Há uns quatro anos, escrevi aqui em ((o))eco a coluna “A tal da sustentabilidade”. Naquele texto, questionei se o conceito imensamente importante de sustentabilidade estava sendo usado de forma adequada. Falei dos resultados de dois estudos científicos, que discutiam utilizações de recursos naturais que eram ditas sustentáveis no Brasil – a da castanha do Pará na Amazônia e uma exploração madeireira por RIL (“Reduced Impact Logging”) no Pará. Os estudos mostravam que os respectivos recursos não estavam sendo utilizados de forma sustentável, ao contrário do que se supunha. Mas fiquei com uma pergunta na cabeça: será que esses dois casos eram exceções, apenas ilhas num mar de explorações sustentáveis, ou será que muitas das explorações que são ditas sustentáveis no Brasil na verdade não o são? Bom, não havia como ter certeza sem estudar a questão.
“sempre que o recurso explorado é um animal ou planta, a questão de se a exploração é sustentável ou não é necessariamente uma questão demográfica”
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Cientistas são uns bichos estranhos, que não conseguem resistir a uma curiosidade. A ideia acabou levando a um projeto de pesquisa, com o objetivo de responder à seguinte pergunta: até que ponto utilizações de recursos naturais no Brasil, nas quais se presume sustentabilidade, são de fato sustentáveis? Consegui patrocínio para o projeto, da Fundação Grupo O Boticário de Proteção à Natureza. Três estudantes meus de pós-graduação, os biólogos Pâmela Antunes, Leandro Macedo e Carlos André Zucco, se interessaram pela pergunta, e com isso tínhamos também uma equipe. Só faltava colocar mãos à obra, ou melhor, às obras (publicadas).
Como saber se uma exploração de recursos é sustentável ou não?
Pâmela, Leandro, Zucco e eu adotamos como ponto de partida a própria definição de desenvolvimento sustentável, do Relatório Brundtland de 1987, que introduziu a palavra sustentabilidade no discurso cotidiano. A definição é: “desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de atender às suas próprias”. Como eu tinha argumentado em “A tal da sustentabilidade”, sempre que o recurso explorado é um animal ou planta, a questão de se a exploração é sustentável ou não é necessariamente uma questão demográfica. “Uso sustentável” é aquele que permite que uma população continue existindo, implicando que as perdas (por mortalidade, devido à exploração ou não, e por emigração) sejam compensadas em longo prazo pelos ganhos (por natalidade e imigração). Partindo diretamente de Brundtland, nós adotamos como critério de sustentabilidade que o regime de exploração permitisse ao recurso continuar a existir para as futuras gerações, de modo a atender às suas necessidades.
Com nosso critério em mãos, fizemos um amplo levantamento bibliográfico de todos os estudos que pudemos encontrar analisando se explorações de recursos naturais no Brasil eram sustentáveis ou não. Os estudos cobriam o que eu consideraria as três principais categorias de recursos biológicos terrestres explorados no Brasil: madeira, caça, e produtos florestais não-madeireiros, ou NTFP (Non-Timber Forest Products). Se você ainda não foi apresentado(a) a esses últimos, tratam-se de frutos, castanhas e similares. Com uma procura exaustiva, levantamos não só artigos científicos como teses e dissertações acadêmicas sobre o assunto, produzidas desde 1987 (o ano do relatório Brundtland) até junho de 2010.
Pergunte ao bicho
Cabe notar aqui, porém, um ponto crucial. Como é possível saber se a população de um bicho qualquer está sendo explorada sustentavelmente ou não? A resposta, claro, é: pergunte ao bicho! Ou melhor, estude a população do bicho. Portanto, selecionamos os estudos que tinham uma abordagem demográfica, necessária para que a questão pudesse ser respondida. Definimos abordagem demográfica da forma mais ampla possível, incluindo estudos que traziam informações como estimativas de densidade populacional, abundância relativa, estrutura etária, e por aí vai. Para responder à questão de se cada exploração era sustentável ou não, nós usamos as conclusões dos autores de cada estudo, sobre a manutenção ou não dos níveis populacionais do recurso. Em alguns casos, quando essa conclusão não era apresentada explicitamente, nós usamos a conclusão implícita nos resultados.
