretamente à lei a criação de novas unidades de conservação, o que é decisão dos governos. Na verdade, as diferenças entre a lei do ano 2000 e as normas que a precederam se referem especialmente à novas categorias e a aspectos sociais e de participação da população local.

Deve-se reconhecer que a mera promulgação da lei do SNUC foi um fato transcendental já que, previamente, a legislação sobre a matéria estava dispersa em outras leis, essencialmente no Código Florestal e na Lei de Proteção à Fauna e que alguns dos seus elementos importantes dependiam de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e de regulamentos. De fato, quase todo seu fundamento técnico, incluindo o conceito de sistema nacional, os estudos técnicos para o estabelecimento, as zonas de amortecimento e, claro, a obrigatoriedade de se fazer planos de manejo, eram já prática comum desde décadas antes, tanto no nível federal como no estadual. Portanto, a primeira e grande virtude da lei foi juntar e ordenar todos os textos legais e as melhores práticas em um só, coerente e atualizado. A segunda foi dar peso de lei a questões importantes que ainda não tinham esse nível, como por exemplo, a obrigatoriedade do apoio financeiro que as unidades de conservação devem receber de empreendimentos que têm impacto ambiental na região onde se localizam.

A preparação dessa lei foi longa e complexa, com ampla participação inicial de profissionais na matéria que, como é usual, nas etapas finais perderam a sua influência no processo em benefício de membros do poder legislativo e dos seus assessores. Assim sendo, muitas das mudanças de última hora, que em muitos artigos refletem interesses partidários e muito desconhecimento do tema, fizeram sentir negativamente seu peso na aplicação da nova Lei. Esse foi o caso da ratificação ou invenção de categorias esdrúxulas, mal definidas ou difíceis de ser diferenciadas de outras, como especialmente foi o caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentável, Áreas de Relevante Interesse Ecológico, Refúgios de Vida Silvestre, Monumento Natural e Reservas de Fauna. Algumas destas novas categorias têm sido muito pouco utilizadas ou nunca o foram, como no caso das Reservas de Fauna. Também, a consagração sem limitações das Áreas de Proteção Ambiental é, em grande medida, responsável pela explosão territorial desta categoria que, com honrosas exceções, protege pouco ou nada dando a perigosa impressão de que se protege muito. A confusão entre as verdadeiras unidades de conservação e aquelas categorias que são atos dissimulados de reforma agrária, como as reservas extrativistas, tem sido bem aproveitada dando como resultado a enorme expansão desta categoria, sem evidência alguma de que nelas se conserve bem a biodiversidade. Igual comentário merece o confuso reconhecimento como categoria “nacional-internacional” das Reservas da Biosfera que cobrem grande parte do país e que, na realidade, não significam nada. Pior ainda é a conseqüência de considerar as florestas nacionais, agora dependentes de um serviço florestal dedicado a fomentar concessões madeireiras, como unidades de conservação.

No tema das categorias resta de positivo o que já existia previamente, como os Parques Nacionais, embora essa lei perdesse a oportunidade de reconsiderar as categorias de Reserva Biológica e de Estação Ecológica, que poderiam perfeitamente e mais utilmente ser incorporadas na de Parque Nacional, simplificando a nomenclatura. De fato foram poucas as áreas criadas com estas duas categorias no período. Positivo na lei foi a consolidação das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs) que, melhor amparadas, prosperaram, embora sofram pelo fato de ter sido erroneamente consideradas como de desenvolvimento sustentável, o que as faz suscetíveis de exploração direta dos seus recursos, como já tem sido proposto mais de uma vez. Diga-se de passagem, as RPPNs sofrem de muitos problemas burocráticos desnecessários que derivam de regulamentações exageradas da nova lei.

É provável que de tudo o que faltou fazer na última década o assunto mais grave, em termos de futuro, seja não haver continuado ativamente com a regularização fundiária das unidades de conservação já estabelecidas.

Na lei vigente também há progressos, como a obrigatoriedade de se estabelecer conselhos consultivos para as unidades de conservação de proteção integral. Lamentavelmente, muitas unidades ainda carecem deste importante instrumento de gestão e as que o já o tem praticamente não o usam. Isso devido principalmente ao fato de que os chefes das unidades não têm autoridade ou autonomia suficiente para que os membros dos conselhos confirmem que eles, e os próprios conselhos, são úteis para a solução de conflitos entre a população local e as unidades de conservação e, também para que a sociedade possa aproveitá-las melhor e contribuir mais a sua defesa. No caso dos conselhos deliberativos para as unidades de uso sustentável, quando existentes, se mostraram incapazes de controlar as violações à lei, como no caso da expansão da pecuária nas reservas extrativistas. Outro elemento positivo na lei é a possibilidade de que unidades de conservação sejam geridas por organizações da sociedade civil de interesse público, porém, como tantos outros dispositivos da mesma lei, não têm sido realmente aplicado e as únicas áreas assim geridas são as mesmas que o estavam antes da sua promulgação. Na mesma situação está a obrigatoriedade de que as empresas que se beneficiam dos recursos hídricos gerados numa unidade de conservação contribuam financeiramente ao seu manejo, não existindo nenhum caso em que este dispositivo tenha sido aplicado. Ou seja, que muitos dos aspectos novos e positivos da nova nei não foram nem bem e nem completamente implementados.

