“No Rio, os macacos-prego invadem casas e edifícios no coração do bairro do Jardim Botânico. Em Belo Horizonte, são os quatis do Parque das Mangabeiras; ousados, destemidos e loucos por comida de gente” (Rede Globo). “No entorno do Parque do Ibirapuera, quem sofre com a presença dos urubus são os moradores de prédios vizinhos. Os urubus usam as sacadas como ninho para seus ovos” (Folha de S. Paulo). “Sete pessoas morreram e três ficaram gravemente feridas após uma colisão entre dois carros. O acidente aconteceu após o motorista atropelar uma capivara, perder o controle do carro e invadir a pista contrária” (O Estadão).
Notícias cada vez mais frequentes de problemas causados por animais silvestres, das quais os exemplos acima são apenas uma amostra do que foi publicado nos últimos meses, refletem a crescente preocupação da sociedade acerca das espécies que dividem o espaço com o homem e que, ao menos na opinião das pessoas envolvidas, ultrapassaram o limite da área ou da quantidade em que deveriam existir.
Urbanização, expansão de condomínios, popularização do lazer junto à natureza, avanços na proteção ambiental e certas mudanças nas práticas agrícolas prometem tornar esses encontros indesejados com animais silvestres cada vez mais frequentes. Para piorar, as respostas à presença de animais silvestres são mais extremas e complicadas hoje do que antes. Se no passado morcegos no forro da residência e quero-queros no aeroporto eram vistos com relativa indiferença, na sociedade moderna, cada vez mais preocupada com saúde e segurança, essas situações podem ser intoleráveis. Se no passado o cidadão se sentia à vontade para resolver o problema por conta própria com uma garrucha, uma armadilha ou um pouco de veneno, hoje em dia a consciência das implicações legais, ecológicas, econômicas, sociais e éticas de se eliminar animais silvestres exige a intervenção de profissionais especializados.
Conservação versus manejo
Quando o problema é um animal silvestre, logicamente o profissional chamado para investigar e resolver o caso é aquele que entende de animais silvestres. Corpo de bombeiros, polícia ambiental ou autoridades ambientais locais podem retirar a onça-parda que acabou encurralada no quintal, e uma empresa de controle de pragas vai remover aqueles morcegos do forro, mas soluções de longo prazo são esperadas dos profissionais que combinam a formação acadêmica em ecologia de animais silvestres com a capacidade de colocar em prática seus conhecimentos, ou seja, os especialistas em manejo ou gestão de fauna silvestre.
Acontece que, no Brasil, o manejo científico da fauna tem sido historicamente associado a conservação; é aplicado principalmente a espécies cujas populações foram reduzidas a números ou áreas pequenos demais. O objetivo do manejo, nesses casos, é recuperar e manter tais populações acima do “tamanho mínimo viável” e, assim, livrá-las da ameaça de desaparecimento. Formados dentro dos preceitos da biologia da conservação e acostumados a pensar e agir sobre populações pequenas e ameaçadas, os profissionais do manejo de fauna são cada vez mais cobrados também para fazer justamente o oposto: lidar com o problema das populações grandes demais. Essa verdadeira mudança de paradigma – de aumentar populações pequenas e ameaçadas em benefício da espécie em questão a diminuir populações inconvenientemente grandes em benefício das pessoas afetadas (de certa forma, da conservação ao avesso da conservação) – impõe uma série de desafios aos gestores de fauna.
Manejo de fauna abundante
O desafio começa pela própria definição de “população grande demais a ponto de exigir ações de manejo”. É mais fácil encontrar critérios objetivos para avaliar se uma população é pequena demais. Informações sobre demografia, genética e meio ambiente, por exemplo, são usadas para estimar a probabilidade de que uma população tenha seu tamanho reduzido a zero em um futuro próximo, ou seja, o risco da população desaparecer (e o que poderia ser menos subjetivo do que a extinção?!).
Por outro lado, embora uma população possa ser considerada grande demais com base na objetividade da ecologia (quando acima da capacidade de suporte do ambiente ou quando a espécie é invasora) ou da economia (quando causa perdas materiais intoleráveis), na prática é a subjetividade dos fatores socioculturais e psicológicos que, em última instância, determina o limite da nossa tolerância aos animais silvestres. Valores atribuídos à fauna, sejam eles financeiros, afetivos, estéticos, simbólicos ou intrínsecos, assim como a percepção dos riscos associados a ela e a disposição para assumir esses riscos, variam de pessoa para pessoa, entre grupos sociais e entre culturas; uma população de animal silvestre pode ser grande demais para você e não para mim, ou vice-versa, e o gestor de fauna deve levar isso em conta.
Os desafios à frente dos gestores de fauna abundante incluem, portanto, a crescente necessidade de investigar, entender, envolver e influenciar pessoas também, além de animais silvestres e seus habitats. Se para a conservação de populações pequenas e ameaçadas as ciências biológicas nem sempre são suficientes, para o manejo de populações grandes demais a contribuição das ciências sociais – economia, psicologia, ciência política, direito, educação e comunicação – pode ser vital. Teorias e métodos das ciências sociais devem cumprir um papel cada vez mais central no diagnóstico do problema, na elaboração de soluções de manejo, e na avaliação e monitoramento dos resultados das intervenções.
Soluções técnicas focadas nos animais silvestres podem continuar sendo a primeira linha de ação: cercas e galinheiros podem manter predadores silvestres dentro de limites toleráveis de distribuição, ou seja, longe dos animais domésticos, e gaviões treinados podem manter sob controle o número de quero-queros no aeroporto (o controle letal por meio da caça esportiva, principal ferramenta de manejo de fauna abundante nos Estados Unidos e países da Europa e África, não entra no repertório de soluções, já que é proibida no Brasil).
A experiência revela, no entanto, que soluções técnicas sozinhas raramente são suficientes. Em muitos casos, a solução definitiva deve envolver mudanças no comportamento das pessoas, tais como dirigir com mais cuidado onde existe a travessia de capivaras, cuidar melhor do lixo para prevenir o aumento na população de quatis, e deixar de alimentar onças-pintadas para evitar a habituação e a consequente ameaça de um ataque delas sobre o ser humano. O manejo de fauna passa a ser, na prática, manejo de gente! Em outros casos ainda, os animais silvestres insistem em incomodar mesmo depois de aplicadas as intervenções usuais de manejo (de fauna e de gente): o conflito é inevitável. Resta ao gestor, então, lançar mão da educação e da comunicação para aumentar a tolerância das pessoas ao problema.
Por fim, o gestor de fauna abundante deve estar preparado para enfrentar uma demanda maior da sociedade. Tem muito mais gente (realmente) preocupada com o problema da fauna abundante do que com o problema das espécies ameaçadas. Na percepção do cidadão comum, a extinção de uma espécie traz prejuízos de modo indireto e difuso, e não agora mas no futuro. Já a perda de um animal doméstico comido por uma onça-parda, ou a perda de uma vida humana em um acidente de carro causado por uma capivara, é um prejuízo direto, concreto, imediato, intolerável. Isso tudo confere ao gestor de fauna abundante uma responsabilidade especial e, ao mesmo tempo, uma oportunidade excepcional de intermediar a relação entre gente e fauna silvestre; de melhorar diretamente a qualidade de vida das pessoas afetadas, e de informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância que a fauna silvestre – seja ela abundante ou ameaçada – tem sobre nossas vidas.
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