Análises

A última trincheira dos queixadas da Mata Atlântica

Darwin se abismou com a suntuosidade da Mata Atlântica. Dois séculos depois, a extinção de espécies ocorre mesmo debaixo de nossos narizes.

Fabio Olmos ·
16 de outubro de 2012 · 12 anos atrás
Um grupo de queixadas cruza uma trilha no Parque Estadual da Serra do Mar em São Paulo, que abriga uma das últimas populações da espécie na Mata Atlântica. Contou-se 52 exemplares nesta vara. Foto: Fabio Olmos.

Queixadas pertencem à família Tayassuidae, um grupo superficialmente similar aos porcos, dos quais são parentes tão próximos como nós somos dos babuínos. Os primeiros Tayassuidae são representados por fósseis de  34 milhões de anos do sudeste da Ásia, com registros posteriores na Ásia, África e Américas.

Entretanto, não colonizaram a América do Sul até que esta deixou de ser uma ilha e se conectou à América do Norte, há cerca de 3 milhões de anos. Hoje, os Tayassuidae são exclusivamente americanos, com três espécies reconhecidas (podem haver mais, segundo as evidências genéticas).

O queixada Tayassu pecari ocorria originalmente do sul do México ao norte da Argentina. Uma espécie muito sociável e inteligente, vive em grupos que, historicamente, podiam ter centenas de indivíduos. Essas hordas fazem arrastões pela floresta comendo frutos, sementes e pequenos animais no solo, que é revirado no processo.

Devido ao tamanho dos grupos, estes perambulam por áreas que podem ser extensas, rastreando recursos como palmeiras e derrubando seus frutos. Essa atividade de predação/dispersão de sementes e a perturbação do solo e sub-bosque fazem com esses animais sejam engenheiros que ajudam a moldar e diversificar o ecossistema.

Guardadas por machos adultos agressivos que fazem um cordão de segurança ao redor de fêmeas e filhotes, as grandes varas são um mecanismo de defesa eficiente contra predadores como onças-pintadas e pumas. Mas não contra humanos, desde os armados com flechas e bordunas até aqueles com armas de fogo.

A caça fez com que os queixadas fossem extintos de vastas áreas, incluindo grande parte da Mata Atlântica, onde a caça (que ainda é constante), somada à tremenda perda e fragmentação do habitat levou à extinção local a maioria dos mamíferos e aves de grande porte, hoje reduzidos a populações remanescentes aqui e ali. Restam populações de queixadas em alguns poucos lugares, como (por incrível que pareça) na Serra do Mar paulista.


Clique para ampliar

Eles foram extintos mesmo em áreas protegidas, como os parques nacionais da Serra dos Órgãos e, vergonhosamente, no do Iguaçu, onde caçadores comerciais agiram livremente, pois a preocupação maior do parque foi antes com o turismo do que com a biodiversidade. Paradoxalmente, há mais bichos nas áreas visitadas (e com gente olhando) do que nas “intangíveis”.

Além da perda de uma espécie importante na dinâmica da vegetação, essa extinção afetou os predadores que tinham nos queixadas uma fonte importante de alimento, especialmente as onças-pintadas, reduzidas a gatos pingados na Mata Atlântica e mesmo no Iguaçu, que já abrigou população maior. Extinção deflagra um dominó ecológico.

Darwin, durante sua estadia no Rio de Janeiro em 1832, conheceu a Mata Atlântica e escreveu que “quando em terra e caminhando pelas florestas sublimes… eu sinto um deleite que ninguém que não o tenha experimentado pode compreender”. Esse é um sentimento que pesquisadores, ambientalistas e outros amantes da Natureza conhecem bem. Se pudesse ser engarrafado e vendido renderia uma fortuna.

A Mata Atlântica, que tanto inspirou Darwin, foi dizimada nos últimos 200 anos. Cerca de 90% da Mata Atlântica original e praticamente 100% das formações primárias se foram. Boa parte das florestas pelas quais Darwin viajou, entre a cidade do Rio de Janeiro e Cabo Frio, não existem mais.

Sobraram florestas vazias onde espécies continuam sendo extintas mesmo onde deveriam ser cuidadosamente protegidas, porque guardas na lanchonete do parque são mais importantes do que na floresta.

A “tradição cultural” ou a pobreza tudo justificam e nossas leis são como o rabo que abana o cachorro.  Do mesmo jeito que a crônica covardia de experimentar também serve de desculpa para não se reintroduzir espécies extintas nas áreas protegidas de onde desapareceram.

Eu tive meus momentos de adrenalina e felicidade encontrando queixadas na Mata Atlântica. Sem mais seriedade e mais polícia no combate à caça, esse privilégio será cada vez mais raro.

 

Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas.

 

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

Leia também

Notícias
12 de novembro de 2024

Desmatamento zero para quem? Brasil não é claro em proposta apresentada na COP29

Representantes do governo brasileiro reforçam em Baku a promessa de Lula de acabar com desmatamento, sem dizer se a supressão legal entra na conta

Podcast
12 de novembro de 2024

Entrando no Clima#32 – Brasil estreia na COP espalhando dúvidas no ar

No episódio 32 do podcast, a correspondente de ((o))eco na COP do Clima traz mais informações sobre a estreia da delegação brasileira em Baku

Notícias
12 de novembro de 2024

Apenas 12,8% das áreas protegidas marinhas do Brasil são realmente efetivas

Pesquisa internacional analisa a qualidade na conservação marinha global, visando a meta mundial de proteger 30% dos oceanos até 2030

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 2

  1. Neyd Montingelli diz:

    Olá, quando esta espécie veio para as Américas? Ou é nativo daqui?


  2. Mauro diz:

    é uma raça distinta ou todo queixada é queixada, isso é uma praga para as lavouras em muitos estados