Os resultados: uma primeira visão
“Em 61 dos 126 casos estudados (48,4% do total) as explorações se mostraram não sustentáveis”
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Não é minha intenção dar aqui todos os detalhes da metodologia, mas se o leitor estiver interessado nos detalhes deste ou de qualquer outro aspecto do estudo, sugiro consultar o artigo.
Oi? Ah, sim, o artigo acaba de sair, na revista científica Natureza & Conservação. Por que você acha que eu estou escrevendo sobre isso agora? Você pode encontrar o estudo completo em F.A.S. Fernandez, P.C. Antunes, L. Macedo e C.A. Zucco, How sustainable is the use of natural resources in Brazil? Natureza & Conservação 10: 77-82, 2012.
E o que nós encontramos? Bom, vamos seguir o princípio de Jack, o estripador: vamos por partes.
Encurtando um pouco a história, nós encontramos um total de 64 estudos que se propuseram a analisar a sustentabilidade da exploração de recursos naturais no Brasil, entre artigos científicos, teses e dissertações. Já retirando os estudos que não tinham uma abordagem demográfica e os que só analisaram efeitos laterais da exploração (“efeitos em cascata”), os estudos restantes analisaram 126 diferentes casos de explorações de recursos (sendo cada caso uma espécie analisada em um estudo; vários estudos analisaram explorações de diversas espécies). Os estudos sobre caça se referiram quase sempre a mamíferos ou a aves. As explorações madeireiras estudadas eram todas por RIL (“Reduced Impact Logging”, ou exploração de impacto reduzido) ou por extração seletiva. A grande maioria dos estudos foram realizados na Amazônia, com os restantes na Mata Atlântica, no Cerrado, no Pantanal e na Caatinga.
Nos 126 casos em que a sustentabilidade do uso do recurso foi de fato estudada, a exploração foi considerada sustentável em 51,6%. Por outro lado, em 61 dos casos (48,4% do total) as explorações se mostraram não sustentáveis. Explorações não sustentáveis foram mais comuns na exploração madeireira (61,5% dos casos). Nos estudos sobre caça, em 44,9% dos casos a exploração foi considerada não sustentável. Já nos estudos sobre produtos florestais não madeireiros, o mesmo aconteceu em apenas 22,2% dos casos.
O principal resultado Pâmela, Leandro, Zucco e eu encontramos – quase metade de casos com explorações não sustentáveis – é importante por si só, porque mostra a necessidade de aperfeiçoar muito o manejo de recursos naturais no Brasil se quisermos seguir o louvável objetivo de Brundtland de manter esses recursos para as gerações futuras. Mas os nossos resultados têm bem mais que isso a dizer.
Os achados por cada tipo de recurso
“Dos 21 casos (todos na Amazônia) nos quais exploração madeireira foi estudada por análise demográfica, em nada menos de 20 ela foi considerada não sustentável”
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Sem entrar demais nos detalhes técnicos, o melhor método que existe para avaliar sustentabilidade é o que chamamos de análise demográfica. A maioria dos estudos que analisamos simplesmente comparava a abundância das populações antes ou depois de exploração, ou entre áreas exploradas ou não, o que é sujeito a alguns problemas de interpretação (que discutimos no artigo). Por outro lado, na análise demográfica a população é estudada quando à sua estrutura etária e suas taxas de natalidade e mortalidade. Um estudo assim, claro, é bem mais fácil de fazer com uma população de árvores do que de animais. As árvores estão sempre lá, paradinhas. É bem mais fácil contá-las, medir seus tamanhos (e daí estimar as idades), e por aí vai. Engenheiros florestais fazem isso rotineiramente para predizer a produção futura, daí a grande disponibilidade desse tipo de estudo para exploração madeireira.
Pois bem, dos 21 casos (todos na Amazônia) nos quais exploração madeireira foi estudada por análise demográfica, em nada menos de 20 ela foi considerada não sustentável. O resultado é esmagador. Nosso estudo mostrou claramente que o tempo de rotação (o tempo que você precisa deixar as árvores crescerem em um determinado lugar, antes de voltar a cortá-las ali), que na Amazônia por lei é de 30 anos, é curto demais para a maioria das espécies de árvores. Isso também nos leva a perguntar se a proporção de casos insustentáveis estaria subestimada para os outros recursos, para os quais métodos tão sensíveis como a análise demográfica são mais difíceis de aplicar.
Quanto à caça, a situação que encontramos é preocupante porque as espécies preferidas são mamíferos e aves com baixas taxas reprodutivas, que tem dificuldades para suportar exploração intensa. Alguns dos estudos, de fato, detectaram reduções muito severas de abundância dos animais caçados, da ordem de 60 a 90% ou mesmo mais. Isso aconteceu na maior parte dos casos com espécies como antas, queixadas e grandes macacos amazônicos, que são particularmente vulneráveis.
No que diz respeito aos produtos florestais não madeireiros, dos nove casos estudados, só em dois a exploração não foi considerada sustentável. Isso pode parecer mais tranquilizador, mas um dos dois foi a exploração da castanha do Pará (de novo, veja mais sobre o estudo de Peres e colaboradores na primeira coluna), que tem uma imensa importância econômica e social na Amazônia.
Sustentabilidade pode e precisa ser testada
“O problema é que o conceito de “sustentabilidade” vem sendo usado de forma errônea, confundido com meramente estar tomando cuidado com as questões ambientais”
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Até aí o que encontramos já seria preocupante, mas há mais – na verdade o ponto crucial, eu diria. Para colocar nossos resultados em uma perspectiva correta, é preciso ter em mente que os casos analisados não representam um subconjunto aleatório das milhares de explorações de recursos naturais no Brasil. Longe disso: eles representam exatamente situações nas quais se assume sustentabilidade. Todos os casos de exploração madeireira analisados se referiam a RIL ou à extração seletiva, técnicas das mais cuidadosas, e que são frequentemente consideradas sustentáveis. Os estudos de caça geralmente se referiam à caça de subsistência na Amazônia por populações locais, como ribeirinhos, indígenas e seringueiros, que muitos supõe a priori que seja sustentável. Várias explorações não sustentáveis da castanha do Pará eram em reservas extrativistas, onde se supõe que o manejo de recursos seja sustentável, pela própria definição desta categoria de reservas. As implicações disso são imensas. Primeiro, algumas expressões como “uso sustentável” e “exploração sustentável” na legislação ambiental brasileira não tem base na realidade ou são enganosas em muitos casos, e precisam ser revistas. Segundo, seria muito desejável que qualquer exploração supostamente sustentável de madeira, caça ou NTFP seja estudada, usando uma abordagem demográfica. Novas concessões para exploração em terras públicas ou reservas, assim como renovações de concessões existentes, deveriam ser condicionadas à exploração ser de fato sustentável.
Antes era só uma intuição, mas agora é uma constatação: muitas utilizações de recursos consideradas sustentáveis no Brasil na verdade não o são. Isso não quer dizer que manejo sustentável de recursos naturais seja impossível; nosso próprio estudo encontrou vários casos nos quais o nível dos recursos estava sendo mantido. O problema é que o conceito de “sustentabilidade” vem sendo usado de forma errônea, confundido com meramente estar tomando cuidado com as questões ambientais. Esta banalização e esvaziamento da palavra, transformando-a tantas vezes em um discurso vazio, tira dela a maior parte da imensa importância que poderia ter. Sustentabilidade, como a ideia foi formulada, é uma condição bem definida, que pode e precisa ser testada, com base em boa ciência. Não basta apenas presumi-la. Falsa sustentabilidade, afinal, não é bom para ninguém – nem para as espécies biológicas que nós chamamos de “recursos”, nem para as pessoas estimuladas a depender delas.
A tal da sustentabilidade
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