O exame dos fatos relativos às unidades de conservação da última década que não dependem diretamente da nova lei, mostra alguns que são positivos. Destes, o estabelecimento do mencionado ICMBio, apesar de seu nascimento conturbado e muito imperfeito, foi o principal. Como muitos previram antes do fato, a separação da administração das unidades de conservação da de outros vários temas que correspondem ao Ibama, redundou em uma melhoria da gestão das mesmas e, após os traumas iniciais, numa sensivelmente maior satisfação do seu pessoal de campo. Também deve se mencionar que muitas unidades de conservação federais novas foram estabelecidas, embora tenham acentuado o desequilíbrio entre as categorias devido à ênfase exagerada nas de uso sustentável, o que é muito discutível em termos de valor futuro para a conservação da biodiversidade.

No nível estadual a tendência tem sido a mesma que no federal. Ou seja, foram criadas várias unidades de conservação novas, especialmente APAs e outras de uso sustentável como as reservas extrativistas. Mas, o que é diferente é a eliminação ou a redução drástica do tamanho de unidades de conservação, em especial das de proteção integral. Entre os casos mais escandalosos e recentes está o “massacre” de unidades de conservação que levou a efeito a Assembléia do Estado de Rondônia que em apenas uma sessão eliminou vinte áreas protegidas estaduais. O mesmo fez, um ano antes, o rico Estado de Santa Catarina cuja Assembléia, sem nenhum voto em contrário, eliminou uma grande porção do seu melhor e maior parque estadual. O pretexto para a ação é sempre o mesmo: “já foram invadidas e a ocupação é irreversível”. Este fato que, em geral é apenas parte da verdade, deveria deflagrar um processo judiciário contra os responsáveis do descaso ao invés de alegremente consolidar o prejuízo à sociedade. Mas, na última década estes casos se repetiram em quase todos os estados, pobres ou ricos, incluídos dentre estes últimos São Paulo e Mato Grosso. E nem dá para inventariar todos os intentos de fazê-lo e que ainda não tiveram sucesso. Não se dispõe de um balancete de ganhos e perdas em áreas protegidas estaduais da última década, mas, é possível que em algumas categorias se esteja já no vermelho ou bem perto.

Outros fatos ainda preocupam muito em termos de ameaça para as unidades de conservação. Uma delas foi a decisão judicial de declarar a nulidade de um parque nacional com base em uma interpretação muito sui generis da legislação. O assunto não está concluído, porém é um precedente que pode ter gravíssimas conseqüências. Outro caso recente, ainda mais surpreendente, foi um decreto que permite fazer estudos da viabilidade técnica de uso dos recursos hídricos dentro de unidades de conservação de qualquer categoria e que desde já permite a passagem de linhas de transmissão de eletricidade dentro das unidades das categorias de uso sustentável. É óbvio que após se gastar milhões de reais em se fazer um estudo para explorar o potencial hidroelétrico dentro de uma unidade de conservação é porque já está decidido a priori usá-la para esse fim. Os interessados já devem dispor até do pretexto que usarão para obter a desqualificação da unidade de conservação afetada. Tampouco se sabe que é o que aconteceu com esta proposta que atenta descaradamente contra a lei do SNUC e que, curiosamente, parecia contar com a anuência de autoridades do ICMBio.

É provável que de tudo o que faltou fazer na última década o assunto mais grave, em termos de futuro, seja não haver continuado ativamente com a regularização fundiária das unidades de conservação já estabelecidas. O fato de o Estado não estar claramente em posse de toda a terra de unidades de conservação importantes é, a cada dia mais, o pretexto que usam os que querem explorar os recursos naturais que estão nelas preservados. Esse esforço financeiro que em termos de custo é mínimo frente a outros gastos públicos, é outro mandato da lei do ano 2000 que não foi cumprido.

Em resumo, a lei do ano 2000, apesar de ter marcado um grande passo adiante no caminho da formalização das unidades de conservação, parece ter tido pouca influência direta para melhorar sua gestão. Muitos dos seus aspetos mais positivos não foram extensamente aplicados e suas falhas conceituais e técnicas se revelaram obstáculos para cumprir adequadamente a sua função precípua, que deveria ser conservar amostras duradouras do patrimônio natural. De outra parte, alguns dos melhores progressos realizados na década passada, como a criação de uma instituição autônoma para a gestão das unidades de conservação e o estabelecimento de novas, não foi necessariamente uma conseqüência da nova Lei. Esta tampouco teve a capacidade de afastar ou reduzir as ameaças contra as unidades de conservação, que se estão multiplicando, diversificando e agravando. Assim mesmo essa Lei não aumentou significativamente a qualidade do manejo das unidades de conservação, nem melhorou as condições do seu uso público. Ou seja, que, em boa conta, com essa lei ou com outra aprimorada no futuro, muito mais deverá ser feito para que as unidades de conservação recebam como em outros países, o apoio da opinião pública. Apoio este que deve se traduzir em orçamento suficiente e em proteção efetiva, no próprio legislativo, contra os atropelos daqueles políticos que defendem os interesses de uns poucos contra os da maioria.